SERMÃO SEGUNDO DO MANDATO
Sciens Jesus quia venit hora ejus ut transeat ex hoc mundo ad Patrem:
cum dilexisset suos, in finem dilexit
eos.
CAPÍTULO I
A batalha de Josué e a batalha do
amor de Cristo. O cavaleiro armado do Apocalipse. O novo competidor do amor de Cristo: o amor do
Eterno Padre no dia da Encarnação. As duas proposições do sermão: no dia da Encarnação amou tanto o
Padre aos homens que parece amou mais aos homens que ao Filho; no dia de hoje amou Cristo tanto
aos homens que parece amou mais aos homens que ao Padre.
Outra vez, Senhor, neste mesmo
dia, outra vez torno a falar de vosso amor. Dobraram-se neste dia os dias, dobraram-se e encontraram-se os
mistérios, encontrou-se consigo o mesmo amor, e pois ele no mesmo dia duas vezes nos amou tanto, por que
não diremos nós também duas vezes no mesmo dia, já que fizemos tão pouco? Vitorioso deixei hoje
o amor de Cristo, mas ainda neste mesmo dia lhe resta muito que vencer. Josué, para acabar de
vencer uma vitória, mandou parar o sol, e fez de um dia dois dias. Nós temos dois dias reduzidos a um só
dia, e nem por isso receio presentar hoje nova batalha, que nos não pode faltar luz onde o mesmo sol
é o combatente. Josué disse que nem antes nem depois houve tão grande dia como aquele: Non fuit antea nec postea tam longa dies
(Jo 10, 14). Mas o dia em que estamos - que
também compreende o antes e o depois - pelo que foi e pelo que é, é muito
maior dia. Uma só hora deste dia é muito
maior que todo aquele, porque aquele era dia de Josué, e esta é hora de Jesus: Sciens Jesus quia venit hora ejus.
Nesta hora, pois - que não será
mais de uma hora - sairá outra vez em campo o amor de Cristo também de amor a amor, e de dia a dia. Viu S.
João no seu Apocalipse sobre um cavalo-pombo um galhardo cavaleiro armado de
arco e setas Et ecce equus albus, et qui
sedebat super illum habebat arcum; logo viu que lhe punham uma coroa na
cabeça: Et data est ei corona - e que
assim coroado saiu já vencedor para vencer: Et
exivit vincens ut vinceret. Por este cavalo branco entendem os intérpretes
a sagrada humanidade, que sempre, como no Tabor, veste de neve. O cavaleiro
armado de arco e setas, as mesmas insígnias dizem que é o amor, e não outro
senão o amor do mesmo Cristo. Mas se já vinha vencedor e tinha recebido a coroa
da vitória, por que sai outra vez a pelejar e vencer: Exivit vincens ut vinceret? Porque o amor do nosso divino Amante,
quanto compete em amar, como compete hoje - cum
dilexisset, dilexit - não se contenta com uma só coroa, nem com uma só
vitória: coroa-se pare se tornar a coroar, e vence para tornar a vencer. Esta é
a não imaginada empresa que o tira nesta hora, não ao mesmo, senão a outro
major teatro. Esta manhã saiu a vencer a batalha; agora sai a vencer a vitória.
Mas, se na comparação de dia a
dia e de amor a amor, o amor de Cristo esta manhã se competiu e se venceu a si mesmo, que novo ou que outro
competidor pode haver maior, para que seja maior acompetência e maior a
vitória? É certo que só o Eterno Padre pode ser maior, do qual disse o mesmo
Cristo: Quia Pater major me est. E
porque este unicamente é o major competidor, o amor do Eterno Padre no dia da
Encarnação, e o amor de Cristo no dia de hoje, serão os dois altíssimos
competidores que esta tarde veremos contender - com tanta glória sua como nossa
- sobre qual deles amou mais aos homens. Em tudo o que Cristo, Senhor nosso
obrou nos mistérios do Cenáculo, já vimos que teve sempre adiante dos olhos o
dia da Encarnação e o dia de hoje: Sciens
quia a Deo exivit : eis aí o dia da Encarnação, Et ad Deum vadit: eis aí o dia de hoje. E assim como o Senhor
comparou um dia com o outro dia, assim também o Evangelista comparou um amor
com o outro amor. Do amor do Padre no dia da Encarnação tinha dito o mesmo S.
João: Sic Deus dilexit mundum, ut Filium
suum Unigenitum daret : e do amor de Cristo no dia de hoje, contrapondo
amor a amor, mundo a mundo e Filho a Padre, disse pelos mesmos termos: Suos, qui erant in mundo, in finem dilexit
eos. O in finem responde ao sic, e o sic e o in finem significam com
igualdade, e sem vantagem, o excesso de um e outro dilexit. Pondo, pois, de fronte a fronte, em competência igual, de
uma parte um dilexit e da outra outro
dilexit, de uma parte o amor do Padre
no dia da Encarnação, e da outra o amor de Cristo no dia de hoje, a resolução
de todo o combate em duas proposições será esta: no dia da Encarnação amou
tanto o Padre aos homens, que parece amou mais aos homens que ao Filho; e no
dia de hoje amou Cristo tanto aos homens, que parece amou mais aos homens que
ao Padre. Se alguém cuidar, entretanto, que isto é igualar, e não vencer,
depois verá que da parte do amor de Cristo foi vencer, e com a maior vitória.
CAPÍTULO II
O preceito de morrer e padecer
imposto ao Verbo feito homem. Os dois excessos do amor do Eterno Padre pelos
homens: tirou de nós as culpas e as pôs em seu Filho, e tirou de seu Filho os
merecimentos e os pôs em nós. O amor de Rebeca a Jacó. O pedido da mãe dos
zebedeus e o cálix da Paixão.
Entrando nas nossas grandes
proposições, e começando pela primeira, para inteira inteligência do que se há
de dizer, é necessário supor, com a melhor e mais bem fundada teologia, que
quando o amor do Eterno Padre deu aos homens seu Filho: Sic Deus dilexit mundum, ut Filium suum unigenitum daret não só
no-lo não deu com liberdade de viver quanto e como quisesse, mas com preceito e
obediência de morrer e padecer tudo o que padeceu por nó. Assim o tinha já dito
o mesmo Senhor, por boca de Davi: In
capite libri scriptum est de me, ut facerem voluntatem tuam, Deus meus, volui,
et legemtuam in medio cordis mei. É neste dia - como outras muitas vezes - fez
menção do mesmo preceito: Ut cognoscat
mundus quia diligo Patrem, et sicut mandatum dedit mihi Pater, sic facio. E
assim como no dia da Encarnação nos deu efetivamente o Eterno Padre seu Filho,
assim no mesmo dia, e no mesmo instante, o carregou destas pensões e lhe pôs
esta obediência, o que antes não podia ser, porque dantes o Verbo não era
sujeito ao Padre, e, tanto que encarnou e se fez homem, sim.
Isto posto, já que não podemos
compreender o amor divino pelo que é julgá-lo-emos pelo que parece.Digo, pois, que no dia da
Encarnação amou tanto o Eterno Padre aos homens, que parece amou mais aos
homens que ao Filho: Sic Deus dilexit
mundum, ut Filium suum unigenitum daret. O que muito encarece o amor do
Eterno Padre no dia da Encarnação é que desse por nós seu Filho, sendo único, e
não tendo outro: Filium suum unigenitum.
Se o Eterno Padre tivera dois filhos, muito fora dar um; e se dera um por
outro, já tínhamos grande argumento para cuidar e nos parecer que amava mais
este segundo que o primeiro. Dizei-me: se um pai tivera dois filhos, um livre
na pátria, e outro cativo em Argel, e para resgatar o cativo desse ou vendesse
o livre, não entenderíamos todos que este pai amava mais o filho cativo que o
filho livre? Claro está. E se este, que chamamos filho, não fora filho, senão
servo, não faríamos ainda muito maior conceito do excessivo amor daquele pai?
Pois isto é o que fez o Eterno Padre no dia da Encarnação. Ut sernum redimeres, Filium tradidisti: Estava o homem cativo pelo
pecado: qui-lo resgatar o Eterno Padre, e que fez o seu amor? Vendeu o Filho para
resgatar o servo.Hoje vereis o Filho vendido, amanhã vereis o servo resgatado.
Mais faz neste caso o Eterno
Padre, e tanto mais, que bastava só a metade do que fez para todo o bom
entendimento julgar que amou muito mais aos homens que ao Filho. O profeta
Isaías, no capítulo cinqüenta e três, em que prova a geração inefável de
Cristo, enquanto Filho do Eterno Padre: Generationem
ejus quis enarrabit? - pondera duas resoluções admiráveis do mesmo Padre, e
que de nenhum pai se puderam crer em respeito de seu filho. Por isso começa
dizendo, e como duvidando, se haverá alguém que lhe dê crédito: Quis credidit auditui nostro? E que duas
resoluções foram estas? A primeira que, para nos livrar tirou as nossas culpas
de nós, e as pôs em seu Filho: Posuit
Dominus in eo iniquitatem omnium nostrum; a segunda que, para nos
justificar, tirou os merecimentos do Filho e os pôs em nós: Pro eo quod laboravit anima ejus; justificabit ipse justus servus meus multos. Assim foi uma e outra
coisa. Tirou o Eterno Padre as culpas de nós, e pô-las em seu Filho, porque nós
não podíamos satisfazer à divina justiça por nossas culpas, e Cristo foi o que,
tomando-as sobre si, satisfez por elas. E tirou os merecimentos de seu Filho, e
pô-los em nós, porque Cristo não mereceu para si a graça nem a glória, nem nós
alcançamos, nem podíamos alcançar uma e outra, senão pelos merecimentos de
Cristo. Sendo, pois, certo e de fé, que o Padre tirou de nós as culpas, e as
pôs em seu Filho, e tirou de seu Filho os merecimentos, e os pôs em nós, quanta
fé é necessária para não crer que amou mais aos homens que ao Filho? Bastava só
um destes dois excessos, ou a metade deles, como dia, para que todo o mundo o
julgasse assim.
