sexta-feira, 8 de maio de 2015

Guerra Junqueiro: "Perfeição das obras de Deus”


PERFEIÇÃO DAS OBRAS DE DEUS


A filha. - Oh! mamã quebrou-se-me a agulha.

A mãe. - Vou-te dar outra.

A filha. - Como se fazem as agulhas, mamã?

A mãe. - Vê se adivinhas.

A filha. - Não Sei, mamã.

A mãe. - Conheces os metais

A filha. - Conheço mamã; tenho lá dentro muitos bocadinhos dentro de uma caixa.
A mãe. - Ora muito bem, dize-me lá, as agulhas são de pau, de pedra, de mármore?

A filha. - Oh! não; são de metal; mas de que metal?

A mãe. - Antes de perguntar qualquer coisa, vê sempre se a adivinhas primeiro.

A filha. - Ora espere!... uma agulha é de metal: não é de prata, porque não é branca; não é de ouro, porque não é de um lindo amarelo muito brilhante; não é de cobre, porque não é de um amarelo muito feio, que cheira mal... Então é de ferro, mamã?

A mãe. - Adivinhaste.

A filha. - Mas, mamã, o ferro não é liso e brilhante como as agulhas.

A mãe. - É que é primeiro polido e preparado de certo modo, e depois já se não chama ferro, é aço.

A filha. - Bem, as agulhas são de aço. Agora quero adivinhar como é que as fazem.

A mãe. - É impossível, não és capaz disso; mas hei de levar-te a uma fabrica onde se fazem agulhas. Hás de vê-la fazer, e hás de gostar muito.


A filha. - Tinha vontade de saber como se fazem todas as coisas de que nos servimos.

A mãe. - Tens razão; é uma vergonha ignorá-lo.

A filha. - Mamã, deixe-me ver as suas agulhas.

A mãe. - Olha, aí tens o meu estojo.

A filha. - Meu Deus! Que pequeninas algumas! Que lindas! São tão fininhas, tão fininhas!... Muita habilidade há de ser necessária para fazer uma coisinha tão delicada!

A mãe. - Lembras-te de ver na feira um carrinho de marfim puxado por uma pulga, presa por uma cadeia de ouro?

A filha. - Lembro, mamã; era tão bonito!

A mãe. - Li num jornal alemão que um operário chamado Nerlinger fez um copo de um grão de pimenta, e que dentro deste copo havia mais doze...

A filha. - Que pequeninos deviam ser os doze copos para caberem num grão de pimenta!

A mãe. - E ainda não é tudo; cada um desses copinhos tinha as bordas doiradas, e sustentava-se no pé.

A filha. - Que vontade eu tinha de ver isso!

A mãe. - Tens razão de te admirares da habilidade dos homens. É Efetivamente espantoso, e deve saber-se, o modo porque se fabricam certas coisas; contudo ainda há outras obras mais dignas de admiração.

A filha. - Quais, mamã?

A mãe. - Já t'o digo. (Levanta-se.)

A filha. - Que quer, mamã?

A mãe. - Quero que vejas o microscópio de teu papá.

A filha. - Pois sim; eu gosto de olhar pelo microscópio.

A mãe. - Este é magnífico, e aumenta prodigiosamente os objetos. Vais ver a mais pequenina das minhas agulhas. Repara primeiro como é fina, lisa e brilhante... Agora olha; o que é que vês?

A filha. - Meu Deus, que coisa tão feia! que agulha tão grosseira!

A mãe. - Vês-lhe buracos, riscos, asperezas, não é verdade?

A filha. - Parece um prego muito grande e muito mal feito.

A mãe. - Pois todas essas imperfeições são verdadeiras, existem na agulha; a nossa vista, por ser muito fraca, é que não dá por elas.

A filha. - O operário que fez esta agulha ficaria envergonhado, se a visse ao microscópio.

A mãe. - Tiremos a agulha, e vejamos outra coisa.

A filha. - O quê, mamã?

A mãe. - O aguilhãozinho de uma abelha.

A filha. - Oh! que pequenino, que bonito!... Como é liso, como é brilhante!... Mas já sei que visto ao microscópio há de acontecer o mesmo que com a agulha.

A mãe. - Pronto: olha.

A filha (olhando). - É esquisito, mamã!

A mãe. - Então?

A filha. - Aumentou, aumentou como a agulha, mas não é áspero, pelo contrário, é perfeitamente liso... A agulha parecia que não tinha ponta, e o ferrãozinho da abelha tem uma ponta tão fina como um cabelo. Porque será isto, mamã?

A mãe. - É porque o operário que fez este aguilhão é muito mais hábil do que o que fez a agulha.

A filha. - Quem é esse operário tão hábil?

A mãe. - É o mesmo que fez o céu, os astros, a terra, as plantas e as criaturas.

A filha. - É Deus.

A mãe. - Exatamente. Pois não é Deus que fez as abelhas e todos os animais?

A filha. - De certo.

A mãe. - Foi ele por conseguinte que fez o aguilhão desta abelha; e aí tens porque o aguilhão é superior à agulha: é obra de Deus. Mas continuemos a olhar pelo microscópio. Aqui está um pedacinho de musselina finíssima. Olha pelo microscópio; o que é que vês?

A filha. - Vejo uma rede grossa, desigual, muito mal feita.

A mãe. - Aqui tens agora um pedacinho de renda delicadíssima.

A filha. - Essa estou bem certa que há de ser linda, mesmo vista pelo microscópio.

A mãe. - Então?

A filha. - É horrorosa... Parece feita de pelos grosseiros com grandes buracos desiguais.

A mãe. - As obras do homem são todas assim.

A filha. - Oh! mamã, vejamos agora as obras de Deus.

A mãe. - Sabes o que é isto?

A filha. - Sei, mamã, é um casulo de bicho de seda.

A mãe. - Os fiozinhos que o compõem são muito finos, muito lisos; olha pelo microscópio a ver se te parecem desiguais.

A filha (olhando pelo microscópio). - Não, mamã; os fios são todos iguais, e o casulo é sempre muito liso, muito brilhante.

A mãe. - É porque é obra de Deus. Examinemos outras coisas. O que há sobre este papel?

A filha. - Pontinhos feitos com tinta e manchazinhas redondas feitas também com tinta.

A mãe. - Estes pontinhos e estas manchas parecem-te perfeitamente redondos?

A filha. - Sim, mamã, perfeitamente redondos.

A mãe. - Vê-os agora ao microscópio.

A filha. - Oh! já não são redondos, são todos desiguais.

A mãe. - Tira o papel; vejamos a obra de Deus. É uma aza de borboleta; vês que está mosqueada de pequeninas manchas redondas; olha pelo microscópio; o que é que vês?

A filha. - Vejo a mesma coisa que via sem o vidro, só com a diferença que agora é maior. Que belas que são as obras de Deus!

A mãe. - Merece bem a pena estudá-las.

A filha. - De certo. Farei sempre por isso, comparando-as com as obras dos homens.

A mãe. - E sempre e em tudo hás de encontrar defeitos nas obras do homem, enquanto que as obras de Deus, quanto mais se observam, mais perfeitas se acham. Deve isto fazer-nos meditar em duas coisas: a primeira é que Deus merece tanto a nossa admiração como o nosso amor; a segunda é que os homens orgulhosos são insensatos, porque não podem fazer nada perfeitamente belo, perfeitamente regular, e as suas obras mais primorosas são cheias de imperfeições, se as compararmos com as obras do Criador.


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Fonte
Guerra Junqueiro: "Contos para a Infância", Publicado originalmente em 1877. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015. Disponível digitalmente no Projeto Livro Livre

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