SERMÃO II - MARIA ROSA MÍSTICA
Extollens vocem quaedam mulier.
Continuação do primeiro discurso. O não caber é argumento da grandeza
das coisas. As duplas visões de José e Daniel demonstram que Deus, no fazer,
obra segundo as medidas da sua onipotência, e no mostrar, segundo a capacidade
da nossa vista. As coisas em excesso grandes nem em Atenas se podem ouvir
bastantemente de uma só vez. O Rosário e o altar do Deus desconhecido.
Bem temia eu — como logo disse
— que as primeiras excelências do
Rosário, ou o alto e altíssimo dele, enquanto oração vocal, me não havia de
caber em um só discurso. Mas nem por isso a faz menos nobre a necessidade de
outro. O não caber é argumento da grandeza das coisas: assim sucede às
notavelmente grandes. Aquela máquina grega, portanto da indústria do nosso
Ulisses, porque não cabia pelas portas de Tróia, foi necessário que se lhe
rompessem os muros. O mesmo Cristo, quando entrou pelo céu como homem, coube
pelas portas: Attollite portas, príncipes, vestras — mas
quando desceu como Deus, foi necessário que os céus se rompessem: Utinam
dirumperes caelos, et descenderes. Coube pelas portas enquanto homem;
enquanto Deus não coube. Não fora a Arca do Testamento figura da Mãe de Deus se
coubera no Tabernáculo de Moisés: por isso acrescentou Deus à primeira idéia a
segunda, e mandou edificar o Templo de Salomão.
Acolá estava estreitada a sua grandeza, aqui dignamente ostentosa a
sua majestade.
Mas, se ambas as idéias eram de Deus, por que foi necessário
acrescentar a segunda sobre a primeira? Porque até o entendimento e a mão
divina o faz assim nas grandes obras suas. Mostrou Deus a José as grandes
fortunas para que o tinha destinado, e não em um só desenho, senão em dois: um
na eira, outro no firmamento (Gen. 37, 7. 9). A primeira vez adorado nas
paveias, que ele atava com os irmãos; a segunda, no sol, na lua e nas estrelas,
que igualmente o adoravam. A grandeza do império de seu filho, mostrada já
sobre a estátua dos quatro metais, também a tornou a mostrar Deus segunda vez
nas quatro feras ou monstros que representavam as quatro monarquias do mundo
(Dan. 2, 29; 7, 3). Pois, se o mesmo mundo o criou Deus, e fez de uma vez
estoutras obras suas, por que as não mostra em uma só visão ou figura, senão em
duas? Porque no fazer obra Deus segundo as medidas dá sua onipotência; no
mostrar e dar a conhecer, segundo a capacidade da nossa vista. Porque nós não
somos capazes de ver tudo de uma vez, supre Deus na segunda idéia o que faltou
na primeira. Na primeira adoração de José mostrou a baixa condição dos
adoradores; na segunda, a alteza e lustre do adorado. No primeiro abatimento
dos quatro metais da estátua mostrou a riqueza de umas monarquias e a fortaleza
das outras; no segundo, dos quatro monstros, não mortos como os metais, senão
vivos e feros, na vida mostrou-lhes a duração, e na fereza a tirania.
Parece-me, senhores, que me tenho declarado. Para não caberem as
excelências do Rosário vocal em um só discurso bastava a insuficiência do
pregador; mas não foi essa a principal causa, senão a eminência da matéria e
sua grandeza.
Quando o príncipe dos pregadores, S. Paulo, debaixo do nome de Deus
desconhecido que os atenienses adoravam, lhes deu a conhecer a divindade e
humanidade do Deus verdadeiro, disseram no Areópago aqueles que eram reputados
pelos mais sábios homens do mundo: Audiemus te de hoc iterum (At 17,
32): Outra vez vos ouviremos sobre isto mesmo. — E como as coisas com excesso
grandes nem em Atenas se podem ouvir bastantemente de uma só vez, outra vez
também me haveis de ouvir sobre o mesmo ponto, que não será em tudo
dessemelhante ao de S. Paulo. Aquela devoção dos atenienses era tão comum e tão
vulgar que o mesmo Apóstolo lhes disse que, passando por uma rua da sua cidade,
vira o altar do Deus desconhecido com o título por cima: Ignoto Deo
(Ibid 23). Tão comum e tão vulgar é entre nós o Rosário! Mas hoje acabaremos de
ver que não está ainda bem conhecido na nossa Atenas, e que lhe quadra em
grande parte — posto que seja tão divino — o título de ignoto: Ave Maria.
CAPÍTULO II
O que diz o Rosário e o modo com que se diz. Importância do modo de
dizer na promessa de Cristo aos apóstolos. As dificuldades do modo de dizer nos
louvores e nas petições. Argumento: os excessos e defeitos das petições e
louvores do Rosário.
Extollens vocem.
Na oração vocal do Rosário, ou no Rosário enquanto oração vocal,
consideramos, se bem nos lembra, a alteza de sua perfeição, já por parte das
petições que nela fazemos, já por parte das majestades a que as presentamos, já
por parte da intercessão de que nos valemos; e nestas três considerações, em
que toda se compreende, a mostramos, não só alta, senão altissimamente
levantada: Extollens vocem. E esta alteza altíssima pode-se ainda
altear, e tem mais por onde subir? Sim.
Porque no discurso passado ponderamos só o que diz o Rosário; hoje
havemos de examinar o modo com que o diz.
Consummatae sapientiae est, quid quo insequaris modo: A sabedoria perfeita
e consumada — diz Santo Agostinho – não só consiste nas coisas que se dizem,
senão no modo com que se dizem: não só no quid, senão no quomodo. — Este
foi um dos maiores privilégios — se não foi o maior — que Cristo concedeu aos
seus apóstolos. Quando fordes levados a juízo, diante dos príncipes e tribunais
do mundo, em defensa da minha fé e da vossa doutrina, não nos canseis, diz o
Senhor, em meditar nem estudar o que haveis de dizer, nem o modo com que o
haveis de dizer, porque naquela hora vos será dado:
Nolite cogitare quomodo, aut quid loquamini: dabitur enim vobis in
illa hora (Mt. 10, 19). — Notai o quid
e o quomodo, e primeiro o quomodo que o quid. Pois, não bastava que
Deus infundisse naquela hora aos apóstolos a ciência das coisas que haviam de
dizer, senão também o modo com que as haviam de dizer? Não bastava. Porque não
só a inteligência, senão a mesma grandeza e energia das coisas que se dizem
depende muito do modo com que se dizem. A razão deu em outro lugar o mesmo
Santo Agostinho, tão douta e bem assentada como sua: Parum et nimium duo
sunt inter se contraria: parum est quod minus est quam oportet; nimium est quod
plus est quam oportet: horum in medio modus est. Quer dizer: o defeito e o
excesso no dizer são dois contrários. O defeito diz menos do que convém, o
excesso diz mais do que convém; e no meio destes dois extremos está o modo, o
qual emenda o defeito para que não diga menos, e modera o excesso para que não
diga mais.
Sendo esta, pois, a inteireza e perfeição do modo, não há duas coisas
em que o mesmo modo seja mais dificultoso de se guardar, e em que tenha maior
perigo de se perder ou perverter, que no louvor e no pedir. No louvar, por
menos, porque de nenhuma coisa são mais avarentos os homens, que do louvor; e
no pedir, por mais, porque de nenhuma são mais pródigos que do desejo de
receber. E como os dois fins e intentos do Rosário vocal são louvar a Deus e à
Mãe de Deus, e pedir mercês de ambos, este é o segundo ponto que pede novo
discurso e novo exame. No primeiro ponderamos a alteza das vozes do Rosário no
que dizem; agora examinaremos o fino ou afinado delas no modo com que o dizem.
A muitos parecerá que em parte dizem mais, e em parte menos, que são os dois
extremos entre os quais consiste o Modo, e a Cila e Caribdes, em que é difícil
acertar com o meio; e a todos satisfaremos. Cristo, Senhor nosso, para dizer
mais do que disse ou exclamou a oradora do Evangelho, replicou sobre o que ela
tinha dito, acrescentando ao beatus venter o quinimmo beati e o mesmo farei eu. Sobre todas as três
considerações do discurso passado, argüirei e replicarei o que parece digno de
reparo tanto por parte do defeito, como do excesso; e, assim como já vimos a
alteza da oração vocal do Rosário, no que dizem as suas vozes, assim a veremos
agora no modo com que o dizem. No que dizem, alta e altíssima sobre todas; no
modo com que o dizem, alta e altíssima sobre si mesma. Em suma, que a mesma voz
do Evangelho, que já ouvimos, é a que tornaremos hoje a ouvir, mas em diverso
tom, porque será um ponto mais levantada: Extollens vocem.
CAPÍTULO III
Primeiro reparo: o modo tão nu e seco com que no Rosário invocamos a
Deus. Confiança do Filho Pródigo no amor do pai.
O acerto do título que damos a Deus, ensinado por seu próprio Filho.
Muito deseja dar quem pede que lhe peçam. Deus fez que seu Filho se fizesse
homem, para ter um Filho que, como homem, lhe pudesse pedir. A oferta limitada
de el-rei Assuero à rainha Ester, e a oferta sem limites de Cristo no
Padre-nosso. A herança do Filho de Deus. Por que alegamos de nossa parte o
perdão dos inimigos?
Começando, pois, pela majestade a que presentamos nossas petições —
que foi a primeira consideração do discurso passado — a primeira coisa também
em que se pode reparar é o modo tão nu e seco com que no Rosário invocamos a
Deus, dizendo somente: Pater noster, sem outra prefação nem aparato de
exórdio. No exórdio das outras orações sempre a Igreja costuma alegar a Deus,
ou os seus atributos, ou os seus benefícios, ou as nossas necessidades, ou,
talvez, o nosso merecimento. Mas orar a Deus e pedir-lhe mercês, sem da sua nem
da nossa parte alegar motivo algum com que conciliemos a sua benevolência e
façamos propícia a sua graça? Bem mostra nisto a primeira oração do Rosário ser
ditada pelo Filho de Deus, e idéia soberana de seu entendimento. Quando nos
ensina a invocar a Deus, cala o nome de Deus e o de Senhor — que é o princípio
ordinário das outras orações — cala os atributos da misericórdia e da bondade,
cala os títulos de Criador, Redentor, Justificador, e tantos outros de que nos
pudéramos valer, e só quer que lhe chamemos Pai. Por que? Porque esta alegação
tão breve, tão simples, e ao parecer tão
nua e desarmada, é a que mais significa, a que mais move, a que mais enternece
o coração de Deus, e a que não pode resistir todo seu poder. Todas as outras
alegações juntas não chegam a compreender nem exprimir o que diz esta palavra:
Pai.
Desenganado o Pródigo, e cansado de servir o mundo com o pago que ele
costuma dar, o que disse dentro em si, depois que tornou em si, foi: Surgam,
et ibo ad patrem meum (Lc. 15, 18): Tempo é já de me levantar da miséria em
que estou caído, quero-me ir para meu pai. —
Para meu pai? — toma-lhe a
palavra da boca S. Pedro Crisólogo, e argüi contra ele assim: Ad Patrem
meum? Qua spe? Qua fiducia? Qua confidentia? A teu pai, dizes, filho
ingrato, descomedido, perdido? A teu pai, dizes, a quem quiseste herdar antes
da morte? A teu pai, a quem deixaste, e de quem fugiste, como se fora inimigo?
A teu pai, a quem afrontaste com tantas vilezas, tão indignas da nobreza de teu
nascimento? Qua spe? Como esperas que te há de reconhecer? Qua
fiducia? Como crês que te há de admitir? Qua confidentia: Como
confias que te não há de lançar de si? Ea qua pater est — responde o
santo. A esperança com que isto espera, a fé com que isto crê, a confiança com
que isto confia, não é outra, senão o ser pai. Ea qua pater est. É pai?
Pois, ainda que o Pródigo não traga semelhança do que dantes era, há-o de
reconhecer. E pai? Pois, ainda que seja indigno de entrar em sua casa, há-o de
recolher. E pai? Pois, ainda que tenha faltado às obrigações do nascimento e do
sangue, há-o de meter nas entranhas. É pai?
Pois, ainda que tenha deixado de ser filho, ele não há de deixar de
ser pai: Ego perdidi quod erat filii, tu quod patris est non amisisti .
— E uma causa tão contingente, tão improvável, tão desesperada, quem a há de
vencer? Um advogado — diz Crisólogo — não estranho, nem de fora, senão tão
natural e tão de dentro que o mesmo pai o tem no peito: Apud patrem non
intercedit extraneus: intus est in patris pectore ipse qui intervenit et
exorat, affectus. — E um advogado mudo, mas mais eloqüente que Túlio nem
Demóstenes; um advogado que, sem falar, ora; que, sem arrazoar, persuade; que,
sem alegar, convence; que, sem interceder, consegue; que, sem rogar, manda;
que, sem julgar, sentencia, e sempre absolve. E quem é, ou como se chama este advogado?
