quinta-feira, 28 de maio de 2015

Alberto Braga: "O galo preto"

O GALO PRETO
(A JOÃO DE DEUS)


Havia dantes em Penajoia — terra que ninguém é capaz de ver no mapa geográfico de Portugal — uma aula regia de primeiras letras.
A aula era em uma casa de um só andar, rente do chão. Ficava no meio de uma clareira, e tinha ao lado dois grandes sobreiros, que a abrigavam do sol, no estio, e que rangiam, no inverno, quando sopravam as rajadas do nordeste.
Os alunos entravam às oito horas da manhã, saíam ao meio-dia, para jantar; e voltavam depois às duas horas, para saírem às cinco da tarde. Alguns deles vinham de longe, meia légua, três quartos de légua de distância. Eram todos pequeninos e pobres. Saíam ao romper da manhã de suas casas, com o livro debaixo do braço, e a lousa das contas pendente de um cordão, lançado a tiracolo. No caminho, os que vinham de mais longe, iam-se reunindo aos condiscípulos que encontravam; jogavam o botão, ou, se era tempo, trepavam aos castanheiros para cruelmente roubarem os ninhos dos melros e verdelhões.
O mestre, que tinha sido um valente cabo de milicianos, era um velhote rabujo, de pelos nas orelhas, e que pouco mais sabia do que os alunos, que ensinava.
Um dia perguntei-lhe eu:
 — Diga-me cá, sr. Joaquim, que método adota?
 — Que método?! — exclamou ele, estranhando a pergunta. E depois, levantando as sobrancelhas, e com as sobrancelhas os óculos, fitou-me desconfiado, e respondeu com ar solene:
 — Adoto o método do Aquiles (do Axiles, foi como ele disse).
Mas, a despeito de tudo isto, era um tirano, como o são quase todos os ignorantes.
A aula, como já disse, ficava ao rés-do-chão. A luz entrava por duas frestas, que ficavam acima dois palmos da cabeça de um homem; porque assim era preciso — explicava o mestre — para que os rapazitos se não distraíssem, a olhar para fora. Ao fundo da sala ficava uma mesa de pinho e uma cadeira, que era o lugar do mestre. Depois seguiam-se bancadas de pau, colocadas como uma platéia, duas a duas, deixando ao meio um intervalo, por onde entravam os alunos; e, quando todos tinham entrado, por onde passeava gravemente o professor, com o livro em uma das mãos, e na outra um junco.
Os pequenos, assim que se aproximavam da aula, empalideciam.
E antes de entrarem, quem ali passasse, via-os muitas vezes ainda a repetirem a lição, trêmulos, enfiados e com a mesma coragem de quem tem de subir a uma forca!
O Gabriel era ainda um pequenote de sete anos. Morava ao pé do abade. E o abade, que era um santo velhinho, é quem muitas vezes lhe ensinava a lição. Por isso, e como o pequeno era esperto — ui! diziam os conhecidos, o Gabriel? esperto como um alho! — era o Gabriel que quase sempre ensinava a lição aos outros.
 — Como se lê esta palavra, Gabriel? dizes-me? — pedia-lhe de uma vez o
João do moleiro.
 — Soletra lá.
E principiou o outro:
 — P-h-i, pi.
 — Qual pi! Também eu cuidava! P-h-i, fi — emendou o Gabriel.
 — Fi! — exclamou o João, — Fi! Pêta! Tu enganas-me, Gabriel.
 — Não engano, João; lê fi¬, que foi como me ensinou o sr. abade.
Nisto, chegou à porta da aula o mestre.
Vinha a palitar-se, e com a face e orelha direita mais vermelhas, porque tinha dormido a sesta.
Chegou à porta e gritou:
 — Canzuada, salta para dentro!
E lá entram todos de chapeuzinho na mão, cheios de medo, como um rebanho de ovelhas a entrar para um matadouro.
Assim que o mestre tirou o livro da gaveta, em seguida a palmatória, e depois o lenço escarlate, de chita, fez-se um silêncio lúgubre na sala.