Rebeca tinha dois filhos, Jacó e
Esaú; mas o que mais amava era Jacó: Rebecca
diligebat Jacob (Gen 25, 28). E donde se prove este maior amor? Não só se
prova das palavras da Escritura, que é a primeira fé, senão também das obras,
que é a segunda. Todos sabemos que pertencendo a benção a Esaú, Rebeca com as
suas indústrias a tirou a Esaú, e a pôs em Jacó. E mãe que tire a benção a um
filho, cuja era, e a dá a outro filho, a quem não pertencia, e faz que o que
Esaú tinha trabalhado, suado e merecido, que o logre Jacó a mãos lavadas e sem
trabalho, claro está que a Jacó ama mais que a Esaú, antes que só a Jacó ama,
que isso quer dizer a palavra do texto: Rebecca
diligebat Jacob. Agora pergunto: e assim como Rebeca tirou a benção de Esaú
e a pôs em Jacó, tirou também algumas culpas de Jacó para as pôr em Esaú? Não.
Logo Rebeca não fez, não arremedou por amor de Jacó mais que a metade do que
fez o Eterno Padre por amor de nós, porque Rebeca só tirou a benção a Esaú para
a pôr em Jacó, e o Eterno Padre tirou a benção do Filho para a pôr no homem, e
tirou a culpa do homem para a pôr no Filho. Pois, se a metade só, ou uma
semelhança de a metade do que fez o Padre pelos homens, bastou para provar, e
ser de fé, que Rebeca amava mais a Jacó que a Esaú, dobrada prova tinha a nossa
razão, para cuidar que amou mais o Padre os homens que a seu Filho. Não foi
assim, porque ensina o contrário a fé, mas esteve tão perto de o ser, que
parece que o foi. Vamos a outros filhos.
Os excessos, a que o amor do
Padre sujeitou e obrigou a seu Filho no dia da Encarnação, foram tão
superiores, tão opostos e tão verdadeiramente contrários a tudo o que o amor
paternal intenta, ainda quanto mais empenhado, que para os entender é
necessário fingir. Quando os filhos do Zebedeu pretenderam as duas cadeiras do
reino de Cristo, e o Senhor lhes respondeu que, para subir à cadeira, era
necessário beber o cálix, se o amor da mãe, que fez a petição, fora tão
desigual como o de Rebeca, pudera replicar desta maneira: Aceito, Senhor, o
despacho, como tão próprio de vossa divina justiça, mas para que ela se
mantenha em todo seu vigor, e a esperança, que me trouxe a vossos pés, não
fique de todo frustrada, suposto que os meus filhos são dois, parta-se entre
ambos a minha petição, e também o vosso despacho. Mereça um com o trabalho, e
logre o outro o prêmio; beba um o cálix, e suba o outro à cadeira assente-se na
cadeira João, e beba o cálix Jacobo.
Se assim replicara a mãe dos Zebedeus, não havíamos de entender que amava mais
a João que ao outro filho? É sem dúvida. E posto que eu não digo que entendamos
o mesmo do amor do Padre, digo, porém, que saibamos que assim o fez. Para o
homem se assentar na cadeira da glória, segundo as leis e decretos da divina
justiça, era necessário que o cálix da Paixão se bebesse primeiro. E que fez o
amor do Padre? Partiu o cálix e a cadeira entre o Filho e o homem, e o homem
quis que subisse à cadeira, e o Filho que bebesse o cálix. Assim o disse o
mesmo Filho, falando de si e do Padre: Calicem,
quem dedit mihi Pater non vis ut bibam illum? E que não seja isto amar mais
ao homem que ao Filho? Tanta fé é necessária para crer que nos não amou mais,
como para crer que fez tanto.
Mas vamos com a parábola, ou com
o fingimento por diante. A mãe dos Zebedeus, como amava tanto a um filho como
ao outro, não pediu aquela partilha; mas se ela a pedira, e o Senhor lha
concedera, e Jacobo replicara uma e
muitas vezes que, pois João havia de levar a cadeira, bebesse também João o
cálix, e não ele, e a mãe, contudo, estivesse inexorável a todas estas
réplicas, e, sem nenhum movimento de
piedade, persistisse na mesma resolução de que Jacobo bebesse o cálix, e, finalmente, o obrigasse a isso, não se provaria nesta
segunda instância, ainda com maior evidência, que amava mais a João? Pois este
é o caso em que estamos, e assim o executou o Padre com seu Filho. Estando Cristo
no Horto deu licença à parte inferior da alma a que falasse por boca da
natureza e exprimisse todos os seus afetos; e o que disse foram estas palavras:
Pater omnia tibi possibilia sunt: si
possibile est, transfer calicem hunc a me: (Mc 14, 36; Mt 26, 39): Pai meu,
tudo vos é possível, e, se é possível que eu não padeça, transferi de mim este
cálix. Da mesma palavra transfer usa
S. Lucas (Lc 22, 42), e transferir é passar de um lugar para outro lugar ou de
uma pessoa para outra pessoa. Onde se vê que Cristo não pedia que o mundo se
não remisse, nem que o cálix se suspendesse ou derramasse, mas que não fosse
ele o que o bebesse, senão outro em quem se transferisse: Transfer calicem hunc a me. Por isso alegava a possibilidade desta
comutação, porque, como resolvem os teólogos, ainda que, para satisfação de
rigor de justiça, era necessário que o homem que houvesse de satisfazer fosse
juntamente Deus, de liberalidade porém e de graça, bem podia Deus aceitar a
satisfação de um puro homem. Falando, pois, Cristo neste sentido, a sua petição
foi como se dissera: Já que o homem pecou, pague ele pelo seu pecado, e já que
há de ir à glória que lhe não é devida, beba ele o cálix, para que de algum a
mereça. Beba ele o cálix, outra vez, e não eu, que nunca pequei, e sou a mesma
inocência. Beba ele o cálix, e não eu, a quem não é necessário ganhar ou
merecer a glória, pois que é minha. E que sendo esta petição tão justificada, e
de matéria não impossível, e fazendo-a o Filho três vezes, com tanta aflição e
eficácia, que chegou a suar sangue, que o Padre, contudo, invocado como Pai,
não ouça a primeira oração, nem ouça a segunda, nem ouça a terceira, e que
resolutamente queira e mande que, para que o homem se assente na cadeira, beba
o Filho o cálix, e, para que o homem pecador triunfe, o Filho inocente padeça,
excesso foi de amor, que excede toda a admiração. E que à vista de tudo isto
haja de cuidar o entendimento humano que, no dia em que este decreto se intimou
a Cristo - que foi o dia da sua Encarnação - o Padre, que assim o ordenou, não
amasse mais aos homens que ao Filho?
CAPÍTULO III
O sacrifício do filho de Abraão e
o sacrifício do Filho de Deus.
Ora, Senhor, eu já não quero
discorrer com suposições nem argumentos humanos, mas quero que vós mesmo nos
digais vosso parecer, para que veja-mos e vejais quão bem fundado e o nosso.
Quis Deus averiguar por experiência a qual de dois amava mais Abraão: se ao
mesmo Deus, se a seu filho Isac. A razão de fazer esta prova era muito bem
fundada, porque há muitos pais que amam mais os filhos que a Deus, e Abraão
verdadeiramente amava muito aquele filho. E que meio tomou Deus para
experimentar qual era o mais amado? Todos sabemos o caso. Manda a Abraão que
lhe sacrifique a Isac: Tolle filium tuum,
quem diligis, Isaac, et offeres eum in holocaustum. O quem diligis mostrava
bem o motivo do sacrifício. Toma, pois, Abraão ao filho, leva-o ao monte,
ata-o, e põe-no sobre a lenha, tira pela espada. Basta, diz Deus, já estou
satisfeito: Nunc cognovi quod times Deum,
et non pepercisti unigenito filio tuo propter me: Não perdoaste a teu
filho, e quiseste-o sacrificar por amor de mim? Claro está que me amas mais a
mim que a ele. Pois se isto, Senhor, vos pareceu a vós, por que me não parecerá
a mim o que digo? Não é o parecer meu, é vosso. Vós dizeis de Abraão: Non pepercisti unigenito filio tuo propter
me - e S. Paulo diz de vós: Proprio
Filio suo non pepercit, sed pro nobis tradidit illum. Se querer sacrificar
o pai ao filho por amor de Deus é amar mais a Deus que ao filho, sacrificar
Deus com efeito ao Filho por amor dos homens, por que não será amar mais aos
homens que ao Filho? Eu não posso dizer que é assim, mas Deus não pode dizer
que o não parece. Deus disse: Nunc
cognovi - e nós podemos dizer o mesmo, e com muito maior razão.
Abraão quis sacrificar o filho,
mas não o sacrificou; o Padre quis sacrificar o Filho, e sacrificou-o: Abraão
pôs o filho sobre a lenha, mas não lhe meteu o ferro: o Padre pôs o filho sobre
a cruz, e pregou-o nela com três cravos até dar a vida; Abraão, se deu um
filho, ficava-lhe outro: o Padre deu um Filho, mas não tinha outro, nem o podia
ter; o amor de Abraão foi forçado com o preceito: o amor do Padre foi livre e
espontâneo; o amor de Abraão foi misturado com temor: Nunc cognovi quod times Deus - o amor do Padre todo foi amor,
porque não tinha a quem temer, e só temeu que os homens se perdessem, que foi
maior circunstância de amor. Pois, sendo tanta a diferença de Pai a pai, de
Filho a filho e de amor a amor, se dar Abraão o filho por amor de Deus foi amar
mais a Deus que ao filho, dar Deus o Filho por amor dos homens, por que não
será amar mais aos homens que ao Filho? Parece-o tanto, que é necessário que a
fé nos feche os olhos, para crer que não foi assim.