Amor de pai: Intus, intus est patris pectore, ipse qui intervenit et exorat,
affectus.
Mas donde concebeu aquele moço esta fé, e donde fundou em matéria tão
duvidosa uma tão firme esperança? Fundou-a nas experiências passadas do mesmo
amor, o qual em quem é pai não passa, nem se muda, nem enfraquece, sempre é o
mesmo.
Pedira ele ao pai que o herdasse em sua vida e lhe desse a parte dos
bens que lhe pertencia ou havia de pertencer. E que fez o pai? Deu-lhe o que
verdadeiramente ano devia, e fez, segundo parece, o que não devera. Porque a um
moço tão inimigo da sujeição, tão apetitoso da liberdade, e de tão pouco juízo,
e tão verde que, não levando em paciência a larga vida do pai, não soube
dissimular a impiedade deste desejo, e porque não lhe podia apressar a morte,
quis antecipar a herança, que outra coisa era meter-lhe nas mãos a fazenda,
senão armá-lo contra a virtude e contra a honra, dar-lhe poder e matéria para
os vícios, e pô-lo na carreira da perdição? Pois, se todas estas razões tinha o
pai para lhe negar o que pedia, por que lhe fez a vontade em tudo? Porque era
pai, diz o mesmo santo: Patris est non negare. O amor não sabe negar. —
E porque o amor de pai é o maior amor, nem soube, nem pôde, nem teve coração
para negar ao filho o que lhe pediu. E como ele tinha experimentado no amor do
pai que não bastaram tantas razões para lhe negar o que então pedira, por isso
também agora teve confiança que não seriam necessárias razões para lhe conceder
o que esperava. Quem, tendo razões para negar, não negou, para não negar e
conceder, não há mister razões. Como se dissera o moço, já sisudo e entendido:
— Muita razão tem meu pai para me não admitir em sua casa; muita razão tem para
me não ver nem consentir em sua presença; muita razão tem para me não conhecer,
antes para me negar de filho; razão pelas minhas ingratidões, razão pelas
minhas loucuras, razão pelas minhas vilezas, razão pelas minhas intemperanças;
mas, sobre todas estas razões, está a razão de pai. Contra esta razão não há
razão. E esta é a que me anima, esta a que me dá confiança: Ibo, ibo, ad
patrem meum.
Agora nos digam todos os padres e expositores: este pai e este filho
que são? O pai é Deus o filho somos nós. E, para que nós entendêssemos que a
mais alta prefação e o mais sublime exórdio com que podemos invocar a Deus, e o
mais eficaz motivo que lhe podemos propor, e a mais poderosa razão que lhe
podemos alegar, e o mais amoroso título com que lhe podemos conciliar a graça e
render o coração, é o título, o motivo e a razão de pai, por isso na primeira
palavra do Rosário o invocamos com o nome de Pai, e não como nas outras orações
com os soberanos títulos de Deus ou Senhor. Deus, como Deus, é misericordioso e
justo: mas, como Pai, é misericordioso sem justiça; Deus, como Senhor, é poderoso
para perdoar, e para castigar: mas, como Pai, poderoso para o perdão, e não
para o castigo; como Deus e como Senhor, enfim, pode negar e pode conceder :
mas, como Pai, só sabe conceder, não sabe negar: Patris est non negare.
Sendo, pois, tantas e tão grandes as petições que no Rosário presentamos ao
Consistório divino, acertado e acertadíssimo é o modo com que as fazemos, não
debaixo dos títulos da majestade, senão do nome do amor, não como a Deus e
Senhor, senão como a Pai. Pater noster. E para que saibamos a confiança
com que devemos pedir a este soberano Pai, e o desejo que ele tem de lhe
pedirmos, ouçamos ao mesmo Pai a maior coisa que se pode imaginar nesta
matéria.
Fala Deus com seu próprio Filho, o Verbo Eterno feito homem, e diz
assim: Filius meus es tu; ego hodie genui te. Postula a me, et dabo
tibi gentes haereditatem tuam (Sl. 2, 7 s): Sois meu Filho, porque vos
gerei hoje: pedi-me a vossa herança, que são todas as gentes do mundo, e eu
vô-la darei. — Três coisas quando menos dignas de grande reparo contêm estas
profundas palavras. Se Deus gerou seu Filho ab aeterno, como diz que o
gerou hoje: Ego hodie genui te? – Se diz que a herança é sua: haereditatem
tuam — como quer que ele lha peça: Postula a me? — E se diz que lha dará: Et dabo tibi — por que lha não dá sem a
pedir? Tudo são demonstrações de quanto Deus, como Pai, deseja dar. Muito
deseja dar quem pede que lhe peçam. Nós somos requerentes de Deus, para que nos
dê; e Deus é requerente nosso, para que lhe peçamos.
Mas isto só o faz como Pai a filhos. O Filho que o Padre gerou ab
aeterno era Filho a quem não podia dar, nem ele podia pedir, porque era
Deus. Mas fez que esse Filho se fizesse homem. Para que? Para ter um Filho que,
como homem, lhe pudesse pedir, e a quem ele; como Pai, pudesse dar. A ele
deu-lhe a herança como a Primogênito, e a nós também no-la quer dar como a
filhos segundos, mas com a mesma condição de que a peçamos. E não fora maior
liberalidade dar sem esta condição, e sem esperar que pedíssemos primeiro? Não.
Porque quer dar de tal modo, que não só satisfaça a sua vontade senão também o
nosso desejo. Quem me dá o que não peço, mede a dádiva pela sua vontade; quem
me dá o que peço, mede-a pela minha. Mais faz Deus. Mede pela minha vontade a
sua, que é medida sem medida, porque quer, e se obriga a querer quanto eu
pedir. Por isso quis o soberano Pai que pedíssemos, e por isso nos ensinou o
Filho este modo de pedir a seu Pai.
El-rei Assuero ofereceu à rainha Ester que pedisse o que quisesse; mas
esta largueza, ou de liberalidade, ou de amor, quando cuidou que a estendia
então a limitou, porque dizendo: Quid vis? — acrescentou: Etiam si dimidiam partem regni petieris, dabitur tibi (Est. 5, 3): que
ainda que pedisse a metade do seu reino, lho daria. — Pouco dá, e pouco quer,
quem do que tem e do que pode oferece só a metade. Não assim o Pai a quem
pedimos, porque uma só partida do que quer que lhe peçamos nesta mesma oração
do Padre-nosso não é a metade do seu reino, senão todo: Adveniat regnum tuum (Mt. 6, 10). Assuero era rei e esposo:
enquanto rei, falou nele a liberalidade, e enquanto esposo o amor; e é tanto
maior em Deus a liberalidade e amor de Pai que, quando a liberalidade de rei e
o amor de esposo não chega mais que a prometer a metade do reino, a
liberalidade e amor deste soberano Pai não da menos que todos. E notai que,
quando lhe pedimos o reino, não dizemos que nos dê o seu reino, senão que o seu
reino venha a nós. Por que? Porque pedimos como filhos a Pai, e o reino do Pai
vem aos filhos. Esta é a razão porque diz o Pai que dará a sua herança ao
Filho: Dabo tibi haereditatem tuam. A herança vem aos filhos, não lha
dão os pais; pois, por que diz este Pai que dará ao Filho a sua herança? Porque
é Pai imortal.
Quando os pais são mortais, a herança é pura herança, e vem por morte
dos pais aos filhos. Mas quando o Pai é imortal, como Deus, a herança dos
filhos é herança com propriedade de doação intervimos, e a doação do Pai é
doação com propriedade de herança. Com propriedade de herança, porque de
direito vem aos filhos; e com propriedade de doação, porque verdadeiramente a
dá o Pai: Dabo tibi haereditatem tuam.
Só resta dentro no mesmo Padre-nosso uma objeção que, parece, desfaz
claramente o que até agora dissemos. Dissemos que não alegamos a Deus outro
título, nem outro motivo, nem outra razão da sua ou da nossa parte, senão
somente o ser Pai; e na mesma oração do Padre-nosso pedimos a Deus que nos
perdoe, assim como nós perdoamos; logo, ainda que da parte de Deus só lhe
representamos o ser Pai, da nossa parte alegamos o perdão dos inimigos, que não
é pequeno nem fácil merecimento. Tão fora está isto de ser objeção, que antes é
maior confirmação do que digo. Supor o perdão dos inimigos não é alegação, é
justificação. Ora vede. Para pedir aos príncipes da terra, não é necessário
justificar primeiro o que na petição se alega? Sim. Pois, do mesmo modo, para
pedir a Deus, a quem só alegamos o ser Pai, é necessário justificar também que
ele verdadeiramente é Pai nosso, e nós filhos seus. E esta justificação só se
prova com o perdão e amor dos inimigos. O mesmo Cristo o disse: Diligite inimicos vestros, benefacite his
qui oderunt vos, ut sitis filii Patris vestri, quiin caelis est (Mt. 5, 44 s): Amai a vossos inimigos;
e fazei bem aos que vos querem mal, para que sejais filhos do vosso Pai, que
está no céu. — De vosso Pai que está nos céus, diz, assim como nós dizemos: Pater
noster, qui es in caelis (Mt. 6, 9).
— E esta é a razão por que em
toda a oração do Padre-nosso, e em todo o Rosário, nenhuma outra coisa ou ação
nossa deduzimos ou supomos, senão o perdão dos inimigos somente: Sicut et
nos dimittimus debitoribus nostris — porque o nosso intento não é alegar
algum título de merecimento da nossa parte, senão só justificar que Deus, a
quem invocamos como Pai, verdadeiramente é Pai nosso, para que as petições que
debaixo deste nome se seguem fiquem correntes e não saiam escusadas. Oh! que
boa advertência esta para todos os que rezam o Rosário!
Quando começam dizendo
Pater noster, suponham que o primeiro despacho é: justifique; e, se
justificarem com o perdão e amor dos inimigos que estão em estado de filhos,
então esperem confiadamente, que o Pai do céu que invocam lhes concederá tudo o
que pedem.
CAPÍTULO IV
Segundo reparo: por que Cristo, dando o modo e a forma com que havemos
de orar, diz que oremos dizendo Padre-nosso, e não Pai meu? A nobreza de
nascimento e a paternidade de Deus. Alexandre Magno, filho de Júpiter. Se
Cristo nos diz que não chamemos país aos pais da terra, que vêm logo a ser os
que chamamos pais? Isaías e a diferença entre o Pai-Deus e os pais-homens. A
nobreza de ser filho de Deus. S. Pascásio contra os idólatras da vaidade. O
escrúpulo dos filhos de Jacó.
Guardem-se de dizer a Deus Padre-nosso, os que se estimam por mais
nobres que os pequenos.
Esta é a primeira parte do modo com que presentamos nossas petições à
majestade divina, não como a Deus, nem como a Senhor, senão como a Pai. A
segunda parte, e não menos excelente, é que lhas não presentamos só como a Pai,
senão como Pai nosso: Pater noster. O em que aqui reparo é em dizermos nosso, e
não meu. Funda-se a dúvida não menos que nas palavras do mesmo Cristo quando
ensinou o Padre-nosso, que são estas: Tu autem cum oraveris, intra in
cubiculum tuum, et clauso ostio, ora Patrem tuum in abscondito; et Pater tuus,
qui videt in abscondito, reddet tibi (Mt. 6, 6): Tu, quando orares, entra
no aposento mais secreto da tua casa, e com a porta fechada ora a teu Padre, e
teu Padre, para cuja vista não há lugar oculto nem escondido, te dará o que lhe
pedires. — Pois, se o mesmo Cristo uma e outra vez chama ao Padre, não nosso,
senão meu: Patrem tuum e Pater tuus — por que razão, continuando o mesmo
texto, e dando o modo e a forma com que havemos de orar, diz que oremos dizendo
Padre-nosso: Sic ergo vos orabitis: Pater noster, qui es in caelis (Mt.
6, 9) — Deus é Pai nosso e de todos, porque é Pai de cada um; pois, se é Pai de
cada um, por que não dirá cada um quando ora Pai meu, senão Pai nosso? Que
digamos Pai nosso quando oramos em comum, assim pede a mesma comunidade que
seja; mas quando ora um só em particular, por que não há de dizer Pai meu?
Porque Deus, que assim o mandou, quer que oremos deste modo. Quer que em comum
e em particular digamos sempre Pai nosso, para que, em comum e em particular,
nos lembremos sempre que todos somos filhos de mesmo Pai: Ut nemo applaudat
sibi de notabilitate generis: omnes enim filii Dei sumus — comenta Hugo
Cardeal. Quer e manda Cristo que nos lembremos, quando oramos, que somos filhos
do mesmo Pai-Deus, porque não haja algum tão ignorante, ou tão desvanecido, que
pela chamada nobreza de sua geração cuide que é melhor ou mais honrado que os
outros. Oh! que altíssimo ponto este, e mais para os vossos pontos! Dizei-me,
senhores, os que vos tendes por tais: quando tomais o Rosário na mão, e trazeis
entre os dedos esta primeira conta, dizendo Padre-nosso fazeis a conta que Deus
quer que façais, sem diferença de vós a qualquer outro homem?
