VIOLETA
ROMANCE ORIGINAL BRASILEIRO
ROMANCE ORIGINAL BRASILEIRO
... Étre
maitre du bien et du mal, régler la vie, régler la societé, resoudre à la
longue tous los problèmes du socialisme, apporter surtout des bases solides à
la justice, en résolvant par l'expérience les questions de criminalité, n'est
ce pas là étre les ouvriers les plus utiles et les pias moraux du travail
humain?
E. ZOLA (Le Roman
Experimental)
I
Um dia, sumiu-se a pequena Eva.
O pobre marceneiro, seu pai, buscou-a.
Tempo perdido, esforço baldado.
Na pequena povoação de ***, em Minas, não
houve um recanto aonde não chegassem as investigações do marceneiro em busca da
filha.
Depois que se espalhou a noticia do
desaparecimento da menina, ninguém se encontrava com outra pessoa que não lhe
perguntasse:
- Sabe da Vevinha?...
- Já ia perguntar isso mesmo...
E não se colhia uma informação que desse
luz ao negócio.
Uma senhora velha, reumática, de olhos
vivos, mas bons, baixinha e regularmente gorda, que vivia, a alguma distância
da povoação, roendo o dinheirinho que lhe deixara o defunto marido, muito
camarada da pequena Eva, à tia do marceneiro enfim, abalara-se de casa, contra
os seus hábitos, e se arrastara a ver o sobrinho na cidade. Soubera da desgraça
e, o que mais é, ouvira do seu moleque uma cousa que... devia contar ao
sobrinho.
Foi achá-lo na oficina, sentado sobre um
banco de carpinteiro, triste, na imobilidade estúpida de uma prostração
miserável. As pernas caíam-lhe a prumo, pendentes acima do tapete de fragmentos
de madeira raspada pelo cepilho. Um sol desapiedado, das três horas, caía
ardente sobre ele e o cercava de uma poeira dourada de faíscas microscópicas,
que flutuavam à toa no ar.
O marceneiro não se apercebia disso.
O suor caía-lhe, escorrendo sobre o nariz,
e aljofarava-lhe a barba espessa e negra; toda a pele requeimada do rosto
parecia desfazer-se em líquido.
Os cabelos escuros e desgrenhados
grudavam-se-lhe à testa; a camisa abria-se e mostrava um peito cabeludo e
largo, onde sorriam as ondulações da respiração que lhe fazia arfar o ventre.
Estava abatido.
Desde as seis horas da manhã até depois do
meio-dia não se sentara um instante; não se alimentara. Sofria. Ao levantar-se,
vira vazio o leitozinho de Eva. Que fim levara a filha? Nada, nada: era o fruto
de todas as pesquisas.
Quando a tia entrou, o marceneiro não o
sentiu.
A velha chegou-se para ele e pousou-lhe a
mão no ombro.
- Então não me vês? disse. Não me vês,
Eduardo!
Eduardo ergueu a face e respondeu-lhe com
um olhar dolorido.
A velha teve pena. As lágrimas chegaram às
pálpebras. De mais a desgraça a ferira também.
Como não? Era tão boa e tão linda a Vevinha, gostava tanto dela... chamava-a
vovó... Que graça nos seus beicinhos vermelhos, alongando-se como em muchocho,
para soltar aquelas duas silabas!... A última doçura da vida é o amor da
netinha, os seus estouvamentos de passarinho... Faltava-lhe a netinha. A árvore
secular sorri, quando nela chilreia uma avezinha; voa a avezinha e a ramaria
toda parece uma carranca... Ela gostava de ter sobre os joelhos a Vevinha, tagarelando. Perdera isso; era
tudo.
Entretanto a dor de Eduardo era maior.
O marceneiro era um desses homens que se
chamam fortes, porque encobrem com uma serenidade trágica as feridas da dor.
Havia menos de um ano morrera-lhe a mulher, uma mocinha bonita, amorosa e
trabalhadora. Uma febre a levara da vida. Este golpe foi duro, mas Eduardo o
recebeu em pleno peito, olhando de cima para a desgraça. O segundo golpe foi um
requinte intolerável.