Viveu, enfim, Isac, mas nem por
isso deixou Deus de aperfeiçoar o sacrifício: e como? Com um cordeiro que ali
apareceu preso pela cabeça entre uns espinhos: Arietem inter vepres haerentem cornibus. Este, diz o texto, que
sacrificou Abraão em lugar do filho: Quem
assumens obtulit holocaustum pro filio - e assim acabou em alegria aquela
famosa tragicomédia. Mas se neste último ato dela me fora lícito perguntar a
Deus, perguntara-lhe eu duas coisas: a primeira, se amava mais a este cordeiro,
que ali trouxe milagrosamente para ser sacrificado, ou a Isaac, a quem tirou da
garganta a espada do pai, e livrou do sacrifício? É certo que havia de
responder Deus que mais amava a Isac que ao cordeiro. E sobre esta resposta, a
segunda coisa que eu havia de perguntar é quem era aquele Isac e quem era
aquele cordeiro? E também é certo que me havia de responder Deus que Isaac era
figura do homem que estava condenado a morte, e o cordeiro coroado de espinhos
e sacrificado, figura de seu Filho, que morreu para que o homem não morresse.
Pois, se Isac foi mais amado que o cordeiro, e o cordeiro era figura do Filho,
e Isac figura do homem, por que não entenderemos nós, e se nos afigurará,
quando menos, que quando o Padre matou o Filho, para que o homem vivesse, amou
mais ao homem que ao Filho?
CAPÍTULO IV
A notável demanda das duas
mulheres diante de Salomão e o amor do Eterno Padre ao filho morto. A destreza da paternidade no apólogo de Sedulio.
Barrabás, filho do padre, propriíssima figura do primeiro homem. As invejas e ciúmes do amor do
Pai figurados na parábola do Filho Pródigo. Cristo, banquete do filho pródigo.
É tanto assim verdade que, postos
neste ato de uma parte os homens e da outra o Filho, e o Padreentre ambos, dos
homens parece que era Pai, e do Filho não. É juízo humano, mas de sabedoria
divina. Vieram duas mulheres diante de Salomão, com uma demanda notável.
Traziam consigo dois meninos, um morto, outro vivo: o vivo cada uma dizia que
era seu filho, o morto cada uma dizia que o não era. Que faria o grande rei
nesta perplexidade? Dividite infantem
vivum (3 Rs 3, 25): Parta-se o menino vivo pelo meio, e leve cada uma a sua
parte.-Ouvida a sentença, uma das mulheres consentiu e disse, parta-se, a outra
não consentiu, e disse viva o merino, e leve-o embora minha competidora. E qual
destas duas era a verdadeira mãe? A que disse viva o merino. Assim o julgou
Salomão, e assim era, porque a que disse morra mostrou que não amava; a que
disse viva provou que amava, e da que amava o menino desta era filho. Voltemos
agora o passo, e venha a juízo o amor do Eterno Padre. No dia da Encarnação
estava o homem morto, e o seu Filho vivo; e o Eterno Padre que disse? Disse:
morra o Filho, pare que viva o homem. Morra o Filho, e viva o homem? Logo do
homem é Pai, e do Filho não. Ali está o amor, e não aqui. A mãe do vivo amava-o
tanto que o quis vivo, ainda que ficasse alheio: a mãe do morto amava-o tão
pouco que antes queria o vivo alheio, que o morto seu. E o Eterno Padre, sendo
Pai do vivo, amou tanto o morto, que quis que morresse o vivo, para que o morto
vivesse. Vede se amava mais ao homem que ao Filho, e se do homem parecia Pai e
do Filho não. Se assim o havia de julgar Salomão, que muito é que a mim mo
pareça?
Sedulio, padre antigo, e poeta
ilustre da lei da graça, conta um caso admirável. Foi à caça um famoso tirador
da Tessália, e deixou um filho pequeno ao pé de uma árvore, enquanto se meteu
pelas brenhas.
Quando tornou, viu que estava
enroscada uma serpente no menino. E que conselho tomaria o pai em um caso tão
perigoso? Se atirava a serpente, arriscava-se a matar o filho; se lhe não
atirava, mordia a serpente o menino e matava-o. A resolução foi que embebeu uma
seta no arco e mediu a corda com tanta certeza, e pesou o impulso com tanta
igualdade que, matando a serpente, não tocou no menino. Pasma Sedulio da felicidade
do tiro, e diz assim: Ars fuit esse
patrem: Não cuide ninguém que foi isto destreza da arte: foi ser
pai.-Aquela serpente do paraíso enroscou-se em Adão e enroscou-se em Cristo: em
Adão, porque foi o autor da culpa; em Cristo, porque tomou a culpa de Adão
sobre si.Quis o Eterno Padre matar a serpente, mas como se houve? Faz um tiro a
serpente, que estava enroscada do homem, mata a serpente, e não toca no homem;
faz outro tiro a serpente que estava enroscada no Filho, mate a serpente e
passa de parte a parte o Filho. Pois ao Filho mata, e ao homem não toca? Sim.
Ao Filho atirou com tão pouco reparo, como se não fora seu Filho, e ao homem
com tanto tento, como se fora seu Pai: Ars
fuit esse patrem. Se o amor se há de julgar pelas setas, na do homem
mostrou o Padre que era Pai, na
do Filho que o não era. No dia de amanhã se viu isto mesmo publicamente e em
próprios termos.
Quando Cristo e Barrabás foram
propostos por Pilatos à eleição do povo, clamou o mesmo povo, solicitado pelos
príncipes dos sacerdotes: Morra Cristo, e viva Barrabás. Grande injustiça, mas
muito maior mistério, diz Santo Atanásio. E qual foi? Que logo na primeira
sentença com que Cristo foi condenado à morte, se visse publicamente, nos
efeitos dela, que morria e era condenado para dar vida e absolver condenados. O res mira, praeterque omnem opinionem.
Subit sententiam mortis Christus, et statim Barabbas absolvitur. Condemnationis
ingressus liberationis condemnatorum quidam ingressus fuit. O povo, que
costumava ser voz de Deus, sem entender o que diziam as suas vozes, foi o
pregoeiro da sentença do Padre, que primeiro tinha dito: Morra meu Filho, e
viva o homem. E vede como em nenhuma figura se podia melhor representar o caso,
que na de Barrabás. Barrabás, como dizem S. Lucas e S. Marcos, era ladrão e
homicida, e por isso propriíssima figura do primeiro homem, que foi ladrão,
roubando o fruto da árvore vedada, e homicida, matando-se a si e a todos seus
descendentes. E quando o Padre mata e condena o Filho para dar vida e absolver
o homem, qual deles diremos que é o Filho do Padre? Digo confiadamente que não
é, segundo parece, o Filho, senão o homem. Pois o homem, representado em
Barrabás, ou o mesmo Barrabás é o Filho? Sim, e outra vez sim, com milagrosa
propriedade, porque Barrabás na língua hebraica quer dizer: filius patris: o filho do padre: Barabbas filius patris latine dicitur,
diz Santo Ambrósio. E a razão da etimologia é porque bar em hebreu quer dizer
filho, e abbas quer dizer pai. De
sorte que quando o Filho é condenado, para que o homem se livre, e quando o
Filho morre, pare que o homem viva, então o homem se chama filho do Padre: filius Patris - porque o homem
verdadeiramente, neste caso, o homem parece que é o filho do Padre, e o Filho
não.
Ah! Filho de Deus, que não sei se
me compadeça de vós! O certo é que se de Deus pudera haver ciúmes, e no Filho de Deus pudera haver
inveja, caso e ocasião era esta em que Cristo pudera ter invejas dos homens e
ciúmes do amor de seu Padre. O mesmo Cristo o disse, ou descreveu assim. Quando
o pai recebeu o filho Pródigo com tanta festa, e matou o vitelo regalado - que
eram as delícias naturais daquele bom tempo - para lhe fazer o banquete, o
filho mais velho, que estava fora, e teve notícia do que passava, se mostrou
tão sentido e queixoso que, para entrar em casa, foi necessário que o pai
saísse a o buscar e dar-lhe satisfações. E quem era este pai e estes dois
filhos? O pai era o Eterno Padre; o Filho mais velho, Cristo que, enquanto
Deus, foi gerado ab aeterno; e o
filho mais moço o homem, que foi criado em tempo. Pois, se o Filho mais velho
era Cristo, como se mostra tão sentido dos favores e regalos que o pai fez ao
mais moço, que não só parece lhe tem inveja, senão ainda ciúmes do amor do
mesmo pai? A razão, é porque, consideradas todas as circunstâncias do mistério
da Encarnação do Verbo e redenção do gênero humano, são tais os excessos que
Deus fez pelo homem, e a diferença com que tratou a seu Filho, que, se o Filho
de Deus fora capaz de invejas, e no amor de Deus houvera lugar de ciúmes,
tivera o Filho grandes ciúmes do amor do Padre, e grandes invejas também ao
favor e regalo com que tratou os homens.
O regalo do vitelo morto para o
banquete é o de que o filho maior se mostrou mais queixoso, e o que
particularmente lançou em rosto ao pai. Mas tende mão, magoado e inocente
filho, tende mão na vossa justa dor e
sentimento, que a ocasião da queixa, do ciúme e da inveja ainda se não declarou
nem mostrou até onde há de chegar. Dizei-me se, em lugar do vitelo, que vosso
pai matou para vosso irmão, vos matara a vós, para da vossa carne e do vosso
sangue lhe fazer um novo prato, que excesso nunca visto seria este? Pois, sabei
que assim há de ser, e que dessa mesma carne e desse mesmo sangue, que hoje
tomastes, lhe há de guisar a onipotência, a sabedoria e o amor de vosso Padre
um tão esquisito manjar, que não tenha comparação com ele o maná do céu. Assim
foi, e assim o confessou o mesmo Cristo, publicando que a instituição do
Sacramento, antes de ser obra sua, fora dádiva do Padre: Non Moyses dedit vobis panem de caelo, sed Pater meus dat vobis panem
de caelo verum. A tanto chegou, a tanto se estendeu o dilexit do Padre no
dia da Encarnação, e tanto deu aos homens quando lhes deu seu Unigênito Filho: Sic Deus dilexit mundum, ut Filium suum
unigenitum daret.