Dir-me-eis que Deus não vos manda desconhecer a vossa qualidade, nem
negar a vossa nobreza, e que, se todos somos iguais em ter a Deus por Pai, vós
tendes de mais a nobreza dos pais de que nascestes, e que esta vos distingue e
desiguala dos outros homens, e vos faz de melhor e muito superior condição. A
resposta é muito própria do vosso
entendimento, mas não muito digna da nossa fé. E esses pais, ainda que fossem
reis e imperadores, podem entrar em consideração para fazer diferença com quem
tem a Deus por Pai? Quisera chamar a isto gentilidade, mas nem a resposta
merece tão pequena censura, nem os gentios tamanha afronta. Gentio era
Alexandre Magno, e, soberbo com os sucessos daquela sua grande fortuna,
querendo ser tido e adorado por Deus, que fez? Intitulou-se filho de Júpiter, e
mandou que ninguém dali por diante o nomeasse por filho de Filipe. E este
Filipe, quem era? Não só era rei de Macedônia, mas o mais insigne rei que os
macedônios nunca haviam tido; grande amplificador do seu império, famoso
conquistador de muitos reinos e províncias, e tão celebrado por seus heróicos
feitos em armas, que o mesmo Alexandre invejava suas vitórias e as festejava
com lágrimas.
Pois, de um rei tão grande, tão poderoso, tão temido e respeitado na
Grécia, tão famoso e celebrado em todo o mundo, se despreza Alexandre de ser
filho, e não quer ser conhecido nem nomeado por tal? Sim. E obrara muito contra
a razão se assim o não fizera quando se intitulava filho de Júpiter. Quem se
chama filho de Júpiter, e tem a Júpiter por pai, todos os outros títulos que
por qualquer via lhe compitam, por maiores e mais reais que sejam, mais são
para o desprezo que para a estimação, mais para o esquecimento que para a
memória, mais para o silêncio que para a jactância. Até entre os gentios, e no
gentio mais soberbo, quem tem a Deus por Pai não toma na boca outros pais. E se
isto era conforme à razão, onde o Deus-pai era tão falso pai como falso Deus,
que será onde o verdadeiro Deus é o verdadeiro Pai? Não só é falta de fé, senão
de entendimento e juízo.
Mas, vamos à fé, e ouçamos o que ensina sobre este ponto o mesmo
Mestre divino, autor do Padre-nosso e comentador dele: Patrem nolite vocare
vobis super terram: unus est enim Pater vester, qui in caelis est (Mt. 23,
9): Não queirais — diz Cristo — chamar pais aos da terra, porque só tendes um
Pai, que está no céu. — Grande e admirável sentença, e que, parece, diz mais do
que diz, dizendo muito mais do que parece. Cristo, que isto ensina, não e o
mesmo Deus que nos manda honrar os pais? Sim. Pois, se os manda honrar, como
diz que lhes não chamemos pais? Havemos de lhes dar a honra, e tirar-lhes o
nome? Assim o mostra a razão que o mesmo Senhor acrescenta: Unus est enim
Pater vester, qui in caelis est: Não chameis pais aos da terra, porque só o
do céu é vosso Pai. — Logo, se só o do céu é nosso Pai, a ele só devemos dar o
nome de Pai, e a nenhum outro. E se não pergunto: muitos que puderam ser pais,
e o desejam ser, por que o não são? Porque Deus, como respondeu Jacó a Raquel,
é o que dá os filhos, e também para que esses mesmos que não são pais conheçam
que o ser que têm o não devem a seus pais, senão a Deus. Que vêm logo a ser os
que chamamos pais, pois não são eles, senão Deus o que nos dá o ser? Vêm a ser
uma estrada geral, ordenada pelo mesmo
autor da natureza, por onde passa o ser
que ele nos dá. Profunda e elegantemente S. João Crisóstomo: Non initium vitae habemus a parentibus,
sed transitus vitae per eos accipimus: O princípio do ser que temos não sai
nem vem dos pais, porque todos o recebemos de Deus, passado somente por eles:
Sed transitus vitae per eos accipimus. — Vem a ser propriamente o nosso ser
como as águas que enchem e fazem os rios. O Nilo ou o Tejo não devem as suas
correntes às terras por onde passam, senão à fonte donde nasceram. Assim nós
entramos neste mundo passados pelos pais da terra, ou pela terra dos pais; a
fonte, porém, donde trazemos o ser é só o Pai do céu: Unus est enim Pater
vester, qui in caelis est. — Oh! que alto nascimento, e que grande
obrigação, mas que mal guardada! Por isso, em vez de sabermos à fonte, sabemos
à terra.
Ainda sondou este pego, e lhe achou maior fundo o profeta Isaías. Fala
em nome do povo de Israel, e pede a Deus que use com ele de suas antigas
misericórdias, de que, parece, estava esquecido, e alega desta maneira: Tu
enim Pater noster, et Abraham nescivit nos, et Israel ignoravit nos (Is.
63, 16): Porque vós, Senhor, sois nosso Pai, e Abraão e Jacó não nos
conheceram. Todo aquele povo de nenhuma coisa mais se prezava que de serem
filhos de Abraão e Jacó; pois, como agora dizem que só Deus é seu Pai, e não
Abraão nem Jacó, e a razão com que o provam é que nem Abraão nem Jacó os
conheceram: Abraham nescivit nos, et Israel ignoravit nos? — Falou
Isaías altissimamente, e alegou a maior e mais interior diferença que há entre
o Pai Deus e os pais-homens. Deus conhece aqueles a quem dá o ser: os homens,
ainda que lho dessem, não os conhecem. Conhecem os filhos depois de nascidos,
mas antes de gerados não; e quem me faz o benefício sem me conhecer, não mo faz
a mim, pouco lhe devo; não foi eleição, foi caso. Tanto assim que por isso nascem
a muitos pais tais filhos que antes tomaram que não fossem seus. E como Abraão
e Jacó não conheciam os filhos que deles nasceram, e Deus sim, essa é a
diferença altíssima por que alega Isaías que só Deus é o seu Pai, e não Abraão
nem Jacó. Logo, do mesmo modo também nós só devemos reconhecer por pai ao Pai
do céu, que nos deu o ser e nos conheceu, e não chamar pais aos da terra, que
nem no-lo deram nem nos conheceram; e isto é o que soam as palavras de Cristo: Patrem
nolite vocare vobis super terram : unus est enim Pater vester, qui in
caetis est.
Por isso eu disse que esta sentença parecia que diz mais do que diz,
dizendo mais do que parece, como agora veremos. Não diz Cristo, Senhor nosso,
nem quer dizer que neguemos aos que nos geraram o nome de pais; só diz, e só
quer dizer, que esses pais não os tragamos sempre na boca, como muitos fazem,
prezando-se e jactando-se deles, e cuidando que por este acidente, que não é da
natureza, senão da fortuna, são melhores e mais honrados que os outros homens.
A demonstração com que o Senhor convence a vaidade deste pensamento é
manifesta: Unus est enim Pater vester, qui in caelis est. —Não vos jacteis
dos pais da terra, porque o vosso Pai do
céu é um só. — São três razões em três palavras: por ser Pai, por ser do céu,
por ser um. Se é Pai que verdadeiramente vos deu o ser, por que vos haveis de
prezar dos que chamais pais, e vo-lo não deram? Se é do céu, e é Deus, por que
vos não haveis de gloriar mais de ser seus filhos, que dos pais da terra, que
são homens? E se é um só Pai de todos, por que vos não haveis de estimar e
honrar todos com amor e igualdade de irmãos?
Esta última é a principal conseqüência que o Senhor pretendeu
persuadir, porque a inferiu tendo dito: Omnes autem vos fratres estis.
Pois, se todos somos irmãos e filhos do mesmo Pai, e tal Pai, que fundamento
tem ou pode ter a soberba, para um cristão desprezar a outro cristão, e se
reputar ou inchar de mais bem nascido? Responde a mesma soberba que, se o Pai
do céu é um, os pais da terra são muitos, e de mui diferentes fortunas, como se
Cristo, que disse: Unus est Pater vester — não soubera esta distinção.
Mas nenhum caso fez dela, porque todas essas fortunas, nem por altas, nem por
baixas, podem acrescentar ou diminuir nobreza em quem é filho de Deus. Ponde em
uma balança de uma parte a Deus só, e da outra a Deus e todo o mundo, e
perguntai a Santo Tomás qual pesa mais? Tanto pesa uma como outra: porque todo
o mundo e mil mundos juntos a Deus, em respeito de Deus só, nem acrescentam
peso, nem fazem maioria. O mesmo passa no nosso caso.
Tanta nobreza é ser filho de Deus somente, como ser filho de Deus e do
maior monarca do mundo. Tão nobre é João, filho de Deus e de um pescador, como
o imperador Arcádio, filho de Deus e de Constantino Magno. Cuidar alguém o
contrário, não só é ignorância e loucura, mas falta ou desprezo da fé. Ouçam a
S. Pascásio estes idólatras da vaidade: Si vera fide haec paternitas
veneraretur et amaretur, nunquam fraternitas carnis amplius valeret apud
aliquos, sed praeferrent nobilitatem ex Deo, darentque operam, ne degeneres
existerent, et tanto parente indigni propter vetustatem carnis: Se os
cristãos creram com verdadeira fé, e estimaram como devem o que é ter a Deus
por Pai, de nenhum modo desprezariam aos que, por este soberano parentesco, são
seus irmãos; mas, porque muito se prezam mais da geração dos pais da terra, por
isso são e se fazem indignos de ser filhos do Pai do céu. De sorte que desses
que vós desprezais é Deus Pai, e vós, porque os desprezais, deixais de ser
filhos. É Pai seu, mas não é Pai vosso. Então, ouvir a estes rezadores cegos
com o Rosário na mão: Pater noster,
qui es in caelis —desprezando eles no mesmo tempo aos filhos do mesmo Pai!
Isto não é rezar o Padre Nosso, é brasonar os padres vossos. É ofender, é injuriar,
é afrontar o Pai do céu, pois vos prezais mais dos pais da terra. Se o fim por
que Cristo nos ensinou a dizer Pater noster foi para todos, como filhos do
mesmo Pai, nos estimássemos e honrássemos como irmãos, os que os não tratam nem
estimam como tais, como podem dizer Padre nosso? Não podem. E vede se o provo.
Morto Jacó, vieram a José seus irmãos, e disseram-lhe desta maneira: Pater
tuus praecepit nobis antequam moreretur, ut haec tibi verbis illius disceremus:
Obsecro ut obliviscaris sceleris
fratrum tuorum, et peccati atque malitiae quan exercuerunt in te (Gen.50,
16 s): Vosso pai, antes de morrer, nos mandou vos disséssemos em seu nome que
ele vos rogava muito vos não lembrásseis do mal que vos tinham tratado vossos
irmãos, e lhes perdoásseis. — Reparai, se já não tendes reparado, na palavra pater tuus, vosso pai. Jacó igualmente
era pai de José, e de todos os outros irmãos que lhe davam o recado em seu nome
pois, se era pai de José, e também pai seu deles, por que não dizem nosso pai,
senão vosso pai: pater tuus? Porque
estes mesmos irmãos tinham tratado a José tão indignamente, como sabemos; e
irmãos que não estimam nem honram a seus irmãos como devem, ainda que sejam
filhos do mesmo pai, não podem chamar a esse pai nosso. Por isso não disseram pater
noster, senão pater tuus.
Oh! soberba! Oh! pouca cristandade! Oh! falta grande de fé! Oh!
ignorância intolerável da lei e verdade que professamos!
Os grandes, que se estimam por mais nobres que os pequenos, os
senhores, que se têm por mais honrados que os seus escravos, os mesmos reis,
que cuidam que são melhores que o menor de seus vassalos, guardem-se de dizer a
Deus Padre nosso. Se querem que Deus se não ofenda, e os ouça, desçam-se
primeiro desse pensamento, que na maior alteza é altivo, reconheçam a todos por
irmãos e por seus iguais na nobreza, como filhos do mesmo Pai, porque este é o
foro em que Cristo nos igualou a todos, quando a todos, sem diferença, nos
mandou dizer: Pater noster. E por que
não pareça que ao menos os reis, pela soberania do seu estado, podem ser
exceção desta regra, ouçam o que pregava S. João Crisóstomo aos imperadores em
Constantinopla, explicando-lhes o Padre-nosso, e ensinando-os como o haviam de
dizer: Unam regis cum paupere aequalitatem honoris ostendit; cunctis enim
unam, atque eamdem nobilitatem donavit Deus, cum dignatus est Pater omnium
vocari: Quando Deus nos concedeu a todos que igualmente o invocássemos com
nome de Pai nosso, juntamente nos deu tal igualdade de honra e de nobreza a
todos, sem diferença alguma, que tão nobre e tão honrado é o pobre que pede
esmola pelas portas, como o rei que esta assentado no trono e com a coroa na
cabeça: Unam regis cum paupere aequalitatem honoris ostendit: unam eamdemque
nobilitatem cunctis donavit.
