sábado, 14 de setembro de 2013

Lima Barreto: "Três Gênios de Secretaria"

TRÊS GÊNIOS DE SECRETARIA

O meu amigo Augusto Machado, de quem acabo de publicar uma pequena brochura aliteratada -Vida e  Morte de M. J. Gonzaga de Sá -mandou-me algumas notas herdadas por ele desse seu amigo, que, como se  sabe, foi oficial da Secretaria dos Cultos. Coordenadas por mim, sem nada pôr de meu, eu as dou aqui, para  a meditação dos leitores:

"ESTAS MINHAS memórias que há dias tento começar, são deveras difíceis de executar, pois se  imaginarem que a minha secretaria é de pequeno pessoal e pouco nela se passa de notável, bem avaliarão em  que apuros me encontro para dar volume às minhas recordações de velho funcionário. Entretanto, sem  recorrer a dificuldade, mas ladeando-a, irei sem preocupar-me com datas nem tampouco me incomodando  com a ordem das cousas e fatos, narrando o que me acudir de importante, à proporção de escrevê-las. Ponho-me à obra.

Logo no primeiro dia em que funcionei na secretaria, senti bem que todos nós nascemos para  empregado público. Foi a reflexão que fiz, ao me Julgar tão em mim, quando, após a posse e o compromisso  ou juramento, sentei-me perfeitamente à vontade na mesa que me determinaram. Nada houve que fosse  surpresa, nem tive o mínimo acanhamento. Eu tinha vinte e um para vinte e dois anos; e nela me abanquei  como se de há muito já o fizesse. Tão depressa foi a minha adaptação que me julguei nascido para ofício de  auxiliar o Estado, com a minha reduzida gramática e o meu péssimo cursivo, na sua missão de regular a  marcha e a atividade da nação.

Com familiaridade e convicção, manuseava os livros -grandes montões de papel espesso e capas de  couro, que estavam destinados a durar tanto quanto as pirâmides do Egito. Eu sentia muito menos aquele  registro de decretos e portarias e eles pareciam olhar-me respeitosamente e pedir-me sempre a carícia das  minhas mãos e a doce violência da minha escrita.

Puseram-me também a copiar ofícios e a minha letra tão má e o meu desleixo tão meu, muito papel  fizeram-me gastar, sem que isso redundasse em grande perturbação no desenrolar das cousas governamentais.

Mas, como dizia, todos nós nascemos para funcionário publico. Aquela placidez do ofício, sem  atritos, nem desconjuntamentos violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela mediania  de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida medíocre -tudo isso vai muito bem com as nossas  vistas e os nossos temperamentos. Os dias no emprego do Estado nada têm de imprevisto, não pedem  qualquer espécie de esforço a mais, para viver o dia seguinte. Tudo corre calma e suavemente, sem colisões,  nem sobressaltos, escrevendo-se os mesmos papéis e avisos, os mesmos decretos e portarias, da mesma  maneira, durante todo o ano, exceto os dias feriados, santificados e os de ponto facultativo, invenção das  melhores da nossa República.

De resto, tudo nele é sossego e quietude. O corpo fica em cômodo jeito; o espírito aquieta-se, não  tem efervescência nem angústias; as praxes estão fixas e as fórmulas já sabidas. Pensei até em casar, não só  para ter uns bate-bocas com a mulher mas, também, para ficar mais burro, ter preocupações de "pistolões",  para ser promovido. Não o fiz; e agora, já que não digo a ente humano, mas ao discreto papel, posso confessar  porque. Casar-me no meu nível social, seria abusar-me com a mulher, pela sua falta de instrução e cultura  intelectual; casar-me acima, seria fazer-me lacaio dos figurões, para darem-me cargos, propinas, gratificações,  que satisfizessem às exigências da esposa. Não queria uma nem outra cousa. Houve uma ocasião em que  tentei solver a dificuldade, casando-me. ou cousa que o valha, abaixo da minha situação. É a tal história da  criada... Aí foram a minha dignidade pessoal e o meu cavalheirismo que me impediram  Não podia, nem devia ocultar a ninguém e de nenhuma forma, a mulher com quem eu dormia e era  mãe dos meus filhos. Eu ia citar Santo Agostinho, mas deixo de fazê-lo para continuar a minha narração...

Quando, de manhã, novo ou velho no emprego, a gente se senta na sua mesa oficial, não há novidade  de espécie alguma e, já da pena, escreve devagarinho: "Tenho a honra", etc., etc.; ou, republicanamente,  "Declaro-vos. para os fins convenientes", etc.. etc. Se há mudança, é pequena e o começo é já bem sabido:  "Tenho em vistas"... -ou "Na forma do disposto"...

Às vezes o papel oficial fica semelhante a um estranho mosaico de fórmulas e chapas; e são os mais  difíceis, nos quais o doutor Xisto Rodrigues brilhava como mestre inigualável.