CAPÍTULO V
No dia de hoje amou tanto o Filho
aos homens que parece amou mais aos homens que ao Padre. O dilexit da Encarnação e o dilexit
do Cenáculo. Se o mesmo Cristo a seu Padre chamava seu, e aos homens nomeava
variamente, segundo o pedia a ocasião, com tão diferentes títulos, como neste
dia muda o evangelista de estilo, e aos homens chama somente seus e ao Padre
não? O recado de el-rei Ezequias ao profeta Isaías. Como anunciaram os profetas
de Betel a Eliseu a partida de Elias?
Mas, se no dia da Encarnação amou
tanto o Padre aos homens, que parece amou mais aos homens que ao Filho,
contrapondo agora um dia a outro dia, e um amor a outro amor, vejamos também
como no dia de hoje amou tanto o Filho aos homens, que parece amou mais aos homens
que ao Padre. E, posto que o dilexit daquele primeiro dia nos abriu
mais largo campo e nos deu mais ampla e copiosa matéria, com as obediências
então impostas por seu Padre ao Verbo recentemente encarnado, cujas execuções
se estenderam até a hora da morte, à qual principalmente se ordenaram, e, pelo
contrário, o dilexit deste dia se
estreita e limita somente às ações de poucas horas, sem mais teatro que o de um
Cenáculo, nem mais campo que o de um Horto, espera, contudo, o amor de hoje
confiadamente que, sem sair da estacada, há de correr e quebrar as lanças com
tal esforço que se lhe não duvide a vitória.
Suos, qui erant in mundo, in finem dilexit eos. O que muito se deve
reparar nestas palavras do Evangelista, é que ao Padre chama somente Padre, e não
lhe chama seu, e aos homens chama somente seus, e não lhes dá outro nome. Ao
Padre. chama somente Padre, e não lhes chama seu: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem; aos homens chama somente seus,
e não lhes dá outro nome: Suos, qui erant
in mundo, in finem dilexit eos. Em quase todas as páginas do Evangelho
chama Cristo a seu Padre meu Padre, e do mesmo modo aos homens com que tratava,
umas vezes lhes chama servos, outras discípulos, outras amigos, outras filhos.
Pois, se o mesmo Cristo a seu Padre chamava seu, e aos homens nomeava
variamente, segundo o pedia a ocasião, com tão diferentes títulos, como neste
dia sinaladamente - Ante diem festum
Paschae muda o evangelista de estilo, e com termos nem antes nem depois
usados, aos homens chama somente seus: Suos
qui erant in mundo - e ao Padre não chama seu: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem? O certo é que S. João, como
secretário do peito e amor de Cristo, não saiu neste dia com uma novidade tão
singular, sem muito grande e bem fundada causa. Qual esta fosse, não me toca a
mim hoje especular: o que só pertence a meu intento é dizer o que parece. Digo,
pois, que esta palavra seu, quando não significa domínio, senão especialidade
como aqui - não só é denominação de amor, senão de maior amor. Apertado el-rei
Ezequias pelos exércitos dos assírios, mandou pedir ao profeta Isaías que
encomendasse a Deus aquela grande necessidade, e o consultasse nela: Si quo modo audiat Dominus Deus tuus verba
Rabsacis, quem misit rex Assyriorum ad blasphemandum Dominum Deum viventem et
exprobandum sermonibus quos audivit Dominus Deus tuus. Estas foram as
palavras do recado, nas quais é muito para notar que pede o rei a Isaías, não
só que encomende o caso a Deus, senão ao seu Deus: seu de Isaías, e não seu do
mesmo rei: Si quo modo audiat Dominus
Deus tuus; quos audivit Dominus Deus tuus. El-rei Ezequias e o profeta
Isaías ambos criam e adoravam o mesmo Deus verdadeiro. Pois, se o Deus do rei e
o do profeta era o mesmo, por que se chama Deus seu do profeta, e não Deus seu
do rei? A razão literal é porque esta denominação de seu não se funda só na fé,
senão no amor. Neste sentido dizia Santo Agostinho: O Deus, utinam possem dicere meus! Chamo-vos Deus, porque vos
creio, mas não me atrevo a vos chamar meu, porque vos não amo. Porém esta razão,
ou exceção, não tinha lugar em Ezequias, porque Ezequias era rei santo, e amava
muito a Deus. Pois, se Ezequias também amava a Deus, por que lhe não chama meu,
ou nosso, senão seu, de Isaías: Deus tuus?
Porque Isaías, como profeta de tão singular e levantado espírito, amava e era
amado de Deus muito mais que o rei, e que todos quantos então havia em Israel,
e este nome, ou título de seu, não só é denominação de amor, senão de maior
amor, nem só significa ser amado, senão mais amado.
É tão certa e tão geral esta
regra - para que se não duvide dela, nem pela parte do Padre, nem pela nossa - que
não só se verifica do amor para com Deus, senão também do amor para com os
homens. Quando Deus houve de levar para
o céu a Elias, assim os profetas de Betel, como os de Jericó, disseram a Eliseu
pelas mesmas palavras: Nunquid nosti,
quia hodie Dominus tollet dominum tuum a te (4 Rs 2, 3)? Sabes que hoje há
Deus de levar para si a teu senhor?-Assim chamavam por reverência a seu mestre.
Mas, se Elias, mestre de Eliseu, também era mestre de todos os outros profetas
que viviam naqueles desertos, por que não chamaram a Elias nosso mestre, senão
seu de Eliseu: dominum tuum? Era de
todos, e só de Eliseu era seu? Sim, porque entre todos os discípulos, o que
mais amava, e o mais amado de Elias, era Eliseu; e este nome ou prerrogativa de
seu, é tão própria e singular do maior amor que, sendo Elias seu mestre de
todos, de Eliseu só era seu, e dos outros não. Por isso, em confirmação do
mesmo amor e da mesma singularidade, não disseram que Elias os havia de deixar
a eles, senão a ele: tollet a te. E como o ser seu ou não ser seu é o mesmo que
ser ou não ser o mais amado, vendo nós hoje que, falando S. João do amor de
Cristo, aos homens chama seus: Suos, qui
erant in mundo - e ao Padre não chama seu: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem - que havemos de argüir ou
inferir desta diferença? Porventura havemos de inferir que ao Padre, que se não
chama seu, amou Cristo menos, e aos homens, que se chamam seus, amou mais?
Nenhum cristão é tão ignorante que lhe houvesse de vir ao pensamento tal erro.
Mas uma coisa é o que é, outra o que parece. Sempre Cristo infinitamente, e sem
nenhuma comparação, amou mais ao Padre que aos homens; porém, neste dia em que
o evangelista singularmente lhes chama seus, foram tais os extremos de amor que
o mesmo Filho de Deus fez por eles, que parece amou mais aos homens que ao
Padre.
CAPÍTULO VI
A primeira ação de Cristo neste
dia: o lavatório dos pés. O Padre estimou tanto ao Filho que tudo quanto tinha pôs nas mãos do Filho, e o Filho
estimou tanto aos homens que, com tudo o que o Padre lhe tinha posto nas mãos,
pôs as mesmas mãos aos pés dos homens. A diferença que vai entre entregar nas
mãos e por aos pés. Por que o único Pródigo que houve no mundo foi o Filho do
Eterno Padre? A segunda ação de Cristo: a Eucaristia, sacramento para os homens
e sacrifício para o Padre. A união de Cristo com o Padre e a união de Cristo
com os homens. As quatro partes do sacrifício. Assim como Deus não aceita a
oferta do homem, antes de o homem estar reconciliado com o próximo, assim
Cristo não se une ao Padre, antes de o Padre se reconciliar com os homens.
Ora, discorramos por todas as
ações de Cristo neste mesmo dia. sem sair dele, e veremos como todas confirmam
este parecer. Quando o amoroso Senhor deu princípio à primeira, que foi lavar
os pés aos discípulos, nota e pondera o Evangelista que se deliberou o Divino
Mestre a uma ação tão prodigiosa, considerando e advertindo que seu Padre lhe
tinha posto tudo nas mãos: Sciens quia
omnia dedit ei Pater in manus, coepit lavare pedes discipulorum. Muitas
outras vezes se faz menção no texto sagrado deste tudo dado a Cristo por seu
Eterno Padre: Omnia mihi tradita sunt a
Patre meo. Omnia quaecumque habet Pater, mea sunt. Omnia quae dedisti mihi, abs
te sunt . E em outros muitos lugares. Pois se tantas vezes se repete que o
Padre deu tudo a seu Filho, por que razão só neste lugar se diz que esse tudo
lho pôs nas mãos: Sciens quia omnia dedit
ei Pater in manus? Sem dúvida pela correspondência e oposição que têm as
mãos com os pés. O intento do evangelista era encarecer o amor de Cristo neste
dia para com os homens, e haver o Filho de Deus de lavar os pés aos homens, com
aquelas mesmas mãos em que o Eterno Padre tinha posto tudo, parece que
levantava tanto a baixeza da mesma ação, que chegava a tocar no Padre. Por isso
disse Pater, com grande advertência.
Bem pudera o evangelista dizer Deus, como logo continuou: Sciens quia a Deo exivit, et ad Deus vadit - mas disse
nomeadamente Padre: Sciens quia omnia
dedit ei Pater in manus - para, assim como contrapôs as mãos aos pés,
contrapor também o Padre aos homens. E verdadeiramente nesta oposição de mãos a
pés, e de Padre a homens, parece que foram mais amados os homens, que o mesmo
Padre.