— Para que, finalmente, se veja
se foi altíssimo modo de orar o com que Cristo ajuntou o noster ao Pater, pois,
sem abater a alteza dos príncipes soberanos, a que o mundo chama baixeza,
levantou e sublimou a mesma baixeza à igualdade dos mesmos príncipes, e tudo
isto com uma só palavra: noster: Extollens vocem.
CAPÍTULO V
Segunda consideração: as petições que fazemos a Deus. Pedir que seja
feita a vontade de Deus assim na terra como no céu, e pedir o impossível? A
esta objeção responde-nos o mesmo Mestre Divino, exortando-nos a que sejamos
perfeitos como o Padre celeste e perfeito. Diferença entre fazer Deus a sua
vontade, e ser feita a vontade de Deus. Em que há de ser feita a vontade de
Deus? A vontade de Deus mais áspera de sofrer e de mais dificultosa
conformidade. Como aceitam os anjos no céu as vontades de Deus? Em que consiste
a semelhança civil da terra com o céu? Cristo, no Padre-nosso, não só nos
ensinou o fazer a sua vontade, senão também o modo de a fazer.
Passando à segunda consideração, que é das petições que fazemos a
Deus, nelas mais claramente ainda parece que excedemos o equilíbrio ou meio
proporcionado e justo em que consiste o modo, porque em umas pedimos muito mais
e em outras muito menos do que devemos pedir.
Quanto às primeiras, seja exemplo aquela que compreende a todas, na
qual pedimos a Deus que seja feita a sua vontade assim na terra como no céu; e
este modo de pedir, quem não vê que é fora de todo o modo? Se disséramos
somente: Fiat voluntas tua — e
paráramos ali, entender-se-ia que desejávamos e pedíamos a Deus que se fizesse
a sua vontade na terra, segundo a fraqueza da terra de que somos compostos, e
segundo o estado da terra em que vivemos ou em que lutamos dentro e fora de
nós, com as misérias da mesma vida; porém, dizer e acrescentar que seja feita a
vontade de Deus sicut in caelo, et in terra (Mt. 6, 10): assim na terra
como, no céu — é pedir o que se não pode pedir, nem se pode desejar, nem pode
ser. O céu não só é incapaz de pecado, mas nem ainda da menor imperfeição;
todos lá fazem a vontade de Deus — perfeitissimamente, vendo ao mesmo Deus, e
revendo-se na mesma vontade, e esta é a melhor parte da sua mesma
bem-aventurança. Pelo contrário, na terra, nem ainda os maiores santos e
confirmados em graça estão livres de imperfeições e de alguns pecados leves,
próprios da fragilidade humana, por onde disse S. João, sendo, ele o que mais
amou e o mais amado de Cristo: Si dixerimus quoniam peccatum non habemus,
ipsi nos seducimus, et veritas in nobis non est. A razão desta diferença é
porque Deus no céu é amado por vista, na terra é amado por fé, e a vista
necessita a vontade, a fé deixa livre o alvedrio. Logo, se na terra nem se faz,
nem se pode fazer a vontade de Deus, como no céu, pedir que se faça na terra
como no céu e pedir o impossível.
A esta objeção só pode satisfazer o mesmo Mestre divino, que nos
ensinou a dizer sicut in caelo, et in terras e responderá a um sicut com
outro sicut. Exortando-nos Cristo, Senhor nosso, à perfeição que deseja nos
observadores da sua lei, diz que sejamos perfeitos assim como o Padre celestial
é perfeito: Estote ergo perfecti, sicut et Pater vester caelestis
perfectus est (Mt. 5, 48). Já vedes
como um sicut responde ao outro. Mas, se a perfeição do Eterno Padre é
infinita e imensa, e a nossa, ainda que fôssemos anjos, por mais alta e
excelente que seja, sempre é de criaturas, e, por isso, finita e limitada, como
nos propõe o Senhor por exemplar de nossas ações, não outra perfeição menor,
senão a do mesmo Padre, e diz que sejamos perfeitos como ele é perfeito? Porventura
houve jamais ou é possível haver criatura que possa chegar, nem de muito longe,
não digo à igualdade, mas nem ainda à semelhança de tão inacessível perfeição?
Claro está que é impossível; mas propõe-nos Cristo um exemplar impossível,
quando nos exorta à imitação dele, para que, aspirando ao impossível, venhamos
a conseguir o possível. Bem sabe o soberano Artífice que nos fez o que podemos
com sua graça, e por isso nos exorta ao que não podemos, para que cheguemos ao
que podemos. E se isto tem lugar na comparação do homem a Deus: sicut Pater
vester — quanto mais na comparação da terra ao céu: sicut in caelo, et
in terra? O que importa é que nós digamos deveras: Fiat voluntas tua.
Não falta, porém, quem argua esta petição ao menos de supérflua e
ociosa. Deus, assim no céu como na terra, sempre fez, e faz, e há de fazer o
que quer: Omnia quaecumque voluit Dominus fecit, in caelo et in terra —
logo, supérflua coisa é, inútil e ociosa, pedir a Deus que faça a sua vontade,
pois ele há de fazer sempre, ainda que nós não queiramos nem lhe peçamos que a
faça. Muito me admira que tenha grandes autores esta réplica, e tão grandes,
que por sua autoridade os não nomeio. Nós não pedimos a Deus que faça a sua
vontade: pedimos-lhe que seja feita: Fiat voluntas tua. — E que mais tem
ser feita a vontade de Deus que fazer Deus a sua vontade? Muito mais. Porque o
que não pode fazer a vontade de Deus fazendo, faz sendo feita. E pensamento
profundíssimo de S. Bernardo, e o prova com a criação e bem-aventurança dos
anjos: Voluntas Domini, quae prius angelos creavit, faciens eosdem,
postmodum in eis facta beavit: A vontade de Deus, que, fazendo os anjos, os
fez anjos, sendo feita neles, os fez bem-aventurados. — De sorte que a vontade
de Deus, fazendo, pôde fazer anjos; mas, fazê-los bem-aventurados, não o pôde
fazer fazendo, senão sendo feita: Faciens
creavit angelos, facta beavit. — A razão é porque, para uma criatura
racional ser, é necessário que a vontade de Deus a faça; mas, para ser
bem-aventurada, é necessário que ela faça a vontade de Deus. Criou Deus no céu
a Lúcifer e criou a Miguel que foram as duas obras da mão divina as mais
nobres, as mais excelentes, as mais parecidas com seu próprio Artífice, e as
mais enriquecidas de todos os dotes e graças da natureza, que no teatro das
jerarquias se extremaram sobre todas. Isto fez a vontade de Deus fazendo. E
sendo feita, ou não feita, que fez? Não sendo feita, fez que Lúcifer, que havia
de ser bem-aventurado, fosse o maior demônio; e, sendo feita, fez que Miguel,
que também pudera ser demônio, fosse o maior bem-aventurado. Por isso pedimos a
Deus, não que faça a sua vontade, senão que seja feita: Fiat voluntas tua.
E em que há de ser feita, ou em que pedimos que seja feita a vontade
de Deus? Este é o ponto mais subido desta altíssima petição. Pedimos que seja
feita a vontade de Deus em tudo quanto Deus quer ou pode querer, sem exceção,
sem limite, sem réplica. No particular e no comum; no próprio e no alheio; no
próspero e no adverso; no presente e no futuro; no temporal e no eterno. S.
Paulo distingue na vontade de Deus três vontades: uma boa, outra melhor, outra
perfeita: Quae sit voluntas Dei bona, et beneplacens, et perfecta. Com a
vontade boa quer Deus o que manda; com a vontade melhor quer o que aconselha;
com a vontade perfeita quer o que nem aconselha, nem manda, mas, ou o executa
por si, ou o permite por outros; e a todas estas vontades se sujeita, e com
todas se conforma quem diz: Fiat voluntas tua.
Na lei velha só um homem achou Deus que fizesse todas as suas
vontades, que foi Davi: Inveni virum secundum cor meum, qui faciet omnes
voluntates meas. Na lei da graça quer Deus que todas as suas vontades as
façamos todos. Todos e todas por árduas, por dificultosas, por encontradas que
sejam. Uma vez quer Deus o gosto, outra o desgosto; uma vez quer a riqueza,
outra a pobreza; uma vez a honra, outra a afronta; uma vez o aplauso, outra a
perseguição; uma vez a bonança, outra a tempestade; uma vez a fortuna, outra a
fome; uma vez a saúde, outra a doença; uma vez a vida, outra a morte. E assim
como todos estes encontros se conciliam na vontade de Deus, donde saem, assim
quer se recebam sem repugnância na nossa, onde todos se aceitam. Se sois pai, e
quer Deus tirar-vos o filho mais amado, como Isac a Abraão: Fiat voluntas
tua. — Se sois esposo, e vos quer Deus levar a companhia mais estimada e a
prenda mais querida, como Raquel a Jacó: Fiat voluntas tua. — Se sois
rei, e vos quer Deus privar da própria coroa, e pelo instrumento mais injusto e
mais ingrato, como a Davi por Absalão: Fiat voluntas tua. — Se sois
valente e famoso nas armas, antes, o milagre da valentia, e vos quer Deus
entregar fraco, manietado e afrontado nas mãos de vossos inimigos, como Sansão:
Fiat voluntas tua. — Se sois, finalmente, homem, e muito grande no mundo, e não
só vos quer Deus tirar o poder, a grandeza e a majestade, senão a mesma figura
humana, e uso dela, e que pasteis entre os brutos, como Nabucodonosor: Fiat
voluntas tua.
Pode Deus ainda querer mais? Sim, pode. Pode querer que todos esses
trabalhos, todas essas penas, todas essas dores que, divididas, atormentariam
mortalmente muitos homens, se ajuntem todas em vós; e padecendo essa vida pior
que a morte, ou vivendo essa morte bastante a tirar mil vidas, que haveis de
fazer ou dizer? Fiat voluntas tua. Outros, creio, se contentariam com
isto, e parariam aqui; mas para mim ainda entre as vontades de Deus há uma que
mais fere e mais penetra o coração, mais rigorosa e mais áspera de sofrer, e de
mais dificultosa conformidade. E qual é? A que Judas Macabeu antepôs à vida, e
julgou por mais dura de tolerar que a morte: Melius est nos mori in bello,
quam videre mala gentis nostrae (1
Mac. 3, 59): Melhor é — disse aos companheiros — morrer na guerra, que viver e
ter vida nem vista para ver os males e calamidades da pátria, e as afrontas e
abatimentos da nossa nação. — Oh! ânimo verdadeiramente leal, fiel, generoso,
heróico! Mas, se suceder, e Deus quiser que a pátria se abrase, como Tróia, que
se confunda, como Babilônia, que se subverta, como Nínive, que não fique nela
pedra sobre pedra, como Jerusalém, e que se sepulte uma, duas e três vezes
debaixo de suas ruínas, como Roma, ainda no tal caso, responde o generoso
macabeu, não desmaiará nem cairá o meu coração, porque ficará em pé a vontade
divina: Sicut autem fuerit voluntas in caelo, sic fiat.
Tanto como isto quer dizer, e tanto como isto dizemos no Padre-nosso
quando dizemos: Fiat voluntas tua. Mas ainda não chegamos mais que à metade da
petição. E bastará que todos estes males, todas estas calamidades particulares
e públicas, nossas e de todos, as levemos com paciência, as soframos com
constância, as aceitemos com conformidade na vontade de Deus? Não basta, porque
ainda quer e diz mais o mesmo Deus: Sicut in caelo, et in terra : A
minha vontade há-se de fazer ou ser feita na terra, assim como se faz e é feita
no céu. — Como se vêem desde o céu, e como se recebem e aceitam lá todas essas
calamidades do mundo? Não só com perfeitíssima conformidade, senão com
suma alegria. Rebelou-se Lúcifer no céu,
e levou consigo ao inferno toda a sua parcialidade dos espíritos apóstatas. E
que sentimento causou nos outros anjos a infelicidade de tão estranha e
universal ruína? Todas as três jerarquias ficaram desfeitas, e todos os nove
coros diminuídos, não menos que na terceira parte; mas na glória e alegria dos
anjos obedientes à vontade divina, nenhuma diminuição nem mudança houve: tão
gloriosos e tão alegres continuaram a cantar os louvores de Deus, como agora o
fazem e farão eternamente. Como Eva, pecou Adão, e foram ambos lançados do
paraíso da terra, criado para restauração das cadeiras do céu; e os anjos da
guarda, particularmente do mesmo Adão e da mesma Eva, que demonstração fizeram
por aquela desgraça? Se eles não foram os mesmos querubins, que com montantes
de fogo lhes proibiam a entrada do paraíso, tanta foi a alegria em que
perseveraram na perda dos seus recomendados, como se eles se tiveram conservado
na felicidade em que lhes foram entregues. Todos os reinos e impérios, como
consta do profeta Daniel, têm seus anjos tutelares, que os assistem, governam e
defendem. Passou, pois, o império dos assírios aos persas; e que fez o anjo
tutelar dos assírios? Passou o império dos persas aos gregos; e que fez o anjo
dos persas? Passou o império dos gregos aos romanos; e que fez o anjo dos
gregos? Passa, finalmente, o império dos romanos — que ainda se não sabe para
onde — não aparecendo já dele mais que a
sombra, nem se ouvindo mais que o nome, e que fez o anjo dos romanos? Todos se
alegram igualmente nestas ruínas, como se alegravam no maior auge de suas
felicidades, porque na vontade de Deus, a quem estão vendo, vêem também todo o
motivo da sua perpétua alegria. Maior caso ainda. Todas as espécies de
criaturas que nascem, ou vivem, ou se movem, ou se não movem na terra, têm seus
anjos particulares, a quem incumbe o cuidado de sua conservação. Mandou Deus
sobre o mundo o dilúvio universal, em que todos os homens pereceram, e todas
essas criaturas se destruíram; e quando parece que só os anjos da guarda de Noé
e seus filhos haviam de ficar triunfantes e alegres, e todos os mais
desconsolados e tristes, tão universal foi a alegria em todos os anjos, como o
castigo em todos os homens. Não vos parece muito tudo isto, e mais que muito?