 — Lê tu, João — principiou ele.
O João do moleiro foi lendo, mas cada vez que se ia aproximando da terrível palavra, ia-lhe faltando o ânimo.
Dizer que P-h-i diz fi, que temeridade! Enfim continuou irremediavelmente:
 — E como a ciência chama… chama…
E ergueu suplicante os olhos para o verdugo.
O mestre tossiu para se dar ao respeito, e bradou:
 — Lê para bai-xo, me-ni-no — acentuando as silabas com um sorriso ameaçador.
 — Chamada — continuou o pequeno indeciso — chamada… e terminou em tom mais baixo, com a incerteza de quem não sabe o que diz — Filosofia.
 — Como? — bradou o mestre, descarregando-lhe com o junco pelas orelhas. — Como?
O pequeno fechou os olhos, encolheu os ombros, e emendou a chorar:
 — Fi-lo-so-fi-a.
O professor descarregou segunda juncada, e berrou:
 — Filosófia, burro, Filosófia!
 — Filosófia, — repetiu o pequeno.
Apenas o João do moleiro disse a palavra, levantou-se o Gabriel do seu lugar e declarou com a voz serena e com as lágrimas a saltarem-lhe dos olhos:
 — Snr. mestre, quem ensinou a dizer assim ao João do moleiro fui eu.
Oh! que escândalo, Santo Deus! O mestre ergueu-se de golpe. Os discípulos tremiam como varas verdes; e os mais pequeninos até choravam! Pudera! O que iria acontecer, Nossa Senhora! O mestre ia correr tudo a bolaria, não há duvida.
 — O que é lá? — gritou o mestre Joaquim com uma voz convulsa. — O que é?
E ficou a olhar para o Gabriel, inclinando com o indicador o pavilhão da orelha direita.
 — Fui eu que ensinei assim — repetiu o Gabriel assustado.
 — Vem cá — chamou de afogadilho o mestre — já aqui, seu atrevido. E bateu com a palmatória na mesa. O Gabriel pousou o livro no lugar e aproximou-se.
 — Aqui já.
O mestre descarregou-lhe nas mãozinhas tenras meia dúzia de furiosas palmatoadas.
Foi muito bem feito! Apre! Ofender a sabedoria do seu mestre!
* * *
De uma outra vez, de tarde, aconteceu passar o abade pela aula do mestre régio. Fora ouvia-se uma gritaria, que eu sei lá! parecia que o mundo ia acabar.
Á porta da aula estavam três pobres mulheres, cada uma com um filhinho ao colo.
 — Aí vem o sr. abade — disse uma delas. — Vamos pedir-lhe, mulheres.
Aquilo foi Nosso Senhor que o trouxe por aqui.
Abeiraram-se do abade, e imploraram-lhe que fosse ele pedir ao mestre que perdoasse por esta vez aos rapazinhos.
 — Então o que aconteceu? — perguntou o reitor.
 — Quem sabe lá, sr. abade! Eles berregam, que parece que os matam!
 — Se eu já até ouvi o meu Manoel, que é tão fraquinho!
 — E o meu João, sr. abade, que tão doentinho tem andado.
 — E o meu José! aquele que foi este ano à primeira confissão, sr. abade; sabe?
O abade dirigiu-se à porta e bateu.
 — Quem é? — perguntou de dentro a voz áspera do mestre.
 — Abra, mestre Joaquim, faz favor?
O abade entrou. Para os pequenos foi como se vissem a Providência.
 — Então o que lhe fizeram estes mariolas, sr. Joaquim? — perguntou o abade, olhando em roda para os alunos.
 — O que me fizeram? Roubaram-me dois lápis!
 — Oh! que grande pecado! — exclamou o abade, arregalando os olhos.
 — E é que nenhum confessa — explicou o mestre. E bradou, voltado para os pequenos — nenhum confessa, mas eu ra a i xo-os, aqui, todos.
O abade pôs-lhe a mão no ombro e serenou-o, dizendo-lhe:
 — Pois se nenhum confessa, é o mesmo; que vamos já saber quem foi.