O amor todo é estimação. E quem
haverá que, vendo ao Filho de Deus lavar os pés aos homens com aquelas mesmas
mãos em que o Padre tinha posto tudo, não lhe pareça que a olhos vistos fez
mais estimação o Filho dos pés dos homens que das dádivas do Padre? O Padre
estimou tanto ao Filho que tudo quanto tinha pôs nas mãos do Filho: Omnia dedit ei Pater in manus - e o
Filho estimou tanto aos homens que, com tudo quanto o Padre lhe tinha posto nas
mãos, pôs as mesmas mãos aos pés dos homens: Coepit lavare pedes discipulorum. Notai este modo de lavar, que foi
muito diverso do que costuma ser. Não lavou os pés aos homens com as mãos
vazias, senão com as mãos cheias. Assim lavou, e assim havia de lavar, porque
assim lava Deus. Deus quando lava, não só alimpa, mas enriquece: alimpa, porque
nos tira as manchas da culpa, e enriquece, porque juntamente nos enche dos
tesouros da graça. Assim que, sendo Deus o que lavava os pés aos discípulos,
claro está que não havia de ser com as mãos vazias, senão cheias. Mas, se estavam
cheias de tudo o que nelas pôs o Padre, e essas mesmas mãos põe Cristo debaixo
dos pés dos homens, como se não há de entender que estima mais os mesmos pés,
que tudo quanto o Padre lhe pôs nas mãos?
Dos cristãos da primitiva Igreja
diz S. Lucas que tudo quanto tinham vendiam, e punham o preço aos pés dos
apóstolos: Afferebant pretia eorum quae
vendebant, et ponebant ante pedes apostolorum (Act 4, 34 s). E por que lho
punham aos pés, e não lho entregavam nas mãos, se era o preço de tudo? Para
mostrar, diz S. Crisóstomo, que estimavam mais os pés dos apóstolos que tudo
quanto davam e quanto tinham. Entregar-lho nas mãos seria fazer estimação do
que davam; pôr-lho aos pés era protestar veneração das pessoas, e, como
estimavam mais as pessoas que as dádivas, por isso lhas punham aos pés, e não
lhas davam nas mãos: ponebant ante pedes
apostolorum. Ó dádivas do Padre! Ó pés dos homens! Ó amor e estimação de
Cristo! O Padre deu tudo quanto tinha ao Filho, e não lho pôs aos pés, senão
nas mãos, porque estimou o que lhe dava quanto a mesma dádiva merecia, pois era
tudo quanto tinha Deus. E que este tudo do Padre, de que estavam cheias as mãos
do Filho, o pusesse o Filho, e mais as
mesmas mãos aos pés dos homens!
O que podia daqui inferir o
discurso, se não tivesse mão nele a fé, é que prezou Cristo mais os pés dos
homens que as dádivas do Padre. Mas o certo, e a verdade, é que não foi nem
podia ser assim. Amou e estimou o Filho sumamente as dádivas de seu Padre,
tanto pelo que eram em si, como pelas mãos de quem vinham. Porém, esta mesma
estimação não desfaz, antes reforça mais o mesmo discurso, porque dele se
infere estima com sobre estimação, e amor sobre amor. Quando a Madalena pôs aos
pés de Cristo os alabastros, os ungüentos, os cabelos, os olhos, as lágrimas,
as mãos, a boca, e a si mesma, não foi porque não estimasse tudo isto, senão
porque tudo isto era o que mais estimava. E que conseqüência tirou dali, não
outrem, senão o mesmo Cristo? Quoniam
dilexit multum. De pôr tudo o que mais estimava, e a si mesma, a seus pés,
inferiu o Senhor o grande excesso com que amava. E assim era, porque quando o
que se preza muito em um amor se põe aos pés do outro, então se prova que este
segundo é maior. Logo, se assim o inferiu Cristo, por que não inferiremos nós o
mesmo? Se tudo quanto o Padre pôs nas mãos do Filho, e as mesmas mãos e a si
mesmo, prostrado em terra, põe o Filho aos pés dos homens, como não há de
parecer que os homens são os que mais estima, e os homens os que mais ama?
Para declarar o amor do Padre, foi-nos
necessário fingir parábolas; para inferir o do Filho não é necessário
fingi-las, basta aplicar uma e sua. Quando o filho Pródigo, em serviço de outro
amor, empregou quanto tinha recebido de seu pai, e sua própria pessoa, até se
abaixar às maiores vilezas de servo, não é certo que amou mais a quem se tinha
rendido que a seu pai? Pois este pródigo foi Cristo, diz Guerrico Abade, e
depois dele Guilhelmo, ainda com maior energia: Quis unicus prodigus invenitur, sicut ille unigenitus Patris? O
único pródigo que houve no mundo foi o Filho do Eterno Padre.-E por que Pródigo
e único? Pródigo, porque se pareceu com o Pródigo, e único, porque o excedeu.
Pareceu-se com o Pródigo, porque assim como o Pródigo tudo quanto tinha
recebido do pai, e a si mesmo, empregou em serviço e amor de quem o não
merecia, assim Cristo, com tudo quanto lhe tinha dado seu Padre, e com sua
própria pessoa, serviu e amou aos homens e - para que a parábola ficasse
inteira - a homens pecadores. E excedeu muito o mesmo Pródigo, porque o Pródigo,
obrigado da fome, foi buscar o pão à casa do pai, e Cristo não o foi buscar a
outra parte, mas desentranhou-se a si mesmo, e fez-se pão; o Pródigo
arrependeu-se do seu amor, e pediu perdão do que tinha amado, e Cristo não se
arrependeu jamais, mas perseverou constante no mesmo amor até o fim: In finem dilexit eos.
Do ministério humilde do
lavatório, passou o Senhor ao mistério altíssimo do Sacramento, e aqui se
declarou seu amor muito mais por parte dos homens. E por que? Porque para o
Padre instituiu o Sacramento como sacrifício: para os homens instituiu o
sacrifício como sacramento, e, posto que o mistério seja o mesmo, maior amor se
argúi dele enquanto Sacramento que enquanto sacrifício. Como sacrifício
consome-se: como Sacramento conserva-se; como sacrifício é ação transeunte:
como Sacramento permanente; como sacrifício tem horas do dia certas: como
Sacramento é de todo o tempo, de dia e de noite; como sacrifício não se aparta
do altar, e de sobre a ara: como Sacramento sai às ruas, e entra em nossas
casas; como sacrifício, enfim, tem por fim o culto e adoração do Padre: como
Sacramento, a presença, a assistência e a união com os homens. Vede a diferença
do amor na mesma instituição e na mesma mesa, que foi a mesa e o altar: Tibi - ao
Padre - gratias agens. Discipulis - aos
homens - accipite, et comedite: Ao
Padre deu as graças, aos homens fez o banquete; ao Padre ofereceu-se, com os
homens uniu-se.
E como se uniu? É tal a união que
os homens contraem com Cristo no Sacramento que, comparada com a mesma união
que o filho tem com o Padre, se a não excede enquanto união, excede-a muito
enquanto amorosa. Revelando Cristo a união altíssima que tem com seu Padre,
diz: Ego in Patre, et Pater in me est
(Jo 14, 10): Eu estou no Padre, e o Padre está em mim .-E declarando a união
que tem com o homem no Sacramento, diz pelos mesmos termos: In me manet, et ego in illo (Jo 6, 57): Ele
está em mim, e eu nele. E qual destas duas uniões tão parecidas é maior? A que
o Filho tem com o Padre é maior em gênero de união, porque é unidade; porém, a
que Cristo tem com o homem no Sacramento é maior em gênero de amorosa, porque a
fez o amor. Pois, a união que tem o Filho com o Padre não a fez o amor? Não,
porque a união entre o Padre e o Filho funda-se na geração eterna antecedente a
todo ato da vontade. A nossa é obra da vontade do Filho: a do Filho é obra do
entendimento do Padre. O Filho está no Padre, e o Padre no Filho, porque o
Padre se conheceu; e nós estamos em Cristo, e Cristo em nós, porque o Filho nos
amou. Logo, ainda em comparação da união que o Filho tem com o Padre, vence,
sem controvérsia nem batalha, o amor dos homens.
Isto no sacramento enquanto
sacramento. E passando ao sacrifício enquanto sacrifício, digo que também o
mesmo sacrifício se ordenou a maior união de Cristo com os homens, que do mesmo
Cristo com o Padre. Santo Agostinho, distinguindo esta união, e admirando o
amor de Cristo nela, depois de advertir que todo o sacrifício se compõe de
quatro partes: Quid offeratur, a quo
offeratur, cui offeratur, pro quibus offeratur: quem oferece, o que
oferece, a quem oferece, e por quem oferece - diz que o fim que Cristo teve no
admirável invento do seu sacrifício, foi fazer que todos estes quatro, por meio
dele, fossem uma só coisa: Ut idem ipse
unus, verusque mediator per sacrificium pacis reconcilians nos Deo, unum cum
illo maneret cui offerebat; unum in se faceret, pro quibus offerebat: unus ipse
esset, qui offerebat, et quod offerebat. Só a agudeza de Agostinho pudera
penetrar os íntimos secretos de tão intrincado e bem tecido labirinto de amor.
No sacrifício do altar, quem oferece é Cristo, o que oferece é seu corpo, a
quem oferece é o Padre, por quem oferece são os homens. E como pode ser que
todos estes quatro em um só sacrifício se unam de tal sorte que sejam uma e a
mesma coisa? Deste modo. Para que Cristo, que é o sacerdote que oferece, fosse
- a mesma coisa com o sacrifício, fez que o sacrifício fosse de seu corpo; para
que os homens, por quem se oferece, fossem a mesma coisa com o sacrifício e com
o sacerdote, fez que os homens o comêssemos; e para que o Padre, a quem se
oferece, fosse a mesma coisa com os homens e com Cristo, fez que por meio do
mesmo sacrifício se reconciliasse o Padre com os homens. Só o amor onipotente
podia inventar um bocado, em que, sendo um só o que o come, fossem quatro, e
tais quatro os que ficassem unidos.