A velha voltara o rosto e fitava um sujeito
a trabalhar num canto da oficina, quase no escuro.
Era o carpinteiro Matias, português de
nascimento, e, como sabe o leitor, sócio de Eduardo. Media com o compasso uma
tábua que ia serrar, no momento em que ouviu a estranha frase da tia do sócio.
Ergueu a cabeça, descansando o compasso sobre a tábua, e, com a sua cara
pálida, de nariz cortante, queixo pequeno e olhos azuis, atirou a Juliana uma
risada tossida, implicante.
A velha incomodou-se com isso. Carregou os
sobrolhos e, sem mais nem menos, gritou-lhe asperamente:
- De que ri-se?...
Matias começou a serrar a tábua, sem deixar
de rir.
A respeitável Juliana fuzilava-o com o
olhar. Em seguida curvou-se para o sobrinho e segredou-lhe algumas palavras.
Murmurava apenas, mas energicamente, vivamente.
Eduardo ergueu o rosto. Estava transformado.
Havia-lhe no semblante um ar de espanto e mesmo certa alegria tímida.
Era como uma fita de céu claro no fundo de
um quadro de tempestade.
Esteve alguns segundos absorto, os olhos
cravados na tia.
Na sua atitude, parecia apreender as notas
de uma harmonia afastada. Mostrava reanimar-se. De súbito, exclamou:
- Como sabe, minha tia?...
- O meu moleque viu...
- Será possível?...
- ... Viu...
Ah! se isto é verdade!
- ... O moleque viu...
O carpinteiro Matias deixara o serrote
encravado na tábua e, com um sorriso esquisito, olhava para os dois parentes.
Por vezes, os lábios se lhe encresparam, como se ele fosse falar. Hesitou,
porém. Afinal, não se contendo mais, adoçou a voz quanto pôde e perguntou:
- Então acharam a Vevinha? Quem furtou?...
- Quem furtou?... Eh... Sr. Matias... disse
Juliana a modo de ironia.
- Por que fala assim, D. Juliana?... Quem a
ouvisse diria que fui eu o gatuno. Venha ver a menina aqui no meu bolso...
- Não graceje, Sr. Matias! não me obrigue a
soltar a língua...
O senhor mostra o bolso, mas não mostra
a... bolsa...
O trocadilho impressionou ao carpinteiro.
No seu canto escuro, Matias empalideceu e, para disfarçar, tomou de novo o
serrote e pôs-se a trabalhar, sorrindo sem vontade.
Juliana dirigiu o olhar para o sócio do
sobrinho, piscando muito, visivelmente enraivecida com o sujeito. Matias não
ousava levantar a cara. Sentia o olhar da velha como o dardo de um maçarico,
faiscante, ardente, incomodativo.
- Como diabo, dizia de si para si, pôde
esta coruja saber?...
E serrava, serrava, para não dar a conhecer
o que lhe ia pelo espírito.
Eduardo veio-lhe em socorro. Dirigiu a
palavra à tia:
- ... Mas, tia Juliana, disse, eles
partiram há três dias...
- Ah, Sr. Matias!... não sei, falava a
velha ao carpinteiro, não sei como o Eduardo o atura!... Olhe que o senhor!...
- Há três dias... repetia o Eduardo,
meditando, com a mão sobre o braço da tia, para chamar-lhe a atenção..
- Como?... perguntou-lhe esta.
- Não sei como é possível... Eles não estão
aqui há... uns três dias já...
- O moleque viu, já ..... reconheceu-os...
Eram dons: o Manuel e aquele negro o... Pedro... O moleque os conhece muito...
O tratante não saia do circo... ensaios, espetáculos...
- Ah! exclamou o Matias, os gatunos são da
companhia do Rosas!.. Ah! ah!...
- Olhe, Sr. Matias, o senhor... Já não me
contenho... ameaçou Juliana...
- Tenha paciência, minha cara, há de
concordar... ah! ah! Ora uma companhia de ginásticos furtando uma criança,
fraca, imprestável!...