Pois nada tenho dito até agora. Padece Cristo os maiores tormentos e
afrontas, morre, finalmente, pregado em
uma cruz, e, posto que o céu, por esta parte inferior, se cobriu de luto,
eclipsando-se o sol, na parte de cima, que é a do empíreo, que sentimento fizeram
os anjos vendo morrer a seu Deus? Oh! assombro! Oh! prodígio nunca imaginado da
conformidade com a vontade divina! Morre Deus, e sendo os anjos as criaturas
que melhor entendem e mais o amam, nem por um só momento cessaram então as
festas e cantares dos mesmos anjos, tão alegres na morte de seu Criador como no
seu nascimento, tão alegres no seu enterro, como na sua ressurreição.
Isto é, nem mais nem menos, o que significa no Padre-nosso, sobre a
primeira parte da petição: Fiat voluntas tua — a segunda é mais sublime: Sicut in caelo, et in terra. —
Se tudo quanto acontece ou pode acontecer no mundo, por adverso, por terrível,
por lastimoso e triste que seja, nenhum abalo faz no céu, e não só se aceita lá
sem dor, senão com igual e constante alegria; o mesmo professamos nós, e para o
mesmo nos oferecemos a Deus, se com verdade lhe dizemos que seja feita a sua
vontade assim na terra como no céu. Tanto assim, diz S. João Crisóstomo, que,
por força destas palavras, nos manda Cristo que antes de irmos ao — céu tragamos o céu a nós, e façamos da terra
céu: Antequam ad caelum perveniatur,
ipsam terram jussit fieri caelum, per hoc quod dicit; Fiat voluntas tua, sicut
in caelo, et in terra. — E por que não pareça este pensamento
demasiadamente encarecido, ainda tenho em prova dele outro melhor autor e outro
melhor João que Crisóstomo. S. João Evangelista, no seu Apocalipse, diz que viu
um céu novo e uma terra nova, e que a cidade do céu descia à terra: Vidi caelum novum et terram
novam, et sanctam civitatem Jerusalem novam descendentem de caelo. Mas, como pode isto ser? Há
Deus de mudar a arquitetura e fábrica do céu e da terra, e trocar-lhes os
lugares? Não, dizem todos os expositores, e o puderam provar do mesmo texto,
porque, quando S. João viu descer o céu à terra, não lhe chama céu, senão
cidade : Vidi civitatem — para mostrar que havia de descer, não
localmente, senão civilmente. Não localmente, porque o céu não havia de mudar
de lugar passando à terra, mas civilmente, porque a terra havia de mudar de
costumes, vivendo-se na terra como no céu. E esta semelhança civil da terra com
o céu em que consiste? O mesmo evangelista o declarou: Et absterget Deus
omnem lacrymam ab oculis eorum: et mors ultra non erit, neque luctus, neque
clamor, neque dolor erit ultra. Nesta cidade descida do céu à terra, ainda que
haja trabalhos, misérias, enfermidades, mortes, haver-se-ão contudo nela os
homens como se nada disto lhes tocara, porque não haverá dor, nem queixa, nem
tristeza, nem lágrimas. E terra onde todas as causas de dor se recebem sem dor,
e todas as causas de tristeza, com alegria, já não é terra como terra, senão
terra como céu: Sicut in caelo, et in terra. — Tanta é a virtude
davontade de Deus, quando a nossa se conforma com a sua: Fiat voluntas tua.
Agora, perguntara eu aos devotos do Rosário, ou aos que cuidam que o
são, como rezam o Padre-nosso, e como dizem a Deus: Fiat voluntas tua, sicut
in caelo, et in terra? Primeiramente, se dizem isto os que não fazem a
vontade de Deus nem guardam sua lei, é falsidade, é hipocrisia, é mentira. Tão
longe estão de fazer a vontade de Deus como se faz no céu, que nem a fazem como
se faz no inferno. No inferno também se faz a vontade de Deus, não por vontade,
mas por força. E quantos há que nem por vontade nem por força fazem a vontade
de Deus na terra? Estes, se falaram verdade, haviam de dizer a Deus: Faça-se a
minha vontade, e não a vossa. Mas ainda aos timoratos, e que vivem cristãnente,
fizera eu a mesma - pergunta. Vos os que fazeis na terra a vontade de Deus,
como o fazeis? Como a fazeis, digo, porque o que Cristo principalmente nos
ensinou no Padre-nosso, não é só fazer a sua vontade, senão o modo de a fazer: sicut.
Se a fazeis por temor da pena, e por não ir ao inferno, isso não é fazer a
vontade de Deus — sicut in caelo, et
in terra — porque no céu não há temor do inferno. Se a fazeis pela
esperança do prêmio, também não é fazer a vontade de Deus — sicut in caelo
et in terra — porque no céu não se espera o prêmio, já se possui. Se a
fazeis, finalmente, só por ver a Deus, que parece ato mais puro, nem esse chega
a fazer a vontade de Deus como se faz no céu, porque lá todos vêem a Deus, e
com segurança de o ver eternamente. Pois, como havemos de fazer a vontade de
Deus, para que seja feita assim na terra como no céu?
Havemo-la de fazer assim como diz Davi que a fazem os anjos : Benedicite
Domino, omnes angeli ejus, potentes virtute, facientes verbum illius, ad
audiendam vocem sermonum ejus. Os anjos no céu fazem a vontade de Deus só
por fazer a vontade de Deus, sem outro fim, sem outro motivo, sem outro
interesse. E porque este modo de fazer a vontade divina não é impossível à
vontade humana perfeitamente deliberada, por isso o mesmo Davi pedia a Deus o
ensinasse a fazer a sua vontade deste modo: Doce me facere voluntatem tuam,
quia Deus meus es (S1 142, 10): Ensinai-me, Senhor, a fazer a vossa
vontade, só porque vós sois Deus meu e porque a vossa vontade é vossa. E este é
o modo altíssimo com que Cristo nos ensinou a dizer: Fiat voluntas tua,
sicut in caelo, et in terra: não pedindo mais do que devemos pedir, mas levantando
a voz da nossa oração ao ponto mais subido onde pode chegar: Extollens
vocem.
CAPÍTULO VI
Pedir a Deus o pão de cada dia não é afrontar a liberalidade de Deus?
Em que parte do Padre-nosso se contêm as petições das outras vaidades, que são
as que mais oradores e devotos têm no mundo? Onde pedimos a Deus que nos livre
de todo o mal, ali oramos a Deus pelas riquezas, pelas dignidades, pela saúde,
pela vida, pela sucessão. Pedir bem e pedir mal.
Desta maneira se contêm as pensões que fazemos a Deus no Rosário
dentro dos limites do modo, sem o
exceder por pedir mais. Agora vejamos como também se não desviam dele em o não
igualar por pedir menos. A petição que logo se segue é: Panem nostrum
quotidianum da nobis hodie (Lc. 11, 3): O pão nosso de cada dia nos dá
hoje. — Mas, assim da parte de Deus, a quem pedimos, como da nossa, para quem
pedimos, ninguém haverá que não julgue que diz esta petição muito menos do que
devera. Pedir a Deus o pão de um só dia, e no mesmo dia, antes parece que é
afrontar a sua liberalidade que acudir à nossa necessidade. A um Deus tão
grande, tão poderoso, tão magnífico, a um Deus que se chama Deus, porque a sua
natureza é dar, não é presumir indignamente de sua liberalidade e grandeza
pedir-lhe tão pouco? Assim pede um mendigo às portas de um lavrador, mas tão
baixa e tão escassa petição jamais a fez a seu rei o vassalo mais pobre. Se a
nossa necessidade, como supomos e dizemos, é de cada dia, e por isso chamamos
cotidiano ao pão que pedimos, que remédio ou que socorro é o que lhe
procuramos, pedindo só para hoje, e não para mais dias? Anoitecer hoje sem pão,
porque se acabou o pedido, e amanhecer amanhã sem pão, porque há de tornar a
pedir, mais é viver da necessidade que sustentar a vida. Até à ordem da
caridade parece que faltamos nesta e nas outras petições do Padre-nosso. A
caridade bem ordenada começa de si mesmo, e em tudo quanto pedimos ninguém pede
para si, senão para todos: Panem nostrum, debita nostra, da nobis, dimitte
nobis, ne nos inducas, tibera nos. Isto é enervar a eficácia da oração,
porque, quem pretende para si, procura com o afeto com que se ama a si, e a
ninguém lhe dói tanto a dor de todos como a sua. Finalmente, para ver quanto
menos pedimos do que devêramos, consultemos as petições sem-número de que estão
importunados os altares, os tribunais, os príncipes, e todos os que podem dar,
das quais todas no Padre-nosso não se diz nem se ouve uma só palavra.
Logo, é coisa evidente, e sem dúvida, que muito menos pedimos a Deus
nesta sua oração, do que fora dela havemos mister e solicitamos por outras
vias.
Contudo, é sentença comum de todos os doutores e santos padres que
nenhuma coisa há que se possa pedir nem desejar a qual se não contenha nas
petições do Padre-nosso: Sapientissime in ea oratione collecta sunt omnia
quae petenda et appetenda sunt — diz
Abulense, aquele doutíssimo e eminentíssimo expositor das Escrituras, em cujos
imensos escritos se não acha jamais exageração, senão o sentido próprio e
liberal dos textos sagrados. O mesmo dizem Santo Tomás e S. Boaventura,
laureados ambos com o caráter de doutores da Igreja, e o mesmo disseram muitos
séculos antes deles S. Gregório Niceno, S. Cipriano, S. Pedro Crisólogo, Santo
Agostinho, e antes do mesmo Agostinho, com toda a severidade do seu juízo, o grande
Tertuliano. Mas, perguntara eu a estes doutores — que por isso aleguei tantos,
e todos da primeira jerarquia — se nas petições do Padre-nosso se contém tudo o
que se pode pedir e apetecem, onde estão no mesmo Padre-nosso todas as outras
coisas que os homens com tanto ardor apetecem, com tanto desvelo solicitam, e
com tanta instância e importunação pedem a Deus e aos homens? Não apetecem
honras? Não apetecem riquezas? Não apetecem dignidades seculares e
eclesiásticas? Não apetecem a saúde, a vida, a sucessão, a posteridade, e tudo
o que faz a vida deleitosa, e a morte tolerável? E para alcançarem destas
coisas, ou as que só pode dar Deus, ou as que podem dar Deus e os homens, não
metem por intercessores os santos que ajudem as orações com que as pedem, e os
mesmos sacrifícios do corpo de Cristo, que a esse fim oferecem? Em que parte,
logo, do Padre-nosso se contêm as petições destas coisas, que são as que mais
oradores e mais devotos têm em todo o mundo?
Quem mais agudamente que todos apertou e resolveu este ponto, foi
Santo Agostinho, o qual responde que, se oramos ou rezamos como convém, todas
estas coisas, que tanto apetecemos e pedimos, pertencem à última petição do
Padre- nosso: Sed libera nos a malo. — Onde pedimos a Deus que nos livre
de todo o mal, ali oramos a Deus por todas estas coisas.
Ouçamos ao lume da Igreja por suas próprias palavras: Qui dicit in
oratione: Domine, multiplica divitias meas, aut da mihi tantas quantas illi aut
illi dedisti, aut honores meos auge, et fac me in hoc saeculo praepotentem,
atque clarentem, etc. puto eum non invenire in Oratione Dominica, quo possit
haec vota coaptare: Aquele que pede na oração riquezas, honras, dignidades,
mandos, e outras semelhantes vaidades que o mundo estima e tem por lustrosas,
entendendo — diz Santo Agostinho — que em toda a oração do Padre-nosso não
achará lugar em que possa acomodar e introduzir estes seus desejos e petições;
mas eu lho darei, diz o santo. E qual é? Quam ob rem pudeat saltem petere,
quae non pudet cupere: aut si hoc pudet, et cupiditate vincit, quanto melius
hoc petitur, ut etiam ab hoc cupiditatis malo liberet, cui dicimus: libera nos
a malo: A primeira coisa que aconselho — diz Agostinho — aos que tais coisas pedem, é que, pois se não
envergonham de as desejar, ao menos se envergonhem de as pedir. Mas, se
vencidos da cobiça e ambição as querem pedir contudo, apliquem às suas mesmas
petições a última do Padre-nosso: sed libera nos a malo — e peçam a Deus
que os livre desse mal.