Agora pergunto eu: e nesta união
tão maravilhosa como verdadeira, à qual Cristo ordenou o mesmo sacrifício que oferecesse ao Padre, quem são
os que ficam mais unidos a Cristo, o Padre, ou os homens? Não há dúvida que os
homens. Porque a nossa união com Cristo é imediata e direta: a união do Padre
com o mesmo Cristo é mediata e reflexa. A nós uniu-nos Cristo imediatamente a
si: ao Padre uniu-se o mesmo Cristo por meio de nós. Porque o Padre se uniu a
nós, por isso Cristo se uniu ao Padre. De sorte que a união de Cristo com o
Padre foi o efeito, e a união do Padre conosco foi o motivo. Tornai a ouvir as
palavras de Agostinho, e ouvi-as com atenção: Ut ipse unus per sacrificium pacis reconcilians nos Deo, unum cum illo
maneret, cui offerebat: Ofereceu-se Cristo ao Padre em sacrifício, para
que, por meio do mesmo sacrifício, reconciliando-se o Padre com os homens, se
unisse Cristo ao mesmo Padre. Pois, para Cristo se unir ao Padre, é necessário
que o Padre primeiro se una aos homens e se reconcilie com eles? Sim, que
debaixo destas condições ama Deus quando parece que antepõe o amor dos homens
ao seu amor. Si offers munus tuum ad
altare, et ibi recordatus fueris quia frater tuus habet aliquid adversum te:
vade prius reconciliari fratri tuo, et tunc offeres munus tuum (Mt 5, 23
s): Se tiveres posta a tua oferta ao pé do meu altar - diz Deus - e não
estiveres reconciliado com teu próximo, vai primeiro reconciliar-te com ele, e
então aceitarei a tua oferta. Ao mesmo modo, e debaixo da mesma condição, se
une Cristo ao Padre no sacrifício de seu Corpo. Assim como Deus não aceita a
oferta do homem antes de o homem estar reconciliado com o próximo, assim Cristo
não se une ao Padre antes de o Padre se reconciliar com os homens: Ut reconcilians nos Deo, unum cum illo
maneret. Oh! assombro! Oh! prodígio do amor de Cristo para com os homens,
ainda em respeito do Padre! O maior intérprete dos evangelistas, comentando
este texto, infere dele que Deus em certo modo antepõe o amor do próximo ao seu
próprio amor: Dilectioni quodammodo sui
proximi dilectionem anteponit. E se esta força tem a condição de estar
primeiro reconciliado o homem com o próximo, para Deus aceitar a sua oferta,
por que não terá a mesma conseqüência o estar primeiro reconciliado o Padre com
os homens, para Cristo se unir ao Padre? E para que se veja quanta certeza tem
isto que se chama em certo modo, ouçamos ao mesmo Cristo neste mesmo dia, e na
mesma mesa em que instituiu o mesmo mistério: Ipse Pater amat vos, quia vos me amastis (Jo 16, 27) : O Padre
ama-vos a vós, porque vós me amastes.-A força deste porquê é igual em um e
outro caso. Assim como o Padre ama aos homens porque os homens amam ao Filho,
assim o Filho se une ao Padre porque o Padre se une aos homens. Logo, se amar o
Padre aos homens, porque os homens amam ao Filho, é sinal de amar o Padre mais
ao Filho que aos homens, também o unir-se o Filho ao Padre, porque o Padre se
une aos homens será sinal de amar o Filho mais aos homens que ao Padre? A fé
não pode afirmar que seja assim, mas o entendimento não pode negar que o
parece.
CAPÍTULO VII
A partida do Cenáculo para o
Horto. Semelhanças entre a história de Sansão e o amor de Cristo aos homens. Os
dons do Espírito Santo, suborno com que o Padre rendeu o amor de Cristo.
Concordância entre dois textos de S. Paulo e de Davi. Dificuldade nas palavras
da despedida de Cristo a seus discípulos. A dilação da partida. A comparação
das vides e do lavrador. O modo por que Cristo se apartou de seus discípulos:
arrancando-se deles. Os extremos com que Cristo amou aos homens: já que havia
de deixar uma vez os homens por amor do Padre, deixou três vezes o Padre por
amor dos homens.
Acabados os mistérios da sagrada
Ceia, querendo o Senhor partir do Cenáculo para o Horto, onde finalmente se
despediu dos seus para sempre, falou aos discípulos nesta forma: Ut cognoscat mundus quia diligo Patrem, et
sicut mandatum dedit mihi Pater, sic facio. Surgite, eamus hinc (Jo 14,
31): Para que conheça o mundo quanto amo a meu Padre, e quão obediente sou a
seus preceitos, levantai-vos, vamo-nos daqui. Destas palavras se prova uma
coisa certamente, e parece que se prova outra. A que se prova certamente é que
não tinha Cristo neste mundo coisa que mais amasse que os homens, nem que mais
lhe houvesse de custar que apartar-se deles, pois este era o maior exemplo e
demonstração, por onde o mundo havia de conhecer quanto o mesmo Senhor amava a
seu Padre. Mas daqui mesmo parece se prova com evidência - contra o que até
agora queríamos argüir - que muito maior é, e muito mais pode com Cristo o amor
do Padre que ó amor dos homens, pois, custando tanto ao seu coração o deixá-los
e apartar-se deles, em conflito de amor com amor, prevalece o amor do Padre. Assim
parece, mas não é assim, antes das mesmas palavras de Cristo se convence o
contrário, e que mais forte era no seu coração o amor dos homens que o amor do
Padre. Provo. Porque o Senhor não diz que o leva e o aparta dos homens só o
amor do Padre, senão o amor do Padre e mais a obediência do Padre: Quia diligo Patrem, et sicut mandatum dedit
mihi Pater, sic facio (39). Se o amor do Padre contendera só por só com o
amor dos homens e prevalecera, então se inferia bem que era mais poderoso; mas
se ele se não atreveu a entrar na contenda, senão acompanhado da obediência - a
que não era lícito resistir - daí mesmo se infere claramente, e se convence,
que se não fiava só das suas forças, nem foram elas só as que prevaleceram. Por
que se não atreveram nunca os filisteus contra Sansão, senão quando Dalila o
tinha atado? Porque reconheciam que Sansão era mais valente que eles. A Dalila,
que atou as mãos ao amor com que Cristo amava os homens, foi a obediência; e
como o amor, com que amava ao Padre, arcou com e1e estando com as mãos atadas,
que muito é que prevalecesse? Assim foi vencido Sansão, sendo mais forte.
Mas ainda a sua história tem mais
semelhanças do nosso caso. Não só foi vencido Sansão, porque o atou Dalila, mas
porque foi subornado o seu amor. Para que o amor do Padre prevalecesse em
Cristo ao amor dos homens, não só empenhou o Padre as razões do seu amor e os
poderes da sua obediência, mas subornou o mesmo amor com que Cristo amava aos
homens, para que não só como obrigado e obediente, mas como interessado, se
deixasse render. E que suborno foi este? Foram os dons do Espírito Santo, os
quais decretou o Padre que Cristo não pudesse dar ou mandar aos homens, senão
depois de subir ao céu, e estar com o mesmo Padre: Expedit ut ego vadam:. si enim non abiero, Paraclitus non veniet ad
vos; si autem abiero, mittam eum ad vos. Vêde quão poderoso foi, e quão
engenhoso juntamente o empenho do Padre para render e obrigar a Cristo a que se
apartasse dos homens. Subornou-o com os dons que havia de dar aos mesmos homens,
mas com condição e decreto que lhos não pudesse dar senão apartando-se primeiro
deles. O amor de Dalila, como amor falso, deixou-se subornar dos dons que
recebeu para si: o amor de Cristo, como verdadeiro, só pode ser subornado dos
dons que recebeu para dar aos homens. Agora ficará bem entendido e concordado
aquele encontro de S. Paulo com Davi, que tanta discórdia tem causado entre os
expositores. S. Paulo diz que, subindo Cristo ao céu, deu dons aos homens: Ascendens in altum, dedit dona hominibus
(Ef 4, 8). E Davi não diz que os deu, senão que os recebeu: Ascendisti in altum, accepisti dona in
hominibus. Pois se S. Paulo cita ao mesmo Davi, e Davi diz que Cristo,
subindo ao céu, recebeu os dons, como diz e traslada S. Paulo, não que os
recebeu, senão que os deu? Porque tudo foi. Recebeu-os do Padre para os dar aos
homens. O mesmo Davi o declarou assim: Accepisti dona in hominibus. Não diz que recebeu os dons em si, senão que os
recebeu nos homens: in hominibus porque para os dar aos homens os recebeu. Desta
maneira subornou o Padre o amor de Cristo com grande crédito do mesmo amor, o
qual, quando é verdadeiro, só se deixa subornar das conveniências do amado: Expedit vobis ut ego vadam ( Jo 16, 7):
Vou-me porque a vós vos convém que eu me vá. Como se dissera o amoroso Senhor
aos homens: Não é só o Padre o que me leva, também vós sois os que me levais.
Não só vou para o Padre, porque é obediência sua, senão porque é conveniência
vossa; não só porque o amo a ele, senão porque vos amo a vós. E se o amor do Padre
nesta ocasião se valeu para com Cristo do mesmo amor dos homens, bem parece que
amava mais Cristo aos homens que ao Padre. Se não fora assim, quando o
evangelista disse: Ut transeat ex hoc
mundo ad Patrem, dissera: In tinem dilexit eum; mas como diz dilexit eos, parece que nos confirma o
mesmo parecer.
Vai por diante a prática, vai-se
desafogando o amor, e sempre em novos argumentos a favor dos homens.
