A VOLTA DAS
ANDORINHAS
Ficava no
beiral do meu telhado o ninho das andorinhas. Quando o trolha vinha remediar os
estragos da invernia (e então, no Minho, quando o vento sopra do Gerez, oh! Pai
do céu! por mais bem construída que seja uma casa, as telhas vão todas pelo ar,
como se fosse um pobre telhado de levadia!) eu tinha sempre o cuidado de lhe
recomendar:
— Se ainda lá topar o ninho, mestre, deixe-o
ficar.
Imagine-se
quanto custaria aquilo a um trolha, a um trolha que guarda sempre contra um
passarinho o mesmo ódio que um velho lobo de mar conserva implacável contra um
rato! Ter de remendar um telhado inteiro — façam ideia! — sem destruir um ninho
fofo, pendurado num beiral!
Como eu
habitava só, aquele ninho, ali, era quase como um outro andar da casa, onde
vinha passar o verão uma família minha conhecida. E eu tinha tanto zelo e
canseira em conservá-lo no mesmo sítio, muito arranjado e pronto, como se fosse
o caseiro daqueles alegres inquilinos!
As pessoas
da cidade não dão valor nenhum a estas coisas, e até se riem delas; mas nós, os
que vivemos na aldeia, temos um grande afeto pelas andorinhas, pelos melros,
pelas toutinegras, pelos pintassilgos, pelos rouxinóis, enfim, por toda a
passarada.
Os pardais,
esses então, é que não gostam nada dos figurões da cidade. E a gente do campo,
que lhes conhece o fraco, assim que eles espreitam cobiçosos as searas, dentre
os ramos folhudos dos carvalhos, dizem logo:
— Esperai, que já vos arranjo.
E espetam no
meio do campo um pinheiro muito alto, penduram-lhe uma vestia e põem-lhe por
cima, de um modo arrogante, um pouco para o lado, como se aquilo fosse um
grande janota — um enorme chapéu alto! Oh! fica admirável!
Poucos
pardais, por mais audaciosos que sejam, se atrevem com o figurão.
E a gente,
vendo-os, à tardinha, todos a chilrear na copa frondente do arvoredo, até
parece que os ouve dizer:
— Ainda lá está o espantalho?
— E estará, compadre, e estará!
— Se ainda se conservar até amanhã — acode o
mais atrevido — diabos me levem, se lhe não prego uma peça!
— Sempre queríamos ver isso! — desafiam os
outros.
— Pois então…
No dia
seguinte, quando o sol radiante inundava todo o trigal, às onze horas da manhã,
estava tudo a postos, tudo silencioso, para ver a partida.
O arrojado
observou atentamente pelos atalhos — que não fosse vir a rapaziada da escola —
e voou rápido dentre um sobreiro, como se o tivesse desferido o arco de uma
seta. Foi pousar direito na copa do chapéu alto do espantalho, e voltou-se
depois para os amigos, a chilrear com uma grande troça.
Por toda a
deveza estalou então uma gargalhada frenética dos outros, que observavam,
cheios de alegria, a imobilidade do janota!
Daí por meia
hora — é sabido! — estava a sementeira desvastada!
Uma bela
manhã, em meado de março, quando abri a janela do meu quarto, ouvi pipilar em
cima. Debrucei-me no peitoril, olhei para o beiral, e lá vi a andorinha, que
tinha chegado na véspera, à boca da noite, enquanto eu andava por fora.
— Bem! — disse eu comigo — já sei que tenho de
ir fazer uma visita.
Ao cabo de
meia hora, peguei no meu bordão, e pus-me a caminho pelo meio de uma bouça, que
ia dar à estrada.
Eu ia
visitar a sra. viscondessa, uma gentil viscondessa minha amiga, que chegava
sempre quando chegavam as andorinhas e floresciam as amendoeiras.
Ao
atravessar o pátio lageado, que precedia o velho solar da fidalga, estavam
ainda os criados, vestidos com blusas de riscadinho azul, atarefados na limpeza
da carruagem e dos cavalos. As janelas da casa estavam todas abertas. Sentia-se
que havia lá dentro uma criatura delicada, sequiosa dos perfumes balsâmicos dos
pinheirais, do ar puro, da luz, como aquelas plantas aquáticas, as ninfas, que
sobem do fundo escuro dos lagos à tona d'água para receber os raios quentes do
sol do meio dia!
Apenas
entrei no pátio, deparou-se-me a sra. viscondessa; e era mesmo uma pintura
vê-la, como eu a vi então, com a cabeça lançada para trás, os braços muito
erguidos, os seios aflantes, a aprumar-se, a subir, fincada no bico dos pés,
para lançar o painço na gaiola doirada de um canário, que estava pendurada, em
cima, entre os cortinados da janela!
Era lindo!
lindo!
Quem
primeiro aparecia a cumprimentar a fidalga era o sr. abade. E, então,
conhecia-se logo que havia novidade na terra, porque o viam sair da residência
todo asseado, de chapéu alto, cabeção de renda, a sua antiga sobrecasaca muito
comprida a bater-lhe no cano das botas, e apanhado na mão direita, de um modo
solene, o enorme lenço de seda da Índia com ramalhoças amarelas.
