OS GATOS E OS CÃES
(PSICOLOGIA CANO-FELINA)
(PSICOLOGIA CANO-FELINA)
Desde o histórico amigo do bíblico Tobias,
que acompanhou-lhe o filho à miraculosa torrente d'onde devia sair o peixe
destinado a curar a cegueira do patriarca, até os celebrados cães de S.
Bernardo, passando pelo cão que lambia as chagas de Jó e pelo desrabado animal
de Alcebíades; desde o heróico e selvagem companheiro dos esquimaus, que arrosta
as temperaturas, levando em turbilhão o trenó, por meio das regiões brancas e
frias do ártico, até o mole e macio King-charles, saboroso companheiro dos longos
ócios tropicais das cocottes, tudo tem sido poemas em louvor do
cão.
Decantam-lhe a bravura; decantam-lhe a
fidelidade; incensam-lhe a beleza; elogiam-lhe a obediência; apologiam-lhe a
dedicação. Companhias de seguro gravam-lhe a efígie em douradas placas, para
garantia contra o fogo; honrados burgueses erigem-lhe estátuas de barro vidrado
sobre os capitéis de pedra e caldos portões da chácara: tudo é um aplauso
unânime e universal.
Entretanto, o gato, o bravo vigilante das
horas mortas, sentinela perdida da meia-noite, passeando à luz misteriosa do
luar com os olhos faiscantes como baionetas, para tranquilidade dos armários e
para desgraça dos roedores caseiros; entretanto, o digno gato, o honrado gato,
deixam-no de lado, no esquecimento silencioso das suas passeatas noturnas;
caluniam-no, excomungam-no e o desamparam, quando muito, aos esqueléticos
carinhos de alguma velha bruxa semifantástica, amiga dos morcegos, dos mochos e
das caveiras de burro fatídicas.
Pobre gato!
Nos seus minutos de cisma, quando, pousado
no peitoril claro de uma janela da casa que habita, lambendo as patinhas e as
munhecas asseadas, o gato reflete nos destinos da vida, talvez esteja a pensar
consigo, que muito pouco lhe custaria apanhar a glória do cão. Bastava-lhe o
sacrifício da própria dignidade; bastava-lhe alienar a sua autonomia felina e
pôr de lado os seus orgulhos de sangue.
A glória do cão vem somente disto; o cão
escravizou-se.
O gato nunca teve um dono.
Nestor de Roqueplan escreveu que o gato não
é animal doméstico do homem: o homem é que é o animal doméstico do gato.
Tinha razão o perspicaz e fino Roqueplan.
Quando se diz: - este gato é meu, diz-se: -
eu sou deste gato.
E o motivo é límpido: quando o dono não agrada ao gato, o digno
animalzinho deixa-o como quem abandona um traste velho.
Toda a fanfarronice trovejante do cão
pode-se-lhe domar a chicote. Ensaie-se a violência com o gato...
O cão dedica-se, sacrifica-se por conta do
seu dono, nunca por conta própria. O cão é fiel, bravo, dedicado, sublime; mas
infamemente. Tem a dedicação, a bravura, a fidelidade, a sublimidade do infame,
do escravo. No fundo das suas ações acha-se a vontade do dono; nas suas
decantadas bravuras, o cão não existe.
O gato, ao contrário, é autonomista. É
valente, heróico, sagaz, cheio de inteligência, mais talvez do que o cão, e
tudo nobremente, convictamente; certo de que, antes de tudo, ele é Feliz.
Sente nas veias o sangue quente do tigre;
lembra-se que os da sua raça terrível vagam pelas florestas, como reis, em
guerra de morte com o homem, que lhes invade o império; recorda-se talvez do
bafejo quente das soalheiras de Bengala, onde rejubilam-se os seus congêneres,
olhando de frente, através da ramaria, o perfil religioso e enorme dos pagodes,
arraial dos homens; esperando bravamente o combate, na mata virgem no arraial
das feras.
O gato sabe que é um pequeno tigre; que
podia embriagar-se de floresta como os seus irmãos de raça, e que, menos
inflexível que os outros, quis entrar em aliança com o homem, por iguais
interesses das partes contratantes. Possuída desta convicção, é que a digna
criatura desenvolve os seus talentos, na casa dos homens. Incapaz de uma
baixeza, vai vivendo à medida dos seus recursos. Se alguém o acaricia, ele
aproxima-se, contorcendo-se mansamente, em afetuosas ondeações de espinha, e
entrega-se confiado ao amigo...