Eduardo refletia, sem dar ouvidos à
discussão dos outros.
- Ahn!... Duvida, não é? Pois, ouça!: O meu
moleque viu ontem pela meia-noite dois sujeitos receberem um embrulho aqui...
aqui nesta porta!... Era um embrulho grande, de panos enleados... O que foi
isso? Pela manhã, falta a menina... Então? o que diz? está aí com uma cara de
idiota a fingir...
- Veja que a senhora vai se excedendo...
observou o carpinteiro mudando repentinamente de modos.
O que está dizendo é um insulto.
- Insulto! Hipócrita, não admite-se que se
possa desconfiar do senhor?
Pois olhe! eu desconfio; e, se não vou mais
adiante, é porque não tenho outras testemunhas além do moleque...
- Então, cale a boca... Se o seu moleque...
- ... Mas ainda se há de saber de tudo... O
Eduardo vai partir, amanhã mesmo, para ***, onde a companhia está agora dando
espetáculos... Ele há de achar a Vevinha...
- Parto! parto! gritou Eduardo,
interrompendo a tirada de Juliana. Não vou amanhã... Vou partir agora, neste
instante!...
Não me demoro nem uma hora!...
Matias fazia coro à parte com sua risada
tossida, mordaz, irônica. Eduardo notou-o. Chamou a tia e desapareceu com ela
por uma porta que dava para os fundos da loja.
O carpinteiro cuspiu-lhes às costas o seu
riso mofador. Passados instantes, meteu a mão no bolso das calças e tirou um
maçozinho de notas do tesouro. Examinou-as e guardou-as depois.
- São minhas! murmurou.
Estas não me escapam!... Aqueles
idiotas!... Hão de achar... mas há de ser...
E fez um gesto com o punho cerrado.
II
No dia seguinte perguntava-se pelo
marceneiro Eduardo. Ninguém o viu na oficina como de costume; lá estava o
Matias sozinho. Era uma cousa curiosa. Depois da filha, o pai...
O que teria sucedido?
Que uma criança desapareça de um dia para o
outro... vá; mas um homem e que homem, um carpinteiro e que carpinteiro, o
Matias!?...
Ainda uma vez surgiu a perspicácia a dar às
tontas com a cabeça pelas hipóteses.
Houve alguém bastante ousado para afirmar
que suicidara-se o Eduardo. Este boato romanesco não pegou. Um outro espalhado pela velha
Juliana surtiu melhor efeito. Ficou estabelecido que o pobre Eduardo caíra
doente.
Três dias depois, soube-se a verdade. O
marceneiro Eduardo tinha partido. Para onde, não se sabia inda bem ao certo.
Falava-se que fora viajar para distrair-se.
- Ele tem seu cobre... pode fazê-lo, diziam
as comadres, palestrando sobre o caso.
Juliana, que fizera correr o boato da
moléstia do sobrinho, tinha resolvido deixar transparecer o que havia, sem,
contudo, dizer claramente os motivos da viagem de Eduardo. Queria apenas saciar
a curiosidade pública, que podia comprometer, com o rumo das indagações, o
segredo necessário à empresa que se propusera o sobrinho.
Não se tratava de matar a serpente Piton,
nem se exigia para a tarefa a robustez dos Hércules.
Eduardo, passada aquela espécie de loucura
que o inutilizara por algum tempo, formou pensadamente um plano de descobrir aVevinha.
Tinha a certeza de que a filha fora roubada
pelos saltimbancos. Empregar os recursos legais fora-lhe talvez infrutífero e
com certeza dispendioso. Nem todos podem usar dos instrumentos caros. O mais
útil, portanto, era entrar em campo ele próprio.
Habilidade não lhe faltava, força de
vontade, ele a tinha inexcedível; com alguma paciência e algum dinheiro tudo se
havia de levar a cabo.
Convencionou pois com Juliana que deixaria
a oficina ao seu sócio, dissolvendo a sociedade; para a liquidação das contas
com o Matias, passaria procuração a um amigo; e partiria a encontrar os
saltimbancos, a tomar-lhes a sua Vevinha.