Feitos os
cumprimentos do estilo, o sr. abade sacava da algibeira a sua caixa de
tartaruga, e oferecia-a respeitosamente à viscondessa, como sinal da máxima
etiqueta.
E depois, ia
falando e cheirando alternadamente.
— Pois minha senhora…
E fungava
pela venta esquerda uma pitada de simonte, continuando:
— Este ano, o inverno, minha senhora, correu
mal! E Jesus! muito mal!
Depois, ao
outro dia, vinha a sra. morgada do areal flanqueada das suas duas filhas.
Aquilo é que era luxo! chapéus de plumas, vestidos de nobreza com três folhos,
manteletes de moir antique, e então o bonito era a profusão de pulseiras, de
broches, de brincos, tudo ouro antigo, ouro de lei, maciço, mas muito feio!
As meninas
não tiravam os olhos da viscondessa; e, como ficavam uma junto da outra,
acotovelavam-se às vezes, e segredavam:
— Vê, mana?…
— O que é? — perguntava a mais velha por entre
dentes.
— Agora já se não usa cuia! Ora repare.
A morgada
falava do amanho das terras, do peso da derrama, e às vezes para variar, dizia:
— Ora não estar cá pelo Santo Amaro! Havia de
gostar. É uma festa como poucas! Faça ideia, viscondessa: há arraial três dias,
há fogo preso, missa cantada, sermão…
E
arregalando os olhos, e meneando pausadamente a cabeça, exclamava:
— Sermão! mas que sermão!…
Quando
chegava a vez da minha visita, já a sra. viscondessa sabia todas as grandes
novidades da terra. Era assim castigada a minha preguiça!
— Então já sabe — principiava eu — o
comendador Antunes este ano despica-se!
— Ah! já me disseram — atalhava logo a
viscondessa — é ele o juiz da festa.
— É isso, minha senhora, é isso…
Vêem? Sabia
sempre tudo aquilo que eu tinha para lhe dizer!
Ora sucedeu,
que de uma vez, indo lá passar a noite, encontrei a viscondessa sentada em uma
voltaire, com a cabeça reclinada no espaldar, as pernas estendidas e os seus
pés graciosos pousados no rebordo de um braseiro.
— V. exa. contradiz as tradições da primavera!
— principiei eu, sentando-me ao seu lado.
— Não contradigo, meu caro — respondeu ela,
removendo com a pá o rescaldo esmorecido — a primavera é que está agora
conspirando contra os poetas, que lhe atribuem doçuras que não tem! Se o
calendário me não desmentisse, estava em jurar que o janeiro deste ano
aumentou, pelo menos, mais sessenta dias!
— Mas não está tanto frio, que se não
prescinda do fogão!
— Não está calor que o dispense.
— Pois não é das melhores coisas para a saúde!
— Ora que ideia! — opôs ela, a rir — Não me
consta que o fogão tenha sido o assassino de ninguém, tirante nos velhos
dramas, em que a heroína ludibriada pelo amante, procurava no acido carbônico a
solução do problema.
Suponham
como eu fiquei radiante de jubilo! Até que se me deparava ensejo de contar à
sra. viscondessa uma história que ela desconhecia!
— Pois, minha senhora, — principiei eu com
desvanecida firmeza — Filipe III, de Espanha, foi vítima do calor de um fogão!
E, se v. exa. me permite, eu vou referir-lhe como o caso se passou.
Aproximei a
minha cadeira do braseiro, expus os meus pés ao calor do rescaldo, para
contradizer com a postura o que afirmava com a palavra, e prossegui:
Estava el-rei,
assistindo a um conselho de ministros. Como fazia muito frio, diante de Sua
Majestade tinham colocado um brazero enorme. Passado pouco tempo, principiou
el-rei a transpirar, a transpirar cada vez mais e as faces a tornarem-se-lhe?
muito vermelhas. O conde de Pobar, que viu no rosto de Sua Majestade a aflição
que ele sentia, dirigiu-se ao duque de Alba, gentil-homem, e disse-lhe baixo
que mandasse retirar o braseiro.
— É contra a etiqueta — respondeu serenamente
o duque de Alba. — Isso compete ao duque de Uzeda.
— Filipe III voltava para o lado os olhos
suplicantes; mas não se atrevia a quebrar as regras da etiqueta atirando um
ponta-pé ao braseiro e aos cortesãos que o cercavam.
Mandou-se
chamar à pressa o duque de Uzeda; mas, por fatalidade, o duque de Uzeda nesse
dia não estava no palácio!
— E depois? — perguntou aflita a sra.
viscondessa, afastando-se do braseiro.
— Depois — continuei eu pausadamente estirando
mais as pernas — quando o duque de Uzeda chegou ao palácio…
— Hein? — perguntou de súbito a fidalga,
pondo-se de pé.
— El-rei estava morto! — conclui eu com voz
sinistra.
Apenas
proferi esta frase, abriu-se de repente a porta e entrou na sala o criado com a
bandeja do chá.
A sra.
viscondessa ordenou logo:
— André, amanhã não acenda o braseiro.
E eu,
oferecendo-lhe uma chávena, disse-lhe então baixinho:
— Já vê que se devem apagar os fogões, quando
voltam as andorinhas!
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Fonte:
Alberto Braga: Contos da Aldeia. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.
Fonte:
Alberto Braga: Contos da Aldeia. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.
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