
CONTO DE FADAS
Contra-sensos de atavismo. Algumas vezes
nascem príncipes da poeira humilde das ruas. Não da espécie dos conspiradores
felizes, que fazem da própria nulidade original arma de guerra e lutam e sobem,
cobrejando através dos conhecimentos até campear triunfantes sobre o domínio
dos homens, não: verdadeiros príncipes, que o são ao nascer; que têm a púrpura
do manto diluída em glóbulos de altivo sangue, absolutamente a salvo da embolia
mortífera que a impureza do ambiente da sua miséria poderia ocasionar;
príncipes nobilíssimos, que têm a força do emblemático cetro vertebrada em
espinha dorsal, inflexível às humilhações da sorte, e no olhar firme, sem jaça,
que lhes clareia a testa, a majestade dos diademas.
Podemos encontrá-los, ao dobrar uma
esquina, em andrajos, face cavada pela necessidade e pelo suor, - lágrimas de
fadiga.
Pesa-lhes mais que a ninguém a fatalidade
arquitetônica do edifício social, que obriga a superposição dos andares e a
inferioridade do baldrame.
São oriundos desta raça os piores
criminosos e os revolucionários sublimes. Entre estes extremos há, porém, o
meio termo, mais comum, dos obscuros que sucumbem, bloqueados na vaidade
inflexível da imaginária realeza.
"Impossível! monologava Aristo. Com os
diabos! É uma solução arrebatada, que não me entusiasma. Suprimir-me! É boa! e
o meu lugar no refeitório da vida? Então não há um talher para cada um nesta
mesa redonda, como não há, no campo, um figo para cada pássaro. Quem me privou
do figo nesta partilha? Implorar... Mas haverá pássaros mendigos? Há
criancinhas que esmolam cantando; nenhuma outra miséria conheço que cante; não
há lágrimas aladas; a própria chuva, porque parece pranto, cai na terra. Não
será, pois, a vida como o espaço, e as aspirações como um vôo? Ah! mas
reflitamos com justeza.
E o que pensarão os figos, desta vida? Que
opinião a deles sobre os pássaros e sobre as aspirações? Também, pobrezinhos,
têm um coração que palpita insensivelmente. Abri um figo; vereis a polpa
ouriçada de pontas sangrentas... Como não? os frutos sangram! Têm todos os
direitos da maternidade... Não respeitais a maternidade?... inclusive o
Santíssimo direito da dor! Percebo, percebo. Há homens-figos, há
homens-pássaros. Sim! mas eu, figo!... uma figa! É preciso que um degrau se estenda
embaixo, para que outro degrau se estenda em cima, e a escada suba?...
Eu trabalhei o ferro. Como me compreendia o
másculo metal, parente da energia inflexível de meu gênio! Não me valeu a força
de operário: faltou-me a habilidade de mendigo. Trabalhei então o pano. Homens
do dispêndio, mantenedores da indústria, não sabeis de que tecido se fazem as
ricas vestes. Passaram fibras de coração pelos teares; tingiram-se os padrões
com as cores escuras da miséria. Conheceis os rebanhos humanos encurralados nas
fábricas. O carneiro dá a lã. Toda essa lã puríssima: sensibilidade,
delicadeza, pudor, altivez, de que se faz a superioridade moral, se apara ao
rebanho humano.
Este precioso estofo: vedes esta rosa entre
folhas, labiada em pétalas esplêndidas sobre a trama da tecelagem? É a honra de
uma operária, a infâmia feita tinturaria. Não quiseram que eu visse o que eu
vi, nem que, vendo-o sentisse.
Passei a ser compositor. Ia encontrar de
frente o pensamento, como encontrara a indústria. Maravilhou-me a infinidade
dos tipos nos caixotins, palavras reduzidas a migalhas, idéias pulverizadas!
Criei amor ao estanho dos tipos. O estanho vale mais que o bronze; porque se de
bronze se pode fazer o glorioso escritor, de estanho se faz o livro. Ao metal
do gloriado prefiro o metal da glória.
Deram-me a compor esta frase de um poeta: Filosofia do mar: os menores
peixes, devoram-nos os maiores. Assim os homens.
E nesse dia não compus mais. E odiei o
estanho; voltei definitivamente às velhas simpatias pelo ferro."
E Aristo amaciava na palma da mão o ferro
de um punhal, com a alma varada pela meditação cruciante, sentindo
rasgar-se-lhe aos pés a aberta por onde, mais dia menos dia, nos escapamos
todos para a sombra.
- Aristo, vem comigo; disse-lhe alguém ao
ouvido, - uma pequenina voz de mulher, áurea e musical.
Era uma visão de risos, trajando o vestido
etéreo dos sonetos de Petrarca, maneando a haste leve de uma varinha de fadas.
Donde vens, desertora gentil dos contos da infância, graciosa importuna do meu
desespero?
- Anda comigo, Aristo. Partamos para a
independência feliz.
E partiram, Aristo e a fada, para uma
região fantástica e surpreendente.
Céu vasto, de transparência inexprimível.
As alvas nuvens, por uma superfluidade de asseio iam, como esponjas,
esfregando, uma a uma, as safiras limpas do céu. Cobria-se a terra de pedraria,
poeira cintilante de gemas; erguiam-se taludes de facetado cristal. Estranha
vegetação brotava. Perfeita floresta de ourivesaria. Troncos de ouro lavrado e
folhagem soldada a fogo. Através dos ramos reluzentes, a viração ia e vinha,
fria do contato metálico da selva, sem que o mais débil galho tremesse, sem que
a mínima flor vacilasse no hastil. Às vezes, a um sopro mais forte, soltava-se
um ramúsculo com um estalido seco de agulha partida, ou uma flor desarmava-se,
e as pétalas caíam, produzindo o barulho de moedinhas pelo chão. Nenhum outro
rumor, nem um perfume, nem uma vida, em toda a paisagem, imóvel e rutilante.
Desaparecera a fada com o rosto em risos e
o vestido celeste, que descansavam a vista da crueza das cintilações.
Brilhava no ar, terrivelmente, a claridade
verde dos reflexos combinados das safiras do céu e do ouro da floresta.
Horas passadas, Aristo teve fome;
exacerbou-lhe a sede a secura cáustica do ambiente. Descobriu pomos no arvoredo,
inchados de maturidade, e gotas de orvalho no cálice das flores. Mas, quando
quis trincar os pomos, quebravam-se-lhe os dentes contra a rija resistência da
casca dourada, e bebendo orvalho, puríssimos diamantes aliás, foram-lhe as
arestas da pedra, ensanguentar o esôfago.
- Maldição! maldição! Que me trouxeram ao
inferno da pureza e da inflexibilidade!
A fada, aparecendo:
- Eu sou, pobre Aristo, a fada Ironia.
Guiei-te à pátria inexorável do teu orgulho.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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