TRÊS GÊNIOS DE SECRETARIA
O meu amigo Augusto Machado, de quem acabo de
publicar uma pequena brochura aliteratada -Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá
-mandou-me algumas notas herdadas por ele desse seu amigo, que, como se sabe, foi oficial da Secretaria
dos Cultos. Coordenadas por mim, sem nada pôr de meu, eu as dou aqui, para a meditação dos leitores:
"ESTAS MINHAS memórias que há dias tento
começar, são deveras difíceis de executar, pois se imaginarem que a minha
secretaria é de pequeno pessoal e pouco nela se passa de notável, bem avaliarão
em que apuros me encontro
para dar volume às minhas recordações de velho funcionário. Entretanto, sem recorrer a dificuldade, mas
ladeando-a, irei sem preocupar-me com datas nem tampouco me incomodando com a ordem das cousas e fatos,
narrando o que me acudir de importante, à proporção de escrevê-las. Ponho-me à
obra.
Logo no primeiro dia em que funcionei na
secretaria, senti bem que todos nós nascemos para empregado público. Foi a reflexão
que fiz, ao me Julgar tão em mim, quando, após a posse e o compromisso ou juramento, sentei-me
perfeitamente à vontade na mesa que me determinaram. Nada houve que fosse surpresa, nem tive o mínimo
acanhamento. Eu tinha vinte e um para vinte e dois anos; e nela me abanquei como se de há muito já o
fizesse. Tão depressa foi a minha adaptação que me julguei nascido para ofício
de auxiliar o Estado, com a
minha reduzida gramática e o meu péssimo cursivo, na sua missão de regular a marcha e a atividade da nação.
Com familiaridade e convicção, manuseava os
livros -grandes montões de papel espesso e capas de couro, que estavam destinados a
durar tanto quanto as pirâmides do Egito. Eu sentia muito menos aquele registro de decretos e portarias
e eles pareciam olhar-me respeitosamente e pedir-me sempre a carícia das minhas mãos e a doce violência
da minha escrita.
Puseram-me também a copiar ofícios e a minha
letra tão má e o meu desleixo tão meu, muito papel fizeram-me gastar, sem que isso
redundasse em grande perturbação no desenrolar das cousas governamentais.
Mas, como dizia, todos nós nascemos para
funcionário publico. Aquela placidez do ofício, sem atritos, nem desconjuntamentos
violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela mediania de posição e fortuna, garantindo
inabalavelmente uma vida medíocre -tudo isso vai muito bem com as nossas vistas e os nossos
temperamentos. Os dias no emprego do Estado nada têm de imprevisto, não pedem qualquer espécie de esforço a
mais, para viver o dia seguinte. Tudo corre calma e suavemente, sem colisões, nem sobressaltos, escrevendo-se
os mesmos papéis e avisos, os mesmos decretos e portarias, da mesma maneira, durante todo o ano,
exceto os dias feriados, santificados e os de ponto facultativo, invenção das melhores da nossa República.
De resto, tudo nele é sossego e quietude. O
corpo fica em cômodo jeito; o espírito aquieta-se, não tem efervescência nem angústias;
as praxes estão fixas e as fórmulas já sabidas. Pensei até em casar, não só para ter uns bate-bocas com a
mulher mas, também, para ficar mais burro, ter preocupações de
"pistolões", para
ser promovido. Não o fiz; e agora, já que não digo a ente humano, mas ao
discreto papel, posso confessar porque.
Casar-me no meu nível social, seria abusar-me com a mulher, pela sua falta de
instrução e cultura intelectual;
casar-me acima, seria fazer-me lacaio dos figurões, para darem-me cargos,
propinas, gratificações, que
satisfizessem às exigências da esposa. Não queria uma nem outra cousa. Houve
uma ocasião em que tentei
solver a dificuldade, casando-me. ou cousa que o valha, abaixo da minha
situação. É a tal história da criada...
Aí foram a minha dignidade pessoal e o meu cavalheirismo que me impediram Não podia, nem devia ocultar a ninguém
e de nenhuma forma, a mulher com quem eu dormia e era mãe dos meus filhos. Eu ia citar
Santo Agostinho, mas deixo de fazê-lo para continuar a minha narração...
Quando, de manhã, novo ou velho no emprego, a
gente se senta na sua mesa oficial, não há novidade de espécie alguma e, já da pena,
escreve devagarinho: "Tenho a honra", etc., etc.; ou,
republicanamente, "Declaro-vos.
para os fins convenientes", etc.. etc. Se há mudança, é pequena e o começo
é já bem sabido: "Tenho
em vistas"... -ou "Na forma do disposto"...
Às vezes o papel oficial fica semelhante a um
estranho mosaico de fórmulas e chapas; e são os mais difíceis, nos quais o doutor
Xisto Rodrigues brilhava como mestre inigualável.
O doutor Xisto já é conhecido dos senhores, mas
não é dos outros gênios da Secretaria dos Cultos. Xisto é estilo antigo. Entrou
honestamente, fazendo um concurso decente e sem padrinhos. Apesar da sua pulhice bacharelesca e a sua
limitação intelectual, merece respeito pela honestidade que põe em todos os
atos de sua vida, mesmo
como funcionário. Sai à hora regulamentar e entra à hora regulamentar. não
bajula. nem recebe
gratificações.
