OS PARRICIDAS
De um livro de M. Fornari, Professor
de Filosofia Hermética de Milão.
Atufado no grande leito, grande e suntuoso
como um catafalco, do sombrio aposento, eu revia, na indecisão imaginativa que
precede o sono, os incidentes da festa, meditando a legenda de mistério que
envolvia o castelo, que o fazia negro, mais do que os anos, sobre os alcantis
da encosta.
A câmara a que me tinham conduzido ficava
situada num dos ângulos mais afastados do edifício. Era uma espécie de cela
enorme de abadia, paredes de pedra, ladrilhada de pedra e cheia da atmosfera
especial dos lugares fechados e baixos. Do teto, construído em abóbada de um
mosaico colossal de madeira, pendia fixamente uma lâmpada de ferro. Apagada. Os
clarões da lareira divagavam pelas imensas paredes, escuras de umidade,
adamascadas de mofo, e, batendo por baixo as vergas de talha dos portais,
formavam sinistras esculturas e lances de sombra que subiam obliquamente.
As cortinas do leito defendiam-me em parte
da grandeza lúgubre do dormitório; mas era impossível que não sofressem as
idéias do influxo daquela encenação.
Pelo menos a isso quis atribuir a impertinência
de pesadelo com que me perseguia uma lembrança.
Correram, entretanto, animadíssimas as
bodas e parecia voltar para sempre a alegria à vivenda principesca, por tanto
tempo adormecida no encerramento secular e no silêncio, abrindo então as
janelas incendiadas de luz, acima da massa de arvoredo da planície, esturgindo
ao clamor festivo das músicas e dos brindes.
Pelos salões, a jovem noiva distribuía-se,
feita a graça, o encanto, o movimento do prazer de
todos. O noivo, o altivo de Sainville, distinto, correto, era apontado ao
passar, e passava sobre um tapete de comentários amáveis. E bem certo merecia a
sorte venturosa de possuir o coração e o futuro da criatura adorável que
desposara.
Uma cousa, porém, observei que envenenava
para mim a cordialidade das expansões: a expressão do rosto de Vildac, o senhor
do castelo e pai da noiva. Mau humor talvez de hipocondria; era, contudo,
insuportável aquele retraimento da testa, crispada de pequeninas rugas
verticais, geralmente fixas, às vezes móveis como víboras, aquele olhar,
relâmpago acerbo fuzilando a espaços, percorrendo a casa como a brisa da
meia-noite nas festas macabras. Dir-se-ia odiar a alegria, aquele homem. A
própria filha, a cândida noiva, não escapava à irradiação do olhar satânico
detido mesmo sobre ela frequentemente, como um auspício de maldições.
Bailava-me ainda no espírito o turbilhão
dos pares sob os lustres, vertigem de cores e pedraria iluminada; mas a
impressão dominante na memória era o olhar, aquele olhar duro e cruel.
As condições do aposento, vasto, onde os
reflexos do fogão perdiam-se como fantasmas, frio, que mal podiam aquecer os
toros em brasa, frio da umidade das lájeas, crescendo do chão, transpirando das
paredes, ilimitado para cima com o teto de trevas d'onde a lâmpada saía como solta
no ar, o pavor templário que eu sentia fora dos cortinados fazia avultar a
indisposição nervosa que me criara a maneira fisiognomônica do estranho
hóspede.
Pesava-me felizmente o sono e breve
repousaria da obsessão incômoda.
Esquecia-me já a acompanhar visões mais
raras, mais calmas, extintas e difusas, que me falavam ao ouvido a voz
carinhosa da noiva, que desmanchavam coroas brancas, coando sorrisos num véu,
que desfilavam silenciosas, parecendo-me ver a procissão austera dos antigos
habitadores do solar, velhos fidalgos mortos, um depois de outro lívidos e
majestosos, um depois de outro, infinitamente, cada vez mais vagos.
Ia adormecer, quando um rumor despertou-me.
Excitação nervosa sem dúvida, julguei.
Não. Era por cima do leito, dentro da
abóbada de madeira. Acentuava-se sensivelmente. Prestei ouvidos com a
respiração suspensa.
Exatamente sobre o teto de meu aposento
ficava a torre grande do castelo.