Isto se devia fazer em segredo, a fim de
não se prevenirem os criminosos: E fez-se... O Matias, o único sabedor desses
planos, guardou silêncio, e sorria apenas, ironicamente; o leitor depois
saberá, porque... Nada transpirou até a revelação de Juliana.
- O Eduardo partiu...
Estava dito tudo. Só queria a curiosidade
pública que lhe informassem que fim levara o homem. Os motivos da partida não
preocupavam-na muito.
Espalhou-se que o pai da Vevinha fora fazer uma viagem,
aconselhado pela tia que, temendo pelo juízo dele, desejava distraí-lo.
Pouco e pouco se foi deixando de falar no
acontecimento. Era época de eleições. Os votantes (do antigo regímen)
preocuparam a atenção do público. Não se falou mais em Eduardo.
Qual o verdadeiro móvel, porém, da
resolução de Juliana? Seria unicamente acalmar aqueles que, não dando crédito à
invenção de moléstia, procuravam sequiosamente o marceneiro?
O móvel era este: o segredo absoluto
tornara-se cousa inútil.
Juliana recebera uma carta, que damos em
seguida, feitas pequenas modificações na forma:
"Querida Juliana."
"Que desgraça! Não encontrei a Vevinha! Os ladrões esconderam-na.
Ah! meu Deus! nunca supus que se sofresse,
fora do inferno, dores como as que me afligem neste momento. Não sei como não
me lanço ao rio. A água me afogaria, mas ao menos havia, de extinguir o fogo
que me desespera o coração...
Não chore, porém, minha tia: a Vevinha não morreu... E é isto que mais me
tortura... Eu sei que ela vive e não posso, abraçá-la... Ainda mais, sei que
está sofrendo; sei que, neste momento, onde quer que se ache guardada,
torcem-lhe os musculosinhos fracos, deslocam-lhe os pequeninos ossos.
Querem transformá-la em artista de circo, a
custa de martírios. Coitadinha! Tem só cinco anos!...
Oh! eu bem sei qual a vida dessas
desgraçadas crianças que se exibem como prodígios para divertir o público.
Torcem-nas como varas; pisam-nas como sapos, maltratam-nas, supliciam-nas e
levam-nas ao circo, os ossos deslocados, as vísceras ofendidas, vivendo de uma
lenta morte, as infelizes! a mendigar para si uns aplausos chochos e alguns
tostões para os seus algozes.
Desespera-me o pensamento de que nunca mais
a pobre Vevinha terá um daqueles sorrisos tão bons
que faziam o meu encanto e a alegria de sua vovô...
A pele fina e rosada do seu corpozinho
tenro se vai cobrir de vergastadas, de manchas roxas, vai sangrar!... e eu sou
forçado a conter-me para não me impossibilitar de salvá-la algum dia, de
vingá-la talvez!... Eis porque tenho a covardia egoísta de querer fugir aos
meus sofrimentos, matando-me. Que desespero!
Tenho sofrido tanto nestes dois dias, que
só hoje consegui arranjar estas linhas para mandar-lhe; também só hoje tenho
notícias positivas a dar-lhe a meu respeito.
Cheguei a *** às primeiras horas da
madrugada. As doze léguas de estrada passaram-me como o raio por sob as patas
do pobre cavalo que me tr9uxe. Deu-me cômodo agasalho o teu compadre Fonseca. O
bom velho ainda é o mesmo. Levantou-se da cama para me receber e tratou-me como
a um filho.
Acabo de entrar para a companhia do Rosas.
Meti-me na quadrilha dos ladrões! Custou-me um pouco, mas graças às recomendações
do compadre Fonseca que me apresentou ao diretor da companhia como um bom
mestre no meu ofício o tal Manuel Rosas admitiu-me como carpinteiro armador do
circo, ou, conforme diz-se na companhia factor de circo. Não se ganha muito,
porém o dinheiro que recebo é demasiado para o que eu queria fazer dele,
esfregá-lo na cara do raptor de minha desgraçada filhinha."
---
Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
---
Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário