CARICATURAS REAIS
ESTOU ROUBADO!
Estou roubado! exclamou o Tancredo num dia
de expansões.
Ele tinha expansões. Era do seu caráter
exibir-se de vez em quando voltado ao avesso. Punha na rua todas as franquezas.
Franquezas ou fraquezas, como queiram, porque no caso vertente Tancredo era
franco a respeito de si próprio.
Há no Norte o costume grotesco de andarem
os cafajestes, durante o entrudo, com os paletós virados, mostrando o forro e
as costuras, por causa do polvilho que se arremessa aos transeuntes. Tancredo
fazia uma cousa assim, mais ou menos. Quando estava de lua, lá saía... Todas
essas intimidades que o recato encobre, todo esse estofo que forma o avesso das
aparências sociais, ele punha à mostra. Inventava, no gênero cômico, o extremo
oposto de Tartufo. Exibia desabridamente o forro de si mesmo.
Alguns dias depois de casado encontra-se ele
com o primeiro conhecido. Era por um dia dos tais. Falam do consórcio.
Estou roubado! bradou Tancredo.
- Pois esse casamento não era o teu sonho
de ventura?!
- Ah! meu amigo. Enganei-me redondamente...
Sabes o meu gênio... Eu sonhava um amor de fogo. Chamas, chamas, chamas, um
amor vulcânico, feito de incêndio e lava, um inferno de amor que me calcinasse
o peito... Imagina lá que me saiu uma esposa fria!... Fria, meu amigo!... Estou
casado com o polo Norte em pessoa!... Lembras-te do Capitão Hatteras de Júlio Verne?...Minha mulher é
aquilo... Ora só a mim sucederia uma destas... Casado com um iceberg!
- Pois não a conhecias?
- Ora, qual! ver, amar, casar, foi o que
fiz...
"Sonhava uma mulher ardente, com
pólvora nas veias, capaz de voar pelos ares ao fogo da minha paixão. Qual
explosão nem nada!... Aos meus afagos, boceja! Desarma os meus carinhos com uma
frieza revoltante... Não sei a que expediente recorrer...
- Mas a tua esposa não te ama?
- Eu lá sei!... As mulheres frias amam
alguém neste mundo? O que afianço é que a minha cara-metade me congela... Não
sei como, a estas horas, não estou sorvete, exposto aos rigores daquele
inverno!... Inverno, meu bom amigo, inverno para mim que sonhava um matrimônio
de primaveras e verões. Quem diria! quando eu me inflamava ao fogo daquele
olhar... que naquele olhar não havia fogo! Tanto viço, tanta mocidade! e uma
frieza tamanha.
Ao vê-la, eu acreditava na embriaguez do
amor, na febre do sentimento, no vinho de Hebe e nos seus efeitos. Qual vinho
de Hebe! Puro Fritz, Mack & C. Ainda em cima, frappé!...
"Estou roubado! roubado nas minhas
ilusões!... Queria uma mulher... E o senhor meu sogro serviu-me uma cajuada!
Ora, cajuadas tenho eu no Leite Borges!... Banhos frios, de igreja... quando
tinha o meu chuveiro!...
- Homem, Tancredo, não acredito muito nessa
história de mulheres de gelo... A questão é achar-se a corda sensível...
- Qual corda sensível!... Minha mulher não
tem corda sensível!...
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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