O rumor cresceu. Descia no interior da
muralha de pedra. Era como passos por uma escada e um barulho de ferros ao
mesmo tempo.
Instantes depois percebia mover-se uma
porta. O ruído dos passos e dos ferros tornou-se distinto. Violenta
horripilação sacudiu-me os membros. Levei instintivamente a mão à espada que
deixara à cabeceira e esperei a visita.
A nesga do cortinado deixava-me ver.
Naquele momento, acendiam-se pequeninas chamas na lareira perto da cama. Eu via
adiantar-se um grande velho, descabelado, curvo, de barbas abundantes, sobre a
nudez do peito espantosamente magro; o estômago fugia-lhe sob as costelas como
um buraco, um andrajo inqualificável pendia-lhe dos rins. Trazia correntes nos
pulsos e nos tornozelos. Pensei nas almas penadas.
O singular personagem, com um andar
difícil, doloroso, acercou-se do braseiro, tiritando. Estendeu os braços para o
fogo. Tinha frio o espectro.
- Ah! exclamou, este calor!... Há que
tempo... há que tempo não me aqueço!...
A voz cavernosa tremia-lhe como um gorjeio
de sensualidade inexprimível, debilíssima voz que parecia vir da terra ou de
longe, do fundo de um século.
D'onde chegava, com efeito, aquele
desgraçado? Ao meu primeiro abalo de temor sucedera a compaixão.
Vi-o olhar para o lado d'onde surgira
sentidamente e longamente. Olhou depois para o chão, entregando-se a uma dor
profunda. Ajoelhou-se e bateu muitas vezes com a fronte no ladrilho, soluçando
como um louco.
- Meu Deus! meu Deus! repetia com angústia.
A um movimento que fiz no leito, houve um
estalido. O velho ergueu-se.
- Quem está aí? gritou assustado. Há alguém
nessa cama?
Respondi sentando-me e arredando
bruscamente o cortinado:
- E quem me fala?
A minha presença foi de um efeito incrível.
Convulso, estrangulado pelos soluços,
asfixiado pelas lágrimas, o velho ficou muito tempo impossibilitado de falar.
Pediu-me com um gesto que esperasse. Faltava-lhe a voz.
- Sou, disse afinal, o mais desgraçado dos
homens, o mais desgraçado... Nada mais devia dizer. Mas é tão bom falar.. Há
tanto tempo que não vejo ninguém... Ah! eu devia calar-me; mas é tão grande a
ventura de falar a um dos meus semelhantes!...
Não é possível caracterizar o sentimento, a
miséria daquelas palavras naquela voz hesitante e longínqua.
- Nada tema, disse-me. Venha sentar-se ao
pé do fogo... Compadeça-se de mim, de um miserável. Seria um alívio ouvir-me os
infortúnios.
Sem hesitação fui sentar-me à lareira, bem
perto do velho. Esta prova de confiança comoveu-o. Tomou-me as mãos e cobriu-as
de pranto ardente.
- Homem de coração... Por que veio dormir
nesta sala onde ninguém habita?... E que rumores foram os desta manhã e desta
noite?... Que músicas?... Que novidade houve hoje no castelo?...
Quando informei que fora o casamento da
filha de Vildac, o velho ergueu os braços.
- Então Vildac tem uma filha?! E hoje
casou?!... Grande Deus! fazei-a feliz para sempre e... que sempre o seu: pobre
coração ignore o crime!...
Saiba agora quem sou... Eu sou o pai de
Vildac!... do bárbaro Vildac... Mas terei direito de queixar-me? Ah! Não me
cabe a mim acusá-lo...
- Como! exclamei com espanto. Como,
pois?!... Vildac é seu filho e o monstro o conserva preso?... Sem falar a
ninguém... carregado de ferros?!
- A cobiça! a cobiça! Ah! não sabe o que
pode a cobiça... Nunca houve sentimentos no coração selvagem do meu desgraçado
filho! Insensível à amizade, foi surdo até à voz da natureza. Para tomar-me a
fortuna, carregou-me de ferros...
Foi um dia visitar um dos nossos vizinhos
que perdera o pai. Achou-o no meio dos vassalos, muito atarefado a receber o
produto das rendas e das safras. Um pensamento diabólico apoderou-se-lhe da
vontade. Fechou-me o rosto. Notei-lhe uma transformação sombria. Um mês mais
tarde, alguns homens mascarados agarraram-me brutalmente, à noite, e seminu
trancaram-me na torre.
No outro dia, os sinos dobraram, por minha
morte. Aqui, do meu cárcere, ouvi os cânticos fúnebres, as preces, ai de mim
que pediam ao céu o descanso de minha alma...
Ah! Como me penetraram de tristeza aquelas
cerimônias!... Ao menos os outros mortos não ouvem... De então por diante, eu
não existia mais... E há vinte anos represento a triste comédia... Só não sei
para que algemas... Os mortos não fogem...
- Não! disse eu possuído de indignação, não
há de ser assim!
O velho prisioneiro interrompeu-me:
- Não desejo fugir... Quisera apenas dizer
a meu filho duas palavras... Os que trazem a comida consideram-me um criminoso
condenado a acabar nesta torre... E assim deve ser.
- Não! Há de deixar o cárcere... Fui
destinado pelo céu... hei de salvá-lo... Partamos... Todos dormem... Serei o
seu amparo, a sua defesa...
- Ah! meu bom senhor, mudaram-se muito os
meus princípios e as minhas idéias nesta soledade em que vivo. Tudo é
opinião... Agora, que me conformei com o que a situação tem de mais cruel, para
que trocar por outra? Que iria eu fazer pelo mundo?... Está lançada a sorte...
- Reflita! reflita bem! O dia vai romper...
Não sobra o tempo... Venha! vamos!...
- Comove-me este zelo, mas tão poucos dias
tenho para viver... a liberdade já não tenta... De mais gozá-la fora desonrar o
nome de meu filho...
- Ele é que se desonrou!...
- Mas essa inocente, que dorme agora nos
braços do esposo... Eu iria cobri-la de infâmia... Ah! quanto preferia eu
apertá-la ao peito, cobri-la de lágrimas. Por desgraça minha não hei de vê-la
nunca!... Adeus, generoso amigo... Vai amanhecer... Podiam ver-nos... Eu volto
à prisão.
- Impossível! protestei, detendo-o. Não
posso consentir. A reclusão enfraqueceu-vos o cérebro... Eu darei ânimo... Mais
tarde veremos se convém dar-se a conhecer... Saiamos primeiro... Ninguém
saberá; ocultarei ao mundo o crime de Vildac... Medo de quê?!
- Nada! Eu agradeço penetrado de
reconhecimento... Eu o admiro; mas tudo é inútil. Não posso acompanhá-lo.
- Pois bem!... Escolha... Prefere que eu
recorra ao governador da província. Revelarei tudo... Viremos arrancá-lo pelas
armas à desumanidade de seu filho!
- Oh! não abuse jamais da minha revelação!
Deixe-me morrer aqui...
E repentinamente, disforme, agitado, com
uma voz medonha, concluiu:
- Saiba... Sou um monstro indigno da luz do
dia! Há um crime, um crime que devo expiar... um crime infame... horroroso...
Veja o chão... Está vendo essas pedras... têm manchas de sangue... as paredes
também... Sangue por toda parte!...
Este sangue... é o sangue de meu pai... Eu
o assassinei... Queria também como Vildac!!!... Ah! estou a vê-lo... ali! ali!
Estende-me as mãos, os braços em sangue... Quer deter-me a fúria... Cai na
pedra! Oh! visão horrível! Oh! desespero!...
O velho preso arremessou-se às lájeas,
tirando punhados de cabelos brancos, contorcendo-se em convulsões de cólica,
sacudindo o rumor tilintante dos elos. Não ousava mais encarar-me...
O terror aniquilou-me.
- Está agora horrorizado, disse o pai de
Vildac, de pé, olhando-me atravessado. Adeus!...
E, com uma calma fantástica:
- Fuja de mim! Eu torno a subir para a
torre...
Quando mais sereno busquei combinar as
idéias e verificar se me iludira uma alucinação, o velho tinha desaparecido.
Ouvi ainda, mas quase imperceptível, na
abóbada, o último rumor das correntes.
Clareavam-se as vidraças com a polidez azul
das madrugadas de inverno.
Eu fugi do castelo, levando para toda a vida
o espanto desta aventura sem nome.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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