UM QUE VENDEU A SUA ALMA
A anedota que lhe vou contar, tem alguma cousa de
fantástica e pareceria que, como homem de meu tempo, eu não
devia dar-lhe crédito algum. Entra nela o
Diabo e toda a gente de certo desenvolvimento mental está quase sempre
disposta a acreditar em Deus, mas raramente no Diabo.
Não sei se acredito em Deus, não
sei se acredito no Diabo, porque não tenho as minhas crenças muito
firmes.
Desde que perdi a fé no meu
Lacroix; desde que me convenci da existência de muitas geometrias a se
contradizerem nas suas definições e teoremas mais vulgares; desde então deixei
que a certeza ficasse com os antropologistas, etnólogos, florianistas,
sociólogos e outros tolos de igual jaez.
A horrível mania da certeza de que
fala Renan, já a tive; hoje, porém, não. De modo que posso bem à vontade
contar-lhes uma anedota em que entra o Diabo.
Se os senhores quiserem acreditem;
eu, cá por mim, se não acredito, não nego também.
Narrou-me o amigo:
— Certo dia, uma manhã, estava eu
muito aborrecido a pensar na minha vida. O meu aborrecimento era mortal. Um
tédio imenso invadia-me. Sentia-me vazio. Diante do espetáculo do mundo, eu não
reagia. Sentia-me como um toco de pau, como qualquer coisa de inerte.
Os desgostos da minha vida, os meus
excessos, as minhas decepções, me haviam levado a um estado de desespero, de
aborrecimento, de tédio, para o qual. em vão, procurava remédio. A Morte não me
servia. Se era verdade que a Vida não me agradava, a Morte não me atraía. Eu
queria outra Vida. Você se lembra do Bossuet, quando falou por ocasião
de M.lle de la Vallière tomar o véu ?
Respondi:
— Lembro-me.
— Pois sentia aquilo que ele disse e censurou: queria outra
vida.
E então só me daria muito dinheiro.
Queria andar, queria viajar, queria
experimentar se as belezas que o tempo e o sofrimento dos homens acumularam
sobre a terra, despertavam em mim a emoção necessária para a existência,
o sabor de viver.
Mas dinheiro! — como arranjar?
Pensei meios e modos: Furtos, assassinatos, estelionatos — sonhei-me
Raskólnikoff ou cousa parecida. Jeito, porém, não havia e a energia
não me sobrava.
Pensei então no Diabo. Se ele quisesse comprar-me a alma?
Havia tanta história popular que
contava pactos com ele que eu, homem céptico e ultramoderno apelei para
o Diabo, e sinceramente!
Nisto bateram-me a porta. — Abri.
— Quem era?
— O Diabo.
— Como o conheceste?
— Espera. Era um cavalheiro como qualquer, sem barbichas,
sem chavelhos, sem nenhum atributo diabólico.
Entrou como um velho conhecimento e tive a impressão de que conhecia muito o
visitante. Sem cerimônia sentou-se e foi perguntando: "Que diabo de spleen
é esse?" Retorqui: " A palavra vai bem mas falta-me o milhão."
Disse-lhe isso sem reflexão e ele sem se espantar, deu umas voltas pela minha
sala e olhou um retrato. Indagou: "E tua noiva?" Acudi: "Não. É
um retrato que encontrei na rua. Simpatizei e..." "Queres vê-la
já?" perguntou-me o homem. "Quero" , respondi. E logo, entre nós
dois sentou-se a mulher do retrato. Estivemos conversando e adquiri certeza de
que estava falando com o Diabo. A mulher foi-se e logo o Diabo inquiriu:
"Que querias de mim?" "Vender-te minha alma",
disse-lhe eu.
E o diálogo continuou assim :
Diabo — Quanto queres por ela?
Eu — Quinhentos contos.
Diabo — Não queres pouco.
Eu — Achas caro?
Diabo — Certamente.
Eu — Aceito mesmo a cousa por trezentos.
Diabo — Ora ! Ora !
Eu — Então, quanto dás?
Diabo — Filho. não te faço preço.
Hoje, recebo tanta alma de graça que não me vale a pena comprá-las.
Eu — Então não dás nada?
Diabo — Homem! Para falar-te com
franqueza. simpatizo muito contigo, por isso vou dar-te alguma cousa.
Eu — Quanto?
Diabo — Queres vinte mil-réis ?
E logo perguntei ao meu amigo:
— Aceitaste?
O meu amigo esteve um instante suspenso, afinal respondeu:
— Eu... Eu aceitei.
A Primavera, Rio, julho 1913.
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Nota:
Lima Barreto: Contos (1911)
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