Os dous outros, porém, são mais modernizados. Um
é "charadista", o homem que o diretor. consulta, que dá as informações
confidenciais, para o presidente e o ministro promoverem os amanuenses. Este ninguém sabe como entrou para a
secretaria; mas logo ganhou a confiança de todos, de todos se fez amigo e, em pouco, subiu três passos na
hierarquia e arranjou quatro gratificações mensais ou extraordinárias. Não é má pessoa, ninguém se pode
aborrecer com ele: é uma criação do ofício que só amofina os outros, assim mesmo sem nada estes saberem ao
certo, quando se trata de promoções. Há casos muito interessantes; mas deixo as proezas dessa
inferência burocrática, em que o seu amor primitivo a charadas, ao logogrifo e
aos enigmas pitorescos
pôs-lhe sempre na alma uma caligem de mistério e uma necessidade de impor aos
outros adivinhação sobre
ele mesmo. Deixo-a, dizia, para tratar do "auxiliar de gabinete". É
este a figura mais curiosa
do funcionalismo moderno. É sempre doutor em qualquer cousa; pode ser mesmo
engenheiro hidráulico ou
eletricista. Veio de qualquer parte do Brasil, da Bahia ou de Santa Catarina,
estudou no Rio qualquer
cousa; mas não veio estudar, veio arranjar um emprego seguro que o levasse
maciamente para ofundo da terra. donde deveria ter saído em planta, em animal
e, se fosse possível, em mineral qualquer. É inútil,
vadio, mau e pedante, ou antes, pernóstico.
Instalado no Rio, com fumaças de estudante,
sonhou logo arranjar um casamento, não para conseguir uma mulher, mas, para arranjar
um sogro influente, que o empregasse em qualquer cousa, solidamente. Quem como ele faz de sua vida,
tão-somente caminho para o cemitério, não quer muito: um lugar em uma
secretaria qualquer serve.
Há os que vêem mais alto e se servem do mesmo meio; mas são a quintessência da
espécie.
Na Secretaria dos Cultos, o seu típico e célebre
" auxiliar de gabinete", arranjou o sogro dos seus sonhos, num antigo professor do
seminário, pessoa muito relacionada com padres, frades, sacristães, irmãs de caridade, doutores em cânones,
definidores, fabriqueiros, fornecedores e mais pessoal eclesiástico.
O sogro ideal, o antigo professor, ensinava no
seminário uma física muito própria aos fins do estabelecimento, mas que havia
de horripilar o mais medíocre aluno de qualquer estabelecimento leigo.
Tinha ele uma filha a casar e o "auxiliar
de gabinete", logo viu no seu casamento com ela, o mais fácil caminho para arranjar uma
barrigazinha estufadinha e uma bengala com castão de ouro.
Houve exame na Secretaria dos Cultos, e o
"sogro", sem escrúpulo algum, fez-se nomear examinador do concurso para o provimento do
lugar e meter nele "o noivo".
Que se havia de fazer? O rapaz precisava.
O rapaz foi posto em primeiro lugar, nomeado e o
velho sogro (já o era de fato) arranjou-lhe o lugar de "auxiliar de
gabinete" do ministro. Nunca mais saiu dele e, certa vez, quando foi, pro
for .. mula se despedir do
novo ministro, chegou a levantar o reposteiro para sair; mas, nisto, o ministro
bateu na testa e gritou:
-Quem é aí o doutor Mata-Borrão?
O homenzinho voltou-se e respondeu, com algum
tremor na voz e esperança nos olhos:
-Sou eu, excelência.
-O senhor fica. O seu "sogro" já me
disse que o senhor precisa muito.
É ele assim, no gabinete, entre os poderosos;
mas, quando fala a seus iguais, é de uma prosápia de Napoleão, de quem se não
conhecesse a Josefina.
A todos em que ele vê um concorrente,
traiçoeiramente desacredita: é bêbedo, joga, abandona a mulher, não sabe escrever
"comissão", etc. Adquiriu títulos literários, publicando a Relação
dos Padroeiros das
Principais Cidades do Brasil; e sua mulher quando fala nele, não se esquece de
dizer: " Como Rui Barbosa,
o Chico..." ou "Como Machado de Assis, meu marido só bebe água."
Gênio doméstico e burocrático, Mata-Borrão, não
chegará, apesar da sua maledicência interesseira, a entrar nem no inferno. A vida
não é unicamente um caminho para o cemitério; é mais alguma cousa e quem a enche assim, nem Belzebu o
aceita. Seria desmoralizar o seu império; mas a burocracia quer desses amorfos, pois ela é das criações sociais
aquela que mais atrozmente tende a anular a alma, a inteligência, e os influxos
naturais e físicos ao indivíduo. É um expressivo documento de seleção inversa
que caracteriza toda a nossa sociedade
burguesa, permitindo no seu campo especial, com a anulação dos melhores da
inteligência, de saber, de
caráter e criação, o triunfo inexplicável de um Mata-Borrão por aí".
Pela cópia, conforme.
Brás Cubas, Rio,
10-4-1919.
---Nota:Lima Barreto: "O homem que sabia javanês" (1911)
---Nota:Lima Barreto: "O homem que sabia javanês" (1911)
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