Oh! que mal conhecem os homens o mal, e quão erradamente o entendem!
Pedem honras, e a honra foi a que enganou e destruiu o primeiro homem, e nele a
todos: Homo, cum in honore esset, non intellexit. Comparatus est jumentis
insipientibus, et similis factus est illis. Pedem riquezas, e quem perdeu
ao filho pródigo pela prodigalidade, e ao rico avarento pela avareza, e a todos
pelo abuso delas? Por isso de todos, sem exceção, disse Cristo: Vae vobis
divitibus (Lc. 6, 24): Ai de vós ricos! —
Pedem dignidades seculares e eclesiásticas, das quais, só pelas pedir,
são indignos. E quem foram os que condenaram e crucificaram ao mesmo Cristo,
senão os que tinham as duas maiores dignidades eclesiásticas de Jerusalém, Anás
e Caifás, e as duas maiores seculares, Herodes e Pilatos? Pedem saúde, sem
advertirem que a chamada saúde é a mais perigosa enfermidade; e não sabem que o
remédio com que Deus a cura, são as doenças, segundo o aforismo do mesmo Médico
divino, declarado na receita de Jesabel: Non vult poenitere a fornicatione
sua: ecce mittam eam in lectum. Pedem vida, sem reparar em que a felicidade
da vida não está em ser larga, senão em ser boa, e que a vida é, e não a morte,
a que leva os homens ao inferno, devendo entender que a morte antecipada é
sinal da predestinação, e que costuma Deus encurtar aos que ama a vida
temporal, porque lhes quer segurar a eterna: Raptus est, ne malitia mutaret
intellectum ejus. Placita enim erat Deo anima illius: propter hoc
properavit educere illum de medio iniquitatum.
Pedem, finalmente, filhos e sucessão, e não se lembram que o primeiro
filho de Adão foi Caim, e o primeiro de Jacó, Rúben, e ambos a primeira causa
de seus maiores desgostos. E para que vejam quão mal segura deixam a
posteridade nestes reféns, Absalão e Roboão foram os dois maiores inimigos que
tiveram seus pais, porque um tirou a coroa a Davi, e outro destruiu a casa de
Salomão.
Assim que se não devem admirar, os que rezam o Rosário, de que Deus
muitas vezes lhes não conceda o que pedem; porque, cuidando que pedem bem,
pedem mal. É sentença expressa de fé, ensinada e publicada ao mundo pelo
apóstolo S.Tiago: Petitis, et non accipitis, eo quod male petatis (Tg.
4, 3): Sabeis por que não alcançais o que pedis a Deus?
Porque vós pedis mal, e Deus não vos quer dar senão bem. — E esta é a
razão por que o mesmo Senhor no Padre-nosso nos não ensinou a pedir nenhuma
dessas coisas que vós apeteceis e pedis. Ainda que muitas delas sejam
indiferentes, pedidas, porém, com o fim para que ordinariamente se pedem,
verdadeiramente são mal. E não era razão que pedíssemos a Deus o mal, e muito
menos na mesma oração em que lhe pedimos nos livre do mal. Por isso nos concede
o que pedimos na sua oração, e nos nega o que pedimos nas nossas. Se no
Padre-nosso pedimos que nos livre do mal, e fora do Padre-nosso pedimos o que
verdadeiramente é mal e nos está mal, quem podia duvidar que, como Pai, nos há
de conceder o que pedimos por seu conselho, e não o que pedimos por nosso
apetite? Peçamos, pois, o que ele nos manda pedir somente, e não cuide ninguém
que pede menos do que deve pedir, pois pede o que só lhe convém.
CAPÍTULO VII
Em pedir o pão de hoje somente, pedimos como filhos, pois ao pai
pertence o cuidado do pão de amanhã. Assim como ao pão semeado o afogam as
espinhas, assim ao pão comido o não deixam digerir os cuidados. Como vemos no
maná do deserto, parece que é propriedade do pão do céu ser pão de hoje. Como
há de dar todos os dias quem dá tudo em um dia?
Medir o pão com a vida. Por que chamou S. Paulo ao hoje sobrenome do
homem? Os homens de hoje, os homens de amanhã e os homens de nunca. A pobreza
de Jó, advertência aos ricos. Última objeção: pedirmos para todos, e não cada
um para si. Ninguém pede melhor para si que quem pede para todos. Zacarias,
quando orou para si, não mereceu alcançar o que pedia, e quando orou para todos,
mereceu alcançar o que não pedia. A oração de Abraão em favor de Sodoma e
Gomorra.
Em pedir o pão de hoje somente, posto que seja ou pareça tão pouco,
também não pedimos menos do que requer a necessidade de quem o há mister, nem a
grandeza e liberalidade de quem o há de dar. Isto é pedirmos nós como filhos, e
a Deus como Pai. Ao sustento do filho pertence o presente, à providência do pai
o futuro. Mais nos dá Deus no pão de cada dia, que se no-lo dera para muitos
dias, porque, dando-nos o sustento de hoje, nos livra do cuidado de amanhã. Não
é pensamento meu, senão advertência que nos fez o mesmo Cristo: Nolite
soliciti esse in crastinum (Mt. 6, 34). Se vos mando pedir só o pão de
hoje, não vos dê cuidado o de amanhã, porque esse corre por minha conta. — O
pão e o cuidado são duas coisas muito encontradas. O pão sustenta a vida: os
cuidados a afligem, a diminuem, a tiram. E que partido pode estar melhor ao
homem, que dar-lhe Deus a ele o pão, e tomar para si o cuidado? Jacta super
Dominum curam tuam, et ipse te enutriet. Quer Deus que o pão nos saiba a
pão, porque o que se come com cuidados tem outro sabor, e causa muitos
diferentes humores. Na parábola do semeador compara Cristo as espinhas aos
cuidados, e diz que as espinhas que nasceram juntamente com o trigo o afogaram:
Et simul exortae spinae suffocaverunt illud (Lc. 8, 7). — O que
aconteceu aqui ao trigo, lhe sucede também depois que é pão, porque a terra e o
homem ambos são terra. O pão cria sangue, e as espinhas tiram-no; e o pior é
que o não deixam criar. Assim como o pão semeado o afogam as espinhas, assim ao
pão comido o não deixam digerir os cuidados. Por isso nos tira Cristo o cuidado
quando nos dá o pão não só para que o comamos, senão também para que nos
preste. A causa natural de se nutrirem melhor e terem menos doenças os animais,
é porque comem sem cuidado. Assim o notou Plínio, o qual diz, no mesmo
capítulo, que é coisa ridícula cuidarem os homens que, sendo Deus sumamente
superior, tenha cuidado deles: Irridendum
vero agere curam rerum humanarum illud quidquid est summum. Falou como
gentio sem fé. Mas em nós, que a temos, e cremos o contrário, quem não terá por
verdadeiramente ridículo o cuidado com que fiamos mais do nosso que do de Deus?
O sol nasce cada dia, e ninguém desconfiou de que a sua luz se acabe hoje,
porque sabe que há de tornar amanhã. Pois, assim como nos deitamos seguros à
noite, sem que nos tire o sono este cuidado, assim no-lo não deve tirar o
anoitecer sem pão, porque o mesmo Deus, que cada dia nos dá o sol, nos dará o
pão cada dia.
Eu não nego que o mesmo nome de cada dia mais parece significar dieta
que fartura. Mas quando os sujeitos são tão enfermos como nós, não seria tão
divina a Providência que nos dá o pão, se no-lo não medira ou receitara com tal
regra, que juntamente fosse alimento e mais medicamento. Quando choveu o maná
do céu, mandou Deus por Moisés a todo o povo que ninguém o recolhesse senão
para aquele dia somente, nem o deixasse para outro: Nullus relinquat ex eo
in mane. — Parece que é propriedade do pão do céu ser pão de hoje. Houve,
contudo, alguns desobedientes que o guardaram para o dia seguinte, e diz o
texto sagrado que todo o guardado se corrompeu logo, e se converteu em bichos: Dimiserunt
quidam ex eis usque mane, et scatere coepit vermibus, atque computruit.
— O maná de sua natureza não era
corruptível, ao menos tão depressa. Prova-se do que guardou o mesmo Moisés na
Arca do Testamento, o qual durou muitos séculos, e não se sabe se dura e
persevera ainda com a mesma Arca. Pois, por que ordenou Deus que o maná, contra
sua própria natureza, se corrompesse milagrosamente, e não durasse mais que
doze horas, nem se pudesse guardar de um dia para o outro?
Porque a gente a quem se dava era incrédula, avarenta e ingrata, e
todos estes vícios quis Deus curar nela com lhes dar o pão para um só dia. Se
sois incrédulos, crede que quem vos deu o pão hoje, também vo-lo dará amanhã.
Se sois avarentos, e vos parece pouco, e quereis mais do que podeis comer,
contentai-vos com o que basta. E se sois ingratos, e não reconheceis a mão de
que recebeis o benefício, a mesma necessidade e dependência vos obrigará a que
a beijeis muitas vezes, e por força ou por vontade vos mostreis agradecidos.
Daqui tirou Santo Ambrósio um excelente documento para os príncipes
que, prezando-se de liberais, desprezam a sua mesma liberalidade,
impossibilitando-se com ela para continuar: Modus liberalitatis tenendus
est, ut quod bene facis,quotidie facere possis, ne subtrahas necessitati, quod
indulseris effusioni. Não hão de dar os reis tão prodigamente hoje, que
lhes não fique que dar amanhã. Como há de dar todos os dias, quem dá tudo em um
dia? Cuidam que dando tudo ganham a muitos, e perdem a todos, porque não há fé
sem esperança, nem firmeza sem dependência, nem ainda amor tão cego que não
abra os olhos para o futuro. Por isso Deus, que é Senhor de tudo, dá com
reserva, e para freio da nossa sujeição nos põe a taxa na boca. Dá-nos o
necessário, e não o supérfluo, porque nos quer bem mantidos, mas não
enfastiados. Até o demônio nunca farta aos que tenta, porque os tem mais
seguros na fome que no fastio. A fome é desejo, o fastio desprezo; e isto
compra com o supérfluo quem dá mais do necessário. E bem verdade que, não dando
Deus no maná mais que o necessário para cada dia, os que o comiam contudo se
enfastiaram dele: Nauseat anima nostra super cibo isto . Mas aquele
fastio não foi da natureza, foi da enfermidade. O doente até do necessário se
enfastia. E em prova de ser doença, e doença mortal, de três milhões de homens
que saíram do Egito, e comeram o maná, só dois chegaram vivos à Terra de
Promissão.
Oh! se os homens medissem o pão com a vida, como é certo que lhes não
pareceria pouco o pão de hoje! Sêneca tem por infelizes os que não medem a sua
fome com o seu estômago: Infelices qui non intelligitis vos majorem famem
habere, quam ventrem. — E mais infelizes são ainda, e menos entendidos, os
que não medem o seu pão com a sua vida. O pão de hoje prometeu Deus a todos os
que lho pedirem; a vida de hoje a
ninguém a prometeu: De mane
usque ad vesperam finies me — dizia
el-rei Ezequias. E se as vidas mais bem guardadas e mais bem mantidas podem
acabar antes da noite, também do pão de hoje lhes pode sobejar o da ceia. Esta
foi a ignorância daquele néscio que, porque se achava com muitos moios de pão,
os media com muitos anos de vida: Anima mea, habes multa bona in annos
plurimos: comede, bibe, epulare. O pão seria para muitos anos, mas a vida
era para tão poucos dias, que da noite em que isto sonhava não chegou a ver amanhã:
Stulte, hac nocte repetunt animam tuam a te. Disse S. Gregório Niceno,
com tão discreta frase como profundo juízo, que este néscio metera no mesmo
celeiro o pão e mais os anos: Longos annorum ambitus spei vanitate in horreis
simul concludens. Se os anos, os dias, as horas não estão no palácio do sol,
senão nos tesouros de Deus, que importa que nos celeiros do homem se guarde
mais pão que o de hoje? Não debalde, senão com grande mistério, este mesmo
instituto de que falamos se chama Rosário. Toda a vida ou idade da rosa não é
mais que um dia: Quam longa una dies aetas tam longa rosarum. A aurora
lhe dá o berço, nascida e fresca; a noite a sepultura, murcha e seca. De sorte que
quando no Padre-nosso repetidamente, e por partes, pedimos o pão de hoje, todo
o Rosário nos está pregando que de hoje a amanhã se pode acabar a vida. Logo,
para a vida que é de hoje, e esse hoje ainda incerto, bem lhe basta o pão de hoje.