Desenganados os discípulos da partida, por parte da obediência do Padre,
forçosa, e por parte dos seus interesses, conveniente; outro motivo com que o
benigníssimo Senhor os consolou foi a promessa de que ainda o haviam de tornar
a ver, se bem por breve tempo: Iterum
modicum, et videbitis me, quia vado ad Patrem. Da inteligência destas
palavras duvidaram com tal admiração os discípulos, que se perguntavam uns aos
outros: Quid est hoc quod dicit nobis:
Modicum, et quia vado ad Patrem? E, finalmente, se resolveu entre todos que
nenhum deles sabia nem podia entender o que o Senhor dizia: Nescimus quid loquitur. Notável caso! Se
as palavras eram tão claras que todos as entendemos; como se não achou em toda
a escola de Cristo quem as soubesse entender, e mais estando ali S. João, o
qual, pouco antes, reclinado sobre o peito do mesmo Senhor, tinha aprendido e
recolhido dele os tesouros da mais alta sabedoria? Contudo, todos eles
confessaram que nenhum sabia nem entendia o que queriam dizer aquelas palavras.
E o que menos as entendia era o mesmo S. João, porque entendia melhor que todos
o que delas se entendia. Cada uma das partes da proposição era muito fácil, mas
ambas juntas não cabiam em nenhum entendimento. Uma parte dizia que Cristo se
partia para o Padre: Quia vado ad Patrem
- a outra parte dizia que o tempo que se detivesse na terra com os discípulos
havia de ser pouco. Modicum, et videbitis
me. E que o tempo desta demora, sendo tempo quedilatava a Cristo a ida para
seu Padre, houvesse de ser pouco, e muito pouco - que isto quer dizer modicum - esta era a dificuldade que os
embaraçava, e se não deixava entender. E por quê? Porque dela se inferia, por
natural conseqüência , uma grande implicação no amor de Cristo, a qual depois
se declarou ainda mais, mostrando a experiência que aquela demora ou tardança
foi de quarenta dias.
Não há coisa que mais alargue o tempo,
na ausência e na saudade, que a dilação: as horas se fazem anos, e os dias
séculos. Pois, se as saudades e desejos de Cristo subir ao Padre, eram quais
deviam ser as de um Filho, e tal Filho, para ver um Pai, e tal Pai, depois de
uma ausência de trinta e quatro anos, como
podia ser breve tempo, e tão breve, o de tão larga dilação? O que daqui se
inferia naturalmente, é que no coração do Senhor reinava outro afeto dominante,
o qual, em oposição do amor do Padre, como mais poderoso que ele, estreitava as
distâncias e encurtava os espaços àquele mesmo tempo. O tempo define-se:
Mensura primi mobilis: a medida do
primeiro móvel, e o primeiro móvel - neste mundo pequeno, que chamamos homem, é
o coração. Daqui vem que, segundo os movimentos do mesmo coração, pode o mesmo
tempo, com diferentes respeitos, ser longo e breve. E tais se convencia pelo
discurso serem, em respeito do Padre e dos homens, aqueles quarenta dias. Para
ir ao Padre, eram dias, e quarenta; mas para se deter com os homens, eram uns
minutos ou momentos tão abreviados que não chegavam a fazer número. Isto queria
dizer a palavra modicum, e muito mais
a palavra vado. Suposto que o Senhor
prometia aos discípulos que se havia de deter com eles algum tempo, parece que
não havia de dizer vou, senão: hei de ir. Antes, mais propriamente havia de
dizer não vou, ou não irei tão depressa que não tenhais tempo de me ver. Pois,
se o Senhor não ia ainda então quando o dizia, nem depois de sua Ressurreição
havia de ir, senão daí a quarenta dias, como diz que já naquele mesmo dia. e
naquela mesma hora ia: Quia vado? Porque
como aqueles dias eram de estar com os homens, o amor dos mesmos homens os
abreviava, unia e penetrava entre si de tal sorte, que não só cabiam todos, mas
todos estavam resumidos àquela mesma hora. Por isso quando, segundo as leis do
tempo, parece que havia de dizer hei de ir, segundo as experiências do seu
amor, dizia vou: vado. Grande prova no mesmo texto evangélico.
Na madrugada do primeiro dos
mesmos quarenta dias, que foi o da Ressurreição, o recado que, aparecendo o Senhor à Madalena, lhe deu, para
que o levasse aos apóstolos, foi este: Diz a meus discípulos que vão esperar
por mim a Galiléia, porquanto subo ao Padre: Ascendo ad Patrem meum, et Patrem vestrum. E como a Madalena se quisesse
lançar a seus pés, proibiu-lhe o Senhor esta detença, dizendo que ainda não
tinha subido ao Padre: Nondam ascendi ad
Patrem. Pois, se o Filho não havia de subir ao Padre, senão daí a quarenta
dias, como não diz que havia de subir, senão que já subia: Ascendo? E se aos
apóstolos mando dizer que subia, à Madalena por que diz que não tinha subido: Nondum ascendi? Não se podia melhor
declarar como todas as diferenças do tempo no coração e amor de Cristo estavam
resumidas àquela hora. A madrugada da Ressurreição era a primeira hora dos
quarenta dias, depois dos quais o Senhor havia de subir ao Padre; mas o amor e
desejo de estar com os homens lhe faziam tão breves todos aqueles dias, que o
princípio do primeiro lhe parecia já o fim do último. Por isso não diz que
havia de subir, senão que já subia: ascendo. E assim como o mesmo amor e
desejo, sendo o prazo tão distante, lhe fazia o futuro presente, assim, sendo a
duração tão comprida, lhe fazia tão breve o mesmo presente, que já podia
parecer passado. Por isso disse à Madalena que ainda não tinha subido: Nondum ascendi. No ascendo tinha dito
nomeadamente ad Patrem, e no ascendi
tornou a repetir do mesmo modo, ad Patrem,
para que se veja os poderes que tinha no peito de Cristo, ainda em concurso do
amor do Padre, o amor dos homens. E se o amor, na presença do que ama, abrevia
o tempo, e na ausência o alonga, quando o mesmo tempo, enquanto dilatava a
Cristo a partida para o Padre, lhe não parecia largo, e enquanto lhe permitia
estar com os homens, lhe parecia tão breve, quem não julgará nesta diferença,
que amava mais aos homens que ao Padre? Isto era o que naturalmente se inferia
das palavras de Cristo, e esta foi a dificuldade ou implicação, porque, todos
os apóstolos, e muito mais S. João, as não entendiam: Nescimus quid loquitur.
Houve de apartar-se, finalmente,
o soberano Senhor, e porque este apartamento não causasse nos discípulos o que
naturalmente costuma nos homens, exortando,os a estarem sempre unidos com ele
por memória e por amor, lhes declarou a importância desta união com o exemplo
da vinha, em que as vides não podem dar fruto senão unidas à cepa, e disse
assim: Ego sum vitis, vos palmites: Pater
meus agricola est ( Jo 15, 1. 5): Eu, discípulos meus, sou a cepa, vós sois
as vides, e meu Padre é o lavrador. Aqui temos outra vez o Padre, os homens e o
mesmo Cristo, que é todo o concurso da nossa questão, mas a pessoa do Padre não
está aplicada como pedia a propriedade natural da parábola. Se Cristo se
compara à cepa, e os discípulos às vides, parece que o Padre se havia de
comparar a raiz, e não ao lavrador. Cristo é Filho do Padre, e os discípulos
são filhos de Cristo, como o mesmo Senhor lhes chamou nesta ocasião: Filioli, adhuc modicum vobiscum sum. Filioli, diz. E quem poderá compreender a
imensidade de amor que naquele diminutivo se encerra? Pois, se os discípulos
eram filhos de Cristo, e Cristo Filho do Padre, e ele se compara à cepa, e os
discípulos às vides, por que não compara o Padre à raiz, como pedia a natureza
da metáfora, senão ao lavrador? Porque o lavrador não está pegado à cepa, as
vides sim. E neste dia parece que todo o cuidado do amor de Cristo era despegar-se
do Padre, e pegar-se aos homens. Dos homens falava como de filhos, do Padre
como se não fora Pai; ao Padre dava o nome do poder, aos homens o do amor; ao
Padre como separado, aos homens como unidos. Enfim, semelhante àquela planta,
que entre todas só sabe chorar apartamentos, sujeita, porém, como as demais, a
não se poder apartar da terra sem se arrancar.
Chegado o Senhor ao Horto, e
apartando-se dos discípulos para ir orar ao Padre, diz o Evangelista S. Lucas
que se arrancou deles: Avalsus est ab eis
(Lc 22, 41). Esta manhã ponderei este passo a outro intento: agora acrescento e
noto mais que, apartando-se do Padre na mesma oração, e tornando aos
discípulos, nem o mesmo S. Lucas, nem algum outro evangelista diz que se
arrancou, senão que veio: Venit ad
discipulos suos ( Mt 26,40). Pois, se quando vai dos discípulos para o
Padre se arranca, quando vem do Padre para os discípulos, por que se não
arranca também? Porque essa é a diferença de estar pegado, como dizia; ou não
estar pegado. Quando se vai o que está pegado, arranca-se; quando vem o que não
está pegado, vem. Assim ia o Senhor quando ia, e assim vinha quando tornava. E
se o ir dos homens para o Padre é arrancar-se, e o vir do Padre para os homens
e somente vir, que havemos de dizer ou cuidar que parece isto, não notado por
nós,. mas advertido pelos mesmos evangelistas? O menos que se pode cuidar, e o
muito que se não pode dizer, e que o amor de Cristo hoje amou mais aos homens
que ao Padre.
Mas quem se atreverá a pronunciar
por palavras o que o mesmo amor emudecido, por respeito, se não atreveu a
significar, senão por acenos e por ações? Três horas durou aquela oração do Horto,
e três vezes nas mesmas três horas veio o Senhor a visitar os discípulos, sem
ser bastante o descuido com que os viu, e o desamor que neles experimentou,
para não tornar uma e tantas vezes. E bem, Filho sempre amantíssimo de vosso
Eterno Padre, ao mesmo Padre deixais vós, e tão repetidamente por vir aos
homens? Não argumento por parte do respeito, que também pudera ter sua demanda
neste caso: só duvido por parte do amor. O centro do vosso amor não é o Padre?
Sim, e, nem pode deixar de ser.
