domingo, 22 de setembro de 2013

Virgílio Várzea: "Poente"

POENTE

Dezembro, de tarde.

Do alto e fresco varandim do palácio, dominando amplamente a paisagem em redor e o porto, ao longe, com as suas águas serenas e azuladas, manchadas aqui e além pelos cascos dos navios, os altos e finos perfis das mastreações e por pequeninas brancuras de velas, como asas, docemente roçando aquela superfície polida — contemplávamos tranquilamente e sorrindo, sobre o poente em chamas, um estranho amontoamento de espessas nuvens pardacentas, que, em lentas movimentações periféricas, se franjavam de repente de ouro vivíssimo, fazendo desenhos excêntricos, alados, originais e felposos como trabalhos de lã, em proporções ciclópicas, sobre um fundo de talagarça.

E à maneira que o monstruoso cúmulos se distendia, especado como um cabrestante em faina por faíscas de luz ao alto, semelhantes aos braços espaçados de um moinho gigantesco — distinguiam-se fugidiamente, empastados e extravagantes perfis de coisas, objetos e animais pré-históricos, predominando sobretudo, abundantemente, sucessivamente, como num apoucado recurso de artista estéril e rude, estampas de ursos descomunais e de adamastores titâneos.

E tu, então, adorada e carinhosa Amada, com os teus belos olhos embebidos na saudosa iluminação do crepúsculo, admirativamente, numa vivacidade alegre, rompias de vez em quando ao meu lado:

− Olha! Olha! — e apontavas com o teu dedo rosado — Vês aquela nuvem lá, do outro lado, solta no céu e só?... Parece uma cegonha voando...

E eu te olhava, e olhava a nuvem, enlevado na tua formosura e no encanto e na serenidade da hora.

− E aquela... esta de cá... meio clara... que está junto àquela outra, de um cinzento intenso... assemelha-se tanto ao Leão, o nosso bom e velho terra-nova... E essa outra... ali... bem ao centro, onde há um pequeno ponto de luz rubra, dir-se-ia como uma grande águia, de olhar em sangue, asa aberta no espaço, espreitando a presa... E lá no alto... aquele filete de algodão, como a torre de um farol que esmorece à distância, perpendicular e só naquele canto azul aberto... E ainda mais lá... além... dois imensos flocos de arminho, como dois corações... E movem-se ao mesmo tempo, e ligam-se, e fundem-se na luz radiosa do céu...

Arrebatado, e tomando-te as mãos rosibrancas, murmurei então:

− Sim, amor! São os nossos corações!...

E ficamos a olhar longas horas, docemente enlaçados, unidos e num embevecimento, aquele espetáculo encantador, onde as nuvens, em mutações caleidoscópicas, punham uma série infinita de visões na luminosa e opulenta vermelhidão do ocaso.

 Desterro — 1888


---
Nota:
Virgílio Várzea: "Contos de Amor" (1901)

Nenhum comentário:

Postar um comentário