Altissimamente exortava S. Paulo aos cristãos primitivos que se aproveitassem
da vida enquanto tinham o sobrenome de hoje: Donec hodie cognominatur, ut non obduretur
quis ex vobis. E por que chamou S. Paulo ao
hoje sobrenome de homem: Donec hodie cognominatur? — Porque o
nome do homem é mortal, e nenhum mortal, quando vivo, pode ter outro sobrenome.
O sobrenome de Dias até no Cide foi impróprio, porque contra a morte não há
valor. Todos os outros apelidos são falsos, só o de hoje é verdadeiro. Hoje
somos, amanhã pode ser que não: Sera
ies nimis est crastina; vive hodie —
disse, mais cristãmente do que nós o entendemos, o poeta gentio. Há homens de
hoje, homens de amanhã e homens de nunca. E quais são os de nunca? Os de
amanhã? É sutilíssima advertência de Santo Agostinho. Porque quando chega o dia
de amanhã, já não e amanhã: é hoje. E se os que somos ou nos prezamos de ser
homens devemos ser homens de hoje, por que nos não contentaremos com o pão de
hoje, e por que cuidaremos que pedimos menos do que devemos pedir, quando
dizemos a Deus: Panem nostrum quotidianum da nobis hodie?
Mas esta petição — dirão os ricos — é só para os pobres, e não para
nós, que temos pão para muitos dias, e para todos, e não só para uma vida,
senão para muitas: para a nossa, e para as de nossos descendentes. Só lhes
falta dizer que Cristo não advertiu nisto quando ensinou a todos o pedir o pão
de hoje. Esse mesmo pão que tendes, ou cuidais que tendes, se Deus vo-lo não
der hoje, não o tereis. Em um dia perdeu Dario a monarquia dos persas; em uma
noite perdeu Baltasar a dos assírios, em uma hora perdeu Jó os gados, os
escravos, as searas, a casa, os filhos, e, sendo o mais rico entre todos os do
Oriente, ficou tão pobre, não como outro, senão como o mesmo Jó, exemplo não só
da maior pobreza, mas da última miséria. E se Deus em cada hora deste mesmo dia
vos pode tirar quanto tendes, justiça tem para vos mandar que lhe peçais o pão
de hoje. Por isso lhe pedimos que nos dê o pão nosso: Panem nostrum. Pois,
se é nosso, e ele no-lo deu já, por que lho havemos de tornar a pedir? Porque
não só o pão que não tendes, senão o que tendes, não o tereis nem será vosso se
ele vo-lo não der hoje. Assim como Deus em todos os momentos nos está dando o
ser, assim em todos nos está dando o comer; e é excesso de favor e liberalidade
contentar-se que lhe peçamos para todo o dia o que ele nos está dando e nos lhe
devemos pedir todos os momentos. Não pedimos, logo, menos do que devíamos,
senão muito mais do que devemos.
Só resta a objeção de pedirmos para todos e não cada um para si. Mas
este é o mais sublime modo de pedir, e o mais certo de alcançar. Ninguém pede
melhor para si que quem pede para todos. Entrou o sacerdote Zacarias no Templo
a orar e oferecer o incenso à hora costumada, quando lhe apareceu à mão direita
do altar o Anjo Gabriel, e lhe disse da parte de Deus que a sua oração fora
ouvida, e lhe nasceria um filho, que foi o Batista: Exaudita est deprecatio
tua, et uxor tua Elisabeth pariet tibi filium . — Não há santo antigo nem
expositor moderno que não repare na coerência deste texto. A oração que naquela
hora fez Zacarias não era particular, senão pública, pelo bem comum de todo o
povo, o qual também acompanhava a mesma oração com as suas: Et omnis
multitudo populi erat orans foris. — Pois, se Zacarias nesta oração não
orava por si, senão por todos, e não pedia para si filho, senão para todo o
povo o bem universal dele, como lhe diz o anjo que fora ouvida a sua petição,
prometendo-lhe aquilo que não tinha pedido? Respondem graves autores que, posto
que Zacarias, quando agora orou, não pedisse a Deus sucessão — da qual pela sua
velhice e pela esterilidade de sua mulher estava tão desesperado, que ainda
depois de prometida ficou incrédulo, e em pena da incredulidade mudo — contudo
que antigamente, quando ambos estavam em idade de ter filhos, então o pedira a
Deus, e esta antiga oração é a que agora foi ouvida. Mas, se esta mesma oração
— torna a dúvida com maior força — se esta mesma oração não foi ouvida nem
despachada então, por que foi ouvida e outorgada agora? Porque agora orava
Zacarias para todos, então orava para si; e o que não conseguiu nem mereceu
quando orava para si, agora o mereceu e alcançou, porque pedia para todos. Onde
se deve notar e reparar muito que o que agora alcançou não o pediu agora. De
sorte que, quando orava para si, não mereceu alcançar o que pedia, e quando
orava para todos, mereceu alcançar o que não pedia, porque então pedia filho, e
agora não.
Tanto melhor e mais eficaz oração é, como Cristo nos ensina, o
pedirmos para todos, que cada um para si.
Mais digo. Monta tanto diante de Deus o pedir para todos, que ainda
quando Deus nos nega o que pedimos para todos, nos concede o que não pedimos
para nós. Pede Abraão a Deus, não com uma nem com duas, senão com muitas e importunas
instâncias que perdoe às cinco cidades de Sodoma e Gomorra, mas não o
conseguiu. Chove fogo do céu, abrasam-se as cidades; e que fizeram os anjos executores
desta justiça? Tomam pela mão a Ló, sobrinho de Abraão, e assim a ele como a
toda a sua família o livraram do incêndio. E Abraão, porventura, tinha orado por
Ló? Não se lê tal oração na Escritura, referindo-se miudissimamente todas as outras.
Pois, se Deus não livrou as cidades pelas quais intercedeu e orou Abraão, por
que livra o sobrinho de Abraão, pelo qual não orou nem intercedeu? Porque, ainda
quando Deus nos nega o que pedimos para todos, nos concede, no mesmo caso, o
que não pedimos para nós. Advertidamente Oleastro: Non legimus Abraham pro
nepote orasse, et legimus Deum ejus gratia illum ab incendio liberasse. Foi
tão agradável e tão aceita a Deus a oração que Abraão fez por todos, que ainda quando
negou à sua oração o que pediu para todos, lhe concedeu sem oração o que não
pediu para si. — Altíssimo é, logo, assim nesta petição como nas outras, este modo
de pedir, e altíssima em todas as do Rosário a voz com que sempre assim pedimos:
Extollens vocem.
CAPÍTULO VIII
Última consideração do discurso: a intercessão de que nos valemos, que
é a da Virgem Senhora Nossa. O mais alto e mais nobre modo de pedir: pedir não pedindo.
Como oraram as duas mais ensinadas discípulas de Cristo, Marta e Maria? À
Virgem pedimos que peça, mas não dizemos o que há de pedir, e esta é a maior delicadeza
e perfeição de orar. A oração de São Domingos Reginaldo. O que faz quem não só
pede, mas pede o que quer. Se a soberania da Mãe de Deus é tão grande que pode
mandar, por que lhe não pedimos que mande, senão que peça e rogue? Os deuses
não os faz quem lhes fabrica as imagens, senão quem os roga. Cristo, gerado por
Maria, recebeu dela a humanidade; rogado por Maria, recebe dela, enquanto
intercessora nossa, a divindade.
Sempre chego tarde à terceira e última consideração do discurso. Mas,
como a matéria é tão grande, mais queixosa a imagino do muito que deixei de
dizer, e pudera, que da largueza do que disse, poupando sempre palavras quanto
me foi possível. Considera esta terceira parte a intercessão de que nos
valemos, que é a da Virgem, Senhora nossa, cujo poderosíssimo patrocínio tantas
vezes imploramos quantas repetimos no Rosário Ave-Maria. Mas, se na oração do
Padre-nosso pareceu que excedemos o modo de pedir, ou pedindo mais ou menos do
que devíamos, na da Ave-Maria, que é tão diversa, quem não dirá que totalmente perdemos
ou encontramos o mesmo modo, pois nenhuma coisa pedimos? O que só dizemos na
Ave-Maria à Mãe de Deus, é que rogue por nós: Sancta Maria Mater Dei, ora
pro nobis. Pedimos-lhe que peça, mas não dizemos o que há de pedir: logo, não
pedimos nada.
Primeiramente respondo que não há mais nobre nem mais alto modo de pedir,
que não pedindo. Marta e Maria amavam muito a Lázaro, e desejavam muito de o
tornar a ver vivo, e criam que Cristo o podia ressuscitar; pois, por que não pediram
ao Senhor que o ressuscitasse? Porque sabiam, como nobres e ilustres que eram, que o mais cortês modo de
pedir é não pedindo. Assim responde por elas S. Bernardo, depois de as argüir: Si
fratrem vestrum amatis, cur ejus misericordiam non flagitatis, de cujus
potentia dubitare, pietate diffidere non potestis? Respondent: sic melius
tanquam non orantes oramus. Se amais a vosso irmão, e não podeis duvidar do
poder nem desconfiar do amor de Cristo, por que não pedis por ele? Mas a isto
respondem — diz o santo — que assim pedem, e pelo melhor modo porque pedir não
pedindo é o melhor modo de pedir: Sic melius tanquam non orantes oramus.
— Assim oraram então as duas mais bem ensinadas discípulas de Cristo, e assim
oramos nós também no Rosário, que a escola de sua Mãe é a mesma. Repetindo
tantas vezes a Ave-Maria, nenhuma coisa representamos à Virgem Santíssima, nem
de necessidade, nem de remédio, nem de favor, ou que nós peçamos, ou que a
mesma Senhora haja de pedir por nós; mas, quando assim oramos sem pedir, então
oramos melhor, por que não pedimos: Sic melius tanquam non orantes oramus.
A razão é porque, orando assim, oramos à Mãe de Deus pelo mesmo modo com
que devemos orar a Deus. A Deus – dizia o oráculo da filosofia, Sócrates — não
se há de pedir coisa alguma determinadamente, porque ele sabe melhor o que há
de dar do que nós o que devemos pedir: Te
totum caelestium arbitrio permitte, quia qui tribuere bona ex facili solent,
etiam eligere aptissime possunt. — Não só há de ser de Deus o dar, senão
também o eleger. Em esperar dele a mercê supomos a sua liberalidade; em a
deixar na sua eleição honramos a sua sabedoria. E assim fazemos quando oramos à
Mãe de Deus. Pedimos que peça, mas não dizemos o que há de pedir, para que,
assim como a intercessão há de ser sua, seja também sua a eleição. Desejava
entrar na ordem de S. Domingos Reginaldo, deão da catedral de Orleãs e famoso
catedrático da Universidade de Paris, quando caiu mortalmente enfermo. Não
cessava, porém, o santo patriarca, e toda a ordem, de rezar o Rosário por esta
tenção, quando, na última desconfiança da enfermidade, apareceu a soberana
Rainha dos Anjos no mesmo aposento do enfermo, e disse a Reginaldo que pedisse
o que quisesse, porque ali estava em pessoa, e tudo lhe seria concedido.
Suspenso, tanto da visão como da promessa, ficou atalhado o grande doutor, não
se sabendo resolver no que pediria; porém, Santa Cecília e Santa Catarina, que
de um e outro lado acompanhavam a Senhora, aconselharam ao enfermo que nenhuma
coisa pedisse, e que todo se pusesse em suas mãos. Fê-lo assim Reginaldo,
dizendo: — Soberana Rainha do céu, o que Vossa Majestade for servida de mim
isso é o que só quero, e nas mãos de vossa bondade e clemência, com toda a
reverência e humildade me ponho todo. Então as duas virgens, que não só como as
prudentes do Evangelho deram o conselho, senão também o óleo, presentaram de
joelhos à Senhora duas redomas em que o traziam, e a piedosíssima Mãe de Deus,
ungindo o enfermo com as mesmas mãos em que ele se, tinha posto, não só o
livrou da morte que aguardava por instantes, mas, no mesmo momento o restituiu
à inteira saúde e forças, que é o que naquele estado pudera desejar e pedir,
mas não pedira. Não foi excelente modo este de pedir não pedindo? Pois, isto é
o que tantas vezes — fazemos no Rosário em cada Ave-Maria que rezamos.
Pedir por este primoroso modo, não só é pedir sem pedir, mas é pedir e
juntamente dar. E pedir, porque pedimos a intercessão, e é dar, porque damos a eleição.
Na intercessão que pedimos, reconhecemos na Mãe de Deus a sua dignidade; na
eleição que demitimos de nós, renunciamos na mesma Senhora a nossa vontade. No
Padre-nosso pedimos a Deus o que ele quer que peçamos; na Ave-Maria pedimos à
Mãe de Deus o que ela quiser pedir. E este é o maior primor, a maior cortesia,
e a maior delicadeza e perfeição de orar. E por que? Ensinou-o maravilhosamente
meu santo patriarca Inácio naquela sua famosa Epístola aos Portugueses, que, em
gênero de espírito, é uma das maiores coisas que se tem escrito na Igreja. A
razão é — diz o santo — porque quem pede o que quer prefere-se por uma parte,
ainda que se sujeita por outra.