Pois, como se inquieta tanto o
vosso coração, se está no seu centro? Dizer que o Padre era o centro do amor, e
os homens o centro do cuidado, não é boa solução, porque o amor e o cuidado não
se distinguem. Pois, se estais com o Padre só três horas, como três vezes em
três horas deixais o Padre para vir aos discípulos? Sei eu, que três dias
deixastes vós a Mãe, sobre todas as criaturas amadas, e a satisfação que lhe
destes, foi que estáveis com vosso Padre. Mas isso foi então, e não no dia de
hoje, em que os privilégios do amor dos homens não tem exemplo. Não entendo o
que isto é, mas não posso deixar de dizer o que parece. Parece que também
quisestes dar satisfação aos homens, e porque era tal que não cabia em
palavras, com o amor, com o cuidado e com as ações, lhes dissestes por última
despedida: quê? Ainda tremo de o pronunciar. Parece que nos quisestes dizer
assim: Já que neste dia hei de deixar uma vez os homens por amor do Padre,
quero deixar três vezes o Padre por amor dos homens.
Agora sim que se desquitou bem o
amor de Cristo. Porque se o amor do Padre - como vimos - foi tal que pudera dar ciúmes ao Filho, esta ação do
amor do Filho e tal que pudera causar ciúmes ao Padre. Saul chegou a negar de
filho a Jônatas, porque amava mais a Davi que ao próprio pai. E amanhã, quando
se ouvir que o Padre deixa a seu Filho - Ut
quid dereliquisti me? não faltará quem cuide que o Padre o deixa, porque
ele também deixou ao Padre por amor dos homens. Mas e tanto pelo contrário que
nunca tanto o Filho agradou ao Padre, nem o Padre o reconheceu mais por Filho,
que por estes mesmos extremos com que amou aos homens: Filius meus es tu, ego hodie genui te: Hoje, hoje vos reconheço
mais que nunca por Filho, pois em amar aos homens, como os amastes mostrastes
bem ser Filho de vosso Pai. Porque, se eu no dia da Encarnação, que foi o
primeiro, os amei tanto que parece amei mais aos homens que ao Filho, como havíeis
vós de mostrar que éreis meu Filho no dia de hoje, que é o último, senão amando
tanto aos mesmos homens, que pareça amastes mais aos homens que ao Padre?
CAPÍTULO VIII
Nas batalhas de menor a maior,
quando o menor iguala o maior, o igualar é vencer. A luta de Jacó com o anjo e
a competência do amor do Padre com o amor de Cristo.
Esta foi na competência de um dia
com outro dia. e de um amor com outro amor; esta foi a igualdade do dilexit do Padre: Sic Deus dilexit mundum, ut Filium suum unigenitum daret - e esta a igualdade do dilexit do Filho: Suos, qui
erant in mundo, in tinem dilexit eos. Mas nesta mesma igualdade, em que se
não conhece vantagem, consistiu como prometi a vitória do amor de hoje E por
quê, ou como? Porque Cristo, pela parte que tem de homem, é menor que o Padre,
como ele mesmo nos. ensinou: Quia Pater
major me est - e nas batalhas de menor a maior, quando o menor iguala o
maior, o igualar é vencer. Na luta que teve Jacó com o anjo, nem o anjo
derrubou a Jacó, nem Jacó derrubou ao anjo, e, contudo, o texto sagrado, não só
uma, senão muitas vezes celebra a vitória de Jacó, e por ela lhe mudou Deus o
nome de Jacó em Israel, dizendo: Si
contra Deum fortis fuisti, quanto magis contra homines praevalebis. Pois,
se Jacó não venceu o anjo, e o anjo somente reconheceu que o não podia vencer: Cum videret quod eum superare non posset
- por que se atribui a vitória a Jacó? Diga-se que não foi vencido, mas não se
diga que venceu. Antes, porque não foi vencido, por isso mesmo se diz que
venceu, porque, nas batalhas de menor a maior, o não ser vencido é vencer. Se a
luta fora de homem a homem, ou de anjo a anjo, então era necessário derrubar um
ao outro para ficar vencedor; porém, como era de homem a anjo, e de menor a
maior, a igualdade no menor foi vitória, e o não ser vencido, vencer. Mas quem
era este anjo, quem era este Jacó, e qual foi esta batalha? O anjo representava
ao Padre, que por isso disse: Si contra
Deum fortis fuisti; Jacó representava a Cristo, que muitas vezes na
Escritura se chama Jacó e a batalha era de amor, que por essa razão foi luta
que são abraços. E como nesta competência amorosa nem o Padre pode vencer o
Filho, nem o Filho vencer o Padre, bem se conclui da mesma igualdade do amor de
ambos que toda a vitória ficou pelo dilexit
de hoje. In tinem treslada S. Crisóstomo:
In victoriam dilexit eos.
CAPÍTULO IX
Os mais obrigados aos exemplos do
Padre e de Cristo: os pais e os filhos. Se é necessário que deixemos o mundo,
antes que ele nos deixe, que ocasião mais aparelhada e mais fidalga que
deixá-lo quando quem o criou e nos criou o deixa? Oração.
Os despojos desta vitória pede o
amor que sejam os corações dos homens, tão igual e tão excessivamente amados do
Padre e do Filho. Muito sentiu o amoroso Senhor lhe faltasse um: Cum diabolus jam misisset in corut traderet
eum Judas. E que seria se, entre os que tanto abominamos aquela ingratidão
e deslealdade, houvesse muitos igualmente desleais, e, mais que o mesmo Judas,
ingratos? Que seria, se quando o Padre e o Filho competem sobre qual há de amar
mais aos homens, os homens vivêssemos como a competência de quem mais há de
ofender ao Padre, que nos deu seu próprio Filho, e ao Pilho, que se nos deu a
si mesmo?
Os mais obrigados a este exemplo
são os pais e os filhos: os pais, para que amem mais a Deus que aos filhos, por
cuja causa muitos se condenam, e os filhos, para que amem mais a Deus que aos
pais, por cujo temor ou respeito não tomam aquele estado em que mais se segura
a salvação. Quantos pais há que, por amarem falsa e erradamente os filhos e os
quererem antes para o mundo que para Deus, hás impedem o servir a Deus? E
quantos filhos que, por não desagradarem aos pais, nem se apartarem deles,
deixam a Deus, e servem ao mundo? Oh! ditosas, bem entendidas e valorosas
almas, vós que com tão animosa e prudente resolução deixastes a hierarquia
desse coro tão alto, e desprezastes todas as promessas e esperanças do mundo,
onde ele é mais mundo, e na idade mais sujeita a seus enganos, não só lhe
voltastes o rosto, mas o metestes debaixo dos pés! Se Cristo hoje chamou seus
aos que estavam no mundo: Suos, qui erant
in mundo - só porque o mundo não
estava neles, a vós, que não estais a no mundo, nem ele pode estar em vós para
sempre, que nome vos terá dado o seu amor, e que lugar o seu coração? E se as
filhas, em que a delicadeza e o mimo é tão natural, com tão galharda
resistência e tão constante desapego, deixam as casas dos pais, e não lhes faz
horror o claustro nem o cilício, nos filhos convosco falo nos filhos que
nasceram com obrigações de maior valor, e o mostram tanto onde não convinha,
por que se não verão semelhantes desenganos? Por que senão acabarão de resolver
tantas mocidades enganadas a deixar o mundo, a desprezar o mundo, a conhecer o
mundo, e o tratar como ele merece, e Deus nos merece?
Desenganemo-nos, que é necessário
deixar o mundo antes que ele nos deixe. E que ocasião mais aparelhada, e ainda
mais forçosa e mais fidalga, que deixá-lo quando quem o criou e nos criou o
deixa? Será bem que se parta Cristo do mundo. Ut transeat ex hoc mundo - e que faça esta jornada só, sem haver
quem o acompanhe e o siga? Que coração haverá tão esquecido de Deus e de si,
que ouvindo aquele rebate, ou aquele pregão do céu; Sciens Jesus quia venit hora ejus - lhe não cause um grande abalo na alma, e
diga resolutamente consigo: Esta será também a minha hora? Nenhum cristão há de
consciência tão perdida, que não faça conta de se converter e se dar a Deus
alguma hora: e se há de ser alguma hora, que hora como esta? Oh! como é para
temer que quem se não aproveitar desta hora lhe falte outra? Se cada um de nós
soubera a hora em que há de passar deste mundo, como Cristo sabia a sua: Sciens quia venit hora ejus - menos
cegueira fora; mas se este secreto é oculto a todos, e ninguém sabe o dia nem a
hora: Quia nescitis diem, neque horam -
por que havemos de perder tal hora como esta, e tal dia como o de hoje? Tal dia
como o de hoje, torno a dizer. Um dia em que se ajuntaram os dois maiores dias
do amor e misericórdia divina.
O dia em que Jesus, nosso Deus e
nosso Redentor, se parte do mundo, e o deixa, para que nós o sigamos, e o dia
em que veio ao mundo, e deixou o céu, para que nós ao menos deixemos a terra.
Oh! mal dita terra, oh! maldito mundo, que nenhum exemplo basta para te
deixarmos, nenhum desengano para te conhecermos, nenhum amor de Deus, para te
não amarmos?
Senhor Jesus: já que hoje esta
vosso amor tão vencedor de tudo, vença também e triunfe destes corações, tão
duros, tão ingratos, tão cegos. Abrandai, Senhor, esta dureza, convertei esta
ingratidão, alumiai esta cegueira; trocai e transformai de uma vez a rebeldia
destas vontades, para que só a vós amem, só a vós queiram, só a vós desejem, só
por vós suspirem, só de vós esperem, só em vós vivam, só por vós morram, até
que chegue aquela última e feliz hora de passar convosco deste mundo ao Padre. Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem - onde vos vejam, onde vos gozem, onde vos
amem sem fim: In finem dilexit eos.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: Sermão dos Bons Anos
Nota:
Padre Antônio Vieira: Sermão dos Bons Anos
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