Despreza solenemente o cão, ama
lascivamente o sol e as claridões. Quando roça-lhe o pêlo de cetim um feixe de
luz solar, enrodilha-se todo, dorme e ressona como um prior satisfeito. Não
treme, à beira dos precipícios, como os cães.
A vertigem das cimalhas é o seu prazer. Não
se deixa levar às feiras como qualquer botocudo idiota, ou qualquer cãozinho
pretensioso e fútil. Tem habilidade, mas para o seu uso.
Não sabe cair grotescamente como um burguês
gordo que tropeça, ou como um rei velho que escorrega. A sua queda é elegante
como a de César. Cai sempre firme, sobre as quatro patas, venha de que altura
for. Não conhece o estigma da coleira, nem a perseguição aviltante do fiscal.
Tudo diverso do cão.
A cadela é a charra odaliscazinha das
sarjetas. O cão é o bandalho de esquina que vai, de pontapé em pontapé, acabar
com lepra num cano de esgoto.
Entretanto, os amores do gato são trágicos
como as punhaladas dos Bórgias. Passam-se à noite, como os grandes meteoros do
céu e as cousas fantásticas da terra.
Podem ter por confidentes a estrela d’alva
e a cotovia matinal, como os amores de Romeu. Os gatos batem-se pela sua dama
como os heróis da cavalaria e como os tigres da mata. São bravos e apaixonados
até o sangue.
Os sete fôlegos que lhe atribuem, ele os
despende sem avareza, quando em proveito da própria dignidade ou da própria
paixão.
A morte do gato é quase sempre um mistério.
Não morre; desaparece como o Rômulo sagrado da lenda. Não dá-se ao luxo canino
de apodrecer nas praias.
Assim é que bem se consola o gato, nos
tácitos queixumes das suas cismas...
O cão tem incensadores que o exploram e que
o infamam.
Tem golilha, como um forçado; como um
escravocrata, não tem vergonha.
Esta falta de brio e essa coleira levam-no
a toda a parte, encadeado ao homem. Penetra no convento com a mesma cara com
que barafusta pelo teatro; segue a trote miúdo o préstito triunfal das ovações,
e vai depois acompanhar a mula do carvoeiro; visita os templos da virtude e os
gineceus da vergonha, sorrindo sempre, baixamente, com a cauda e com a língua.
Adula sem fazer questão de lugar.
Ambiciona só isto: - um osso. Mas não
desdenha os bons bocados dos banquetes, nem o sebo nauseabundo dos trilhos da
rua...
Glória por tal preço... Antes a secular
obscuridade nobre do gato. Faltam-lhe tradições, porque falta-lhe a escravidão
e a infâmia.
Em última análise, o cão é um miserável.
Fora da linha dos animais, por uma
degradante domesticidade, não conseguiu entrar pela fileira dos homens. O gato
conserva orgulhoso o seu tipo definido de fera dócil. Não balança nas
oscilações da natureza humana, porque tem as suas próprias, da natureza felina.
O cão, seja lícito dizer-se, é o homem
através do temperamento canino.
O gato é simplesmente, nobremente, - o
gato.
Por isso é que nas alegorias, entra o gato
como pilhéria e o cão como insulto.
Enquanto um atravessa, risonho, à
disparada, por uma página de caricatura, vai o outro de envolta com uma panela
de lama para a cara de um tratante.
Há uma cousa entre os homens que chama-se
cinismo: é a arte de ser cão. A arte de ser gato ainda não foi inventada; nem
há de ser.
Em suma derradeira indenização do sempre
olvidado gato - de todas as criaturas que podem ser atreladas a uma verrina
crepitante e vingadora, burro, jumento, touro, tigre, hiena... nenhuma, nem uma
só, leva mais longe do que o glorioso inimigo do gato.
- Cão!
Este insulto tem mais alguma cousa do que
três letras; tem três pontas como o chicote siberiano.
Esta palavrinha curta, áspera, rápida, se
ainda não é o faz o mesmo escarro, já passou de articulação.
Digam-na para ver se a garganta não quando
cospe-a e quando cospe um escarro:
- Cão!
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Damos publicidade a estas estranhas
considerações que o acaso entregou-nos, para não desesperarem da justiça os
raros amigos do simpático e sempre olvidado povoador dos telhados.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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