Em pedir, sujeita-se, porque o pedir é ato de sujeição; mas, em
declarar o que quer, prefere-se, porque o próprio querer é ato de liberdade e
de preferência. — Tanto assim — diz profundamente S. Bernardo, alegado pelo
mesmo santo — que, quando o súdito consegue do prelado o que quer, não é o
súdito o que obedece ao prelado, senão o prelado o que obedece ao súdito: Nec
enim in ea re ipse praelato, sed magis ei praelatus obedit. — Em pedir,
sujeita-se ele ao prelado, mas em pedir o que quer, quer que o prelado se
sujeite a ele, e assim o consegue. De sorte que o mesmo pedir por tal modo é
pedir e mandar juntamente. Daqui se entenderá a propriedade com que fala a
Escritura, quando diz que obedeceu Deus à voz de Josué: Obediente Domino voci
hominis. — Obediência supõe mandado de uma parte e sujeição da outra; pois,
como podia ser que Deus obedecesse a um homem? Porque Josué, como consta do
texto, pediu e mandou juntamente: Locutus est Josué Domino, dixitque: Sol
contra Gabaon ne movearis. E como Josué pediu mandando, enquanto pediu,
concedeu-lhe Deus o que pedia, enquanto mandou, obedeceu ao que mandava. Isto é
o que faz quem não só pede, mas pede o que quer. Logo, para pedir com a maior
cortesia, com o maior primor e com a maior perfeição, não se há de declarar em
nada a própria vontade, mas sujeitar-se em tudo e por tudo a quem pede, e à sua
disposição e arbítrio, como nós fazemos ao da Mãe de Deus.
Excelente lugar de Davi: Subditus esto Domino, et ora eum (Sl.
36, 7): Fazei-vos súdito de Deus, e então orai. — Pois, quem ora e pede a Deus,
não se sujeita a ele? Distingo. Se pede o que quer, sujeita-se em parte, e no
tal caso não é perfeito súdito, porque usa da sua liberdade; porém, se pede, e
não diz o que quer, então se sujeita inteiramente, e se faz perfeito súdito de
Deus, porque renuncia nele à sua vontade. O mesmo texto o declara, com bem
advertido reparo de Hugo Victorino: Propterea non dixit tibi, ora eum hoc,
vel illud, sed tantum ora eum. Notai o que diz e o que não diz o profeta.
Não diz que oremos e peçamos a Deus isto ou aquilo, mas só diz que oremos e que
peçamos, porque este é só o modo de orar e pedir como súdito: Subditus esto
Domino, et ora eum. — E que mais? A conseqüência é digna de tão grande
autor, e em próprios termos a nossa: Cum ergo oras, quem petas potius quam
quid petas cogitare tibi dulce sit: Logo, todo o nosso cuidado quando oramos
há de ser pôr os olhos em a quem pedimos, e não no que pedimos: Quem petas
potius quam quid petas. — E isto é ,o que faz a nossa oração todas às vezes
que repete no Rosário: Mater Dei, ora pro nobis. — Olha só para a soberana intercessora, a quem pede, mas não tem olhos
para ver o que há de pedir, porque seria grande desprimor nosso, e menos
reverência da suprema majestade da Mãe de Deus, não deixar tudo à sua
providência, e ao seu arbítrio. Por isso pedimos que peça por nós, e não o que
há de pedir.
Mas, em dizermos que peça, parece que também trocamos um modo por outro,
e deixamos o de maior dignidade pelo menos digno. A dignidade da Mãe de Deus é
tão soberana que, ainda em respeito do mesmo Deus, como Mãe a Filho, não só
pode alcançar quanto pedir, senão mandar o que quiser. Assim o pronunciam expressamente
muitos dos Santos Padres, e é já tão vulgar esta grande suposição entre os
doutores, que não necessita de autoridades a prova dela. Pois, se a soberania
da Mãe de Deus é tão poderosa que pode mandar, por que lhe não pedimos que
mande, senão que peça e rogue: roga por nós? Também esta circunstância de orar
é novo modo de primor com que mais nos empenhamos a estimar toda a mercê e
favor que, por intercessão da mesma Senhora, alcançarmos. Toda a mercê pedida
por quem a pode dar, ainda que tenha igual preço dada, merece maior estimação
por pedida. Já vimos o primeiro primor de Marta e Maria, em não quererem pedir
a ressurreição de Lázaro. Acrescentou, porém, Marta que ela sabia muito bem que
tudo o que Cristo pedisse a Deus lho havia de conceder: Et nunc scio quia
quaecumque poposceris a Deo, dabit tibi Deus. E como o Senhor replicasse
que ele era a vida e a ressurreição, e
lhe perguntasse se o cria assim: Credis hoc? — respondeu Marta que tempo
havia que tinha crido que o mesmo Cristo era Filho de Deus: Utique, Domine,
ego credidi, quia tu es Cristus, Filius Dei vivi: Pois, se Marta sabia que
Cristo era Deus, e como Deus podia dar a vida a seu irmão, por que não alega
que lha podia dar como Deus, senão que a podia pedir a Deus como homem? Porque
era muito maior favor neste caso o pedir que o dar, e ficava muito mais
autorizada a mesma ressurreição como pedida que como dada. Assim o fez o
Senhor. Primeiro orou publicamente — o que não tinha feito nas outras
ressurreições — e depois ressuscitou a Lázaro, porque, como o amavas tanto que
lhe tinham custado lágrimas, quis que fosse dobradamente autorizada a sua ressurreição,
não só como dada por ele, mas como pedida: In speciem precantis compositus
rebus ipsis authoritate manifestat
— diz S. Basílio de Selêucia. Esta
é a primeira razão por que no Rosário pedimos à Mãe de Deus, não que dê, senão
que peça, e não que mande, senão que rogue, para lhe devermos mais a estimação
desta circunstância. A segunda ainda é muito mais alta, e de maior fundo.
Pedimos à Senhora que rogue quando lhe chamamos Mãe de Deus: Santa Maria
Mãe de Deus, roga por nós — porque, se Maria, gerando a Cristo, deu a Deus o
ser humano, rogando-o, dá-lhe o divino, quanto pode dar a criatura. Ora, notai.
Se há coisa que de algum modo possa dar divindade, não é outra senão o rogar.
Quis Nabucodonosor ser Deus de todo o mundo, e que não houvesse outro Deus
senão ele; e o meio que tomou para estabelecer a sua divindade foi mandar, por
um decreto universal, que só a ele pudessem rogar os homens, e a nenhum outro: Numquid
non constituisti ut omnis homo qui rogaret quemquam de diis et hominibus, nisi
te, rex mitteretur in lacum leonum? Assim o mandou aquele potente rei, e assim
lho aconselharam os maiores sábios de sua monarquia, entendendo uns e outros
que só o ser rogado lhe podia conciliar o ser Deus. Queria ser Deus e só: para
ser Deus, roguem-no todos; para ser só, ninguém rogue a outro: Ut non rogare
quemquam, nisi te, rex. — Este foi o pensamento — e pode ser que tomado
daqui — com que disse discretamente o poeta que os deuses não os faz quem lhes
fabrica as imagens ou lhes levanta os altares, senão quem os roga: Non facit ille deos, qui rogat ille facit.
— Os deuses dos gentios eram de pau, ou de pedra, ou de metal, obras das mãos
dos homens, como diz o profeta; e quem os fazia deuses? Não os faziam deuses os
escultores, senão os rogadores. Quando esculpidos, quando lavrados, quando
formados, ainda eram paus e pedras; mas quando rogados, então começavam a ser
deuses: Deos qui rogat ille facit.
Grande lugar de Minúcio Feliz, naquela famosa apologia sua em nome de Otávio:
Ecce funditur, fabricatur, sculpitur:nondum deus est. Ecce plumbatur, construitur,
erigitur: nec adhuc deus est. Ecce ornatur, consecratur, oratur: tunc postremo
deus est: Toma o escultor o metal nas mãos, derrete-o, funde-o, lança-o nos
moldes, dá-lhe forma: é já deus? Ainda não: Nondum deus est. — Tira-o fora
já formado, compõe-lhe os membros, distingue-lhe as feições com toda a arte, e limado,
e polido, e chumbado, para que se tenha em pé, erguido, e direito; é já deus?
Nem ainda agora: Nec adhuc deus est. — Orna-o, consagra-o, faz-lhe
oração: é já deus? Agora sim. Oratur: tunc postremo deus est. — Quando é
orado e rogado, então é Deus. Dai-me licença, Virgem Santíssima do Rosário,
para que destas estátuas sem ser vos forme e levante uma. Posto que vosso
benditíssimo Filho sempre foi Deus verdadeiro, em todos os mistérios do Rosário
pode parecer só homem; mas quando vós chegais a lhe rogar por nós, ninguém pode
negar que é Deus. Humanado Cristo, nascido, presentado, perdido e achado no
Templo, poderá dizer quem o não conhece: Nondum deus est. — Suando
sangue, atado à coluna, coroado de espinhos, carregado com a sua cruz e pregado
nela, e também ressuscitado e subido ao céu, ainda poderá persistir no mesmo: Nec
adhuc deus est. — Porém, vendo que vós, Senhora, sendo quem sois, o rogais,
assim como até agora lhe confessava o ser humano, já lhe não pode negar o
divino. Fá-lo com toda a corte do céu.
Aclamava a Cristo toda a corte do céu, anjos e santos, em figura de
Cordeiro e ouviu S. João no seu Apocalipse, que todos a uma voz diziam assim: Dignus
est Agnus, qui occisus est, accipere virtutem et divinitatem (Apc. 5, 12): Digno é o Cordeiro que
se sacrificou pelo gênero humano, de receber o poder e a divindade. — Parece
que não concorda esta Teologia do céu com a nossa. Cristo, que é o Cordeiro
desde o instante de sua Encarnação, recebeu a divindade, porque sempre foi
Deus: nem então se pode dizer que foi digno de receber a mesma divindade, porque
a união da humanidade ao Verbo nem a mereceu, nem a pôde merecer. Pois se já
tinha e sempre teve a divindade, e sem merecimento próprio, por que diz agora a
uma voz todo o céu que é digno de a receber:
Dignus est Agnus accipere divinitatem? — E se a recebeu outra vez
depois de já recebida, que novo modo de receber a divindade foi este? Respondem
todos os teólogos e expositores que o modo de a receber outra vez foi o
reconhecimento, o conceito e a voz universal de todos os homens e anjos, que
com aqueles aplausos o confessavam. Logo, muito mais e muito melhor recebe
Cristo a divindade sendo rogado só de sua Mãe que sendo reconhecido e aclamado
de toda a corte do céu. É conseqüência manifesta, porque a maior majestade e a
maior soberania que há no céu e na terra, abaixo de Deus é a pessoa de Maria.
Logo, aquele a quem Maria roga não pode ser senão Deus. E se o ser Cristo
reconhecido e aclamado como Deus, pelos obséquios e aplausos de toda a corte do
céu, é novo modo de receber a divindade: Accipere divinitatem — muito
mais alta e majestosamente recebe Cristo a mesma divindade quando é rogado por
Maria, porque Maria, e a sua autoridade, excede muito a de toda a corte do céu.
E daqui se fica concluindo com a mesma evidência o que eu dizia: que se gerado
Cristo por Maria recebeu dela, enquanto Mãe sua, humanidade, também rogado por
Maria recebe dela, enquanto intercessora nossa, a divindade. Enquanto Mãe,
porque o gerou; enquanto intercessora, porque o roga. Vede agora, e julguem
todos, se é alto e mais que altíssimo este modo de pedir, e quanto se levanta
neste ponto sobre si mesma a voz altíssima do Rosário: Extollens vocem.
CAPÍTULO IX
Última recomendação aos devotos da Senhora do Rosário. Tenho acabado o
meu discurso, e por última recomendação do que fica dito, só peço aos devotos
da Senhora do Rosário não deixem de advertir nele quão necessária nos é a todos
a intercessão da mesma Senhora. Basta que nos seja tão necessário como o pão
para a boca? Pois advirtam que ainda é maior a necessidade que dela temos, e
nós mesmos o confessamos em uma e outra oração do Rosário, porventura sem o
advertir. No Padre-nosso pedimos o pão para cada dia: Panem nostrum
quotidianum ; na Ave-Maria pedimos a intercessão da Senhora para cada hora
e para cada instante: Nunc, et in hora mortis nostrae. — O nunc significa
instante; a hora da morte é e pode ser cada hora. E se o pão o pedimos para
cada dia, e a intercessão da Senhora para cada hora e para cada instante, não
haja hora nem instante no dia em que não digamos de todo o coração à
poderosíssima Mãe de Deus e nossa: Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis
peccatoribus, nunc, et in hora mortis nostrae. Amen.
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão II - Maria Rosa Mística"
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Nota:
Padre Antônio Vieira: "Sermão II - Maria Rosa Mística"
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