Espere aí que volto já.
Saiu o abade, e, passados instantes, entrou na aula, precedido de uma rapariga.
Aproximou-se da mesa e disse:
 — Põe tudo aqui em cima, Josefinha. Assim. Agora vai-te embora.
A pequena pousou uma panela de folha, e tirou debaixo do avental um galo preto. O abade meteu o galo dentro da panela, cobriu-a com o testo, e principiou assim:
 — Fez-se um grande pecado! Roubaram um lápis! Quem rouba um lápis, é muito capaz de roubar tudo! Meus filhos, um de vós cometeu o crime; e não o confessa por vergonha. Ora, por causa daquele que roubou os lápis, vão padecer todos os mais. Aí tem! Em vez de só fazer um pecado, que Nosso Senhor lhe perdoava, se o confessasse e se arrependesse, vai cometer muitos: faltar à verdade, que é tão feio, e depois deixar que os outros sofram injustamente.
Os pequeninos ouviam o abade com religiosa veneração.
O abade prosseguiu:
 — Hão de vir todos, cada um por sua vez, pôr a mão sobre esta panela. O galo preto há de cantar logo que sinta sobre o testo a mão criminosa do que roubou o lápis. E fica assim conhecido o ladrão; o sr. mestre Joaquim há de castigá-lo, e eu não o quero ver mais. Ora, torno a dizer, se confessar está perdoado.
Na aula, silêncio profundo.
 — Nenhum se acusa? — disse o abade. — Venha o número 1.
Foi o número 1 e pousou a mão sobre o testo. O galo não cantou.
Foi o número 2, foi o número 3 e chegou até ao número 4.
Antes de chegar a vez ao número 5, todos os olhares convergiram para um canto da aula, de onde partiam uns soluços aflitivos.
 — Quem chora aí? — perguntou o abade.
Ergueu-se o Eusébio da Entrevada.
Era um pequenino de oito anos, muito pobrezinho, com um palmito de cara que estava mesmo a pedir pão.
Era um cinco reis de gente, o Eusébio.
 — É o da Empregada — explicou o do Moleiro.
 — Anda cá, menino — chamou o abade — anda cá. Tu porque choras?
O pequeno aproximou-se para justificar as suas lágrimas, mostrou ao reitor os dois lápis roubados.
 — Ah! foste tu, Eusébio?!
E Jesus! O pequeno chorava que era um dó do coração! E nem podia responder; apenas acenava.
 — Então foste tu. E, olha, para que os tiraste?
 — É que o sr. mestre — balbuciou o criminoso — disse-me que trouxesse eu um lápis, e eu não quis pedir o dinheiro à minha mãe, que está empregadinha na cama, e nem tem dinheiro para o caldo. E depois com medo de que o sr. mestre me batesse…
 — Pegaste num lápis. Foi assim? — concluiu o pároco.
 — Foi, sim, senhor.
 — Mas tu tiraste dois!
O pequeno desatou a chorar.
 — Para que tiraste dois? — insistia o padre.
 — Era — explicou o Eusébio — para quando se acabasse um!…
O mestre estava já de palmatória pronta.
O Eusébio estendeu resignado a mãozinha trêmula.
 — Basta — terminou o abade. — Eu prometi que se perdoava a quem confessasse. Para outra vez, querendo alguma coisa, vai-me pedir, ouviste? Que eu não tenho tempo de saber o que vos falta. Ora vai para o teu lugar, e promete que não tornas a fazer outra.
O mestre Joaquim sentiu muito não aplicar o corretivo.
 — Deixe lá, sr. Joaquim — dizia-lhe o abade. — É preciso muita misericórdia para tratar as crianças. Lembre-se do que dizia Jesus: Sinite parvulos venire ad me.
O mestre, que não sabia latim, mas que diante do curso quis ocultar a ignorância, respondeu a sorrir com ares de quem percebia:
 — Et cum spiritu tuo!

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Fonte:
Alberto Braga: Contos da Aldeia. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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