O doutor Xisto já é conhecido dos senhores, mas não é dos outros gênios da Secretaria dos Cultos.  Xisto é estilo antigo. Entrou honestamente, fazendo um concurso decente e sem padrinhos. Apesar da sua  pulhice bacharelesca e a sua limitação intelectual, merece respeito pela honestidade que põe em todos os atos  de sua vida, mesmo como funcionário. Sai à hora regulamentar e entra à hora regulamentar. não bajula. nem  recebe gratificações.

Os dous outros, porém, são mais modernizados. Um é "charadista", o homem que o diretor. consulta,  que dá as informações confidenciais, para o presidente e o ministro promoverem os amanuenses. Este  ninguém sabe como entrou para a secretaria; mas logo ganhou a confiança de todos, de todos se fez amigo e,  em pouco, subiu três passos na hierarquia e arranjou quatro gratificações mensais ou extraordinárias. Não é  má pessoa, ninguém se pode aborrecer com ele: é uma criação do ofício que só amofina os outros, assim  mesmo sem nada estes saberem ao certo, quando se trata de promoções. Há casos muito interessantes; mas  deixo as proezas dessa inferência burocrática, em que o seu amor primitivo a charadas, ao logogrifo e aos  enigmas pitorescos pôs-lhe sempre na alma uma caligem de mistério e uma necessidade de impor aos outros  adivinhação sobre ele mesmo. Deixo-a, dizia, para tratar do "auxiliar de gabinete". É este a figura mais  curiosa do funcionalismo moderno. É sempre doutor em qualquer cousa; pode ser mesmo engenheiro  hidráulico ou eletricista. Veio de qualquer parte do Brasil, da Bahia ou de Santa Catarina, estudou no Rio  qualquer cousa; mas não veio estudar, veio arranjar um emprego seguro que o levasse maciamente para ofundo da terra. donde deveria ter saído em planta, em animal e, se fosse possível, em mineral qualquer. É  inútil, vadio, mau e pedante, ou antes, pernóstico.

Instalado no Rio, com fumaças de estudante, sonhou logo arranjar um casamento, não para conseguir  uma mulher, mas, para arranjar um sogro influente, que o empregasse em qualquer cousa, solidamente. Quem  como ele faz de sua vida, tão-somente caminho para o cemitério, não quer muito: um lugar em uma secretaria  qualquer serve. Há os que vêem mais alto e se servem do mesmo meio; mas são a quintessência da espécie.

Na Secretaria dos Cultos, o seu típico e célebre " auxiliar de gabinete", arranjou o sogro dos seus  sonhos, num antigo professor do seminário, pessoa muito relacionada com padres, frades, sacristães, irmãs de  caridade, doutores em cânones, definidores, fabriqueiros, fornecedores e mais pessoal eclesiástico.

O sogro ideal, o antigo professor, ensinava no seminário uma física muito própria aos fins do  estabelecimento, mas que havia de horripilar o mais medíocre aluno de qualquer estabelecimento leigo.

Tinha ele uma filha a casar e o "auxiliar de gabinete", logo viu no seu casamento com ela, o mais  fácil caminho para arranjar uma barrigazinha estufadinha e uma bengala com castão de ouro.

Houve exame na Secretaria dos Cultos, e o "sogro", sem escrúpulo algum, fez-se nomear examinador  do concurso para o provimento do lugar e meter nele "o noivo".

Que se havia de fazer? O rapaz precisava.

O rapaz foi posto em primeiro lugar, nomeado e o velho sogro (já o era de fato) arranjou-lhe o lugar  de "auxiliar de gabinete" do ministro. Nunca mais saiu dele e, certa vez, quando foi, pro for .. mula se  despedir do novo ministro, chegou a levantar o reposteiro para sair; mas, nisto, o ministro bateu na testa e  gritou:

-Quem é aí o doutor Mata-Borrão?

O homenzinho voltou-se e respondeu, com algum tremor na voz e esperança nos olhos:

-Sou eu, excelência.

-O senhor fica. O seu "sogro" já me disse que o senhor precisa muito.

É ele assim, no gabinete, entre os poderosos; mas, quando fala a seus iguais, é de uma prosápia de  Napoleão, de quem se não conhecesse a Josefina.

A todos em que ele vê um concorrente, traiçoeiramente desacredita: é bêbedo, joga, abandona a  mulher, não sabe escrever "comissão", etc. Adquiriu títulos literários, publicando a Relação dos Padroeiros  das Principais Cidades do Brasil; e sua mulher quando fala nele, não se esquece de dizer: " Como Rui  Barbosa, o Chico..." ou "Como Machado de Assis, meu marido só bebe água."

Gênio doméstico e burocrático, Mata-Borrão, não chegará, apesar da sua maledicência interesseira, a  entrar nem no inferno. A vida não é unicamente um caminho para o cemitério; é mais alguma cousa e quem a  enche assim, nem Belzebu o aceita. Seria desmoralizar o seu império; mas a burocracia quer desses amorfos,  pois ela é das criações sociais aquela que mais atrozmente tende a anular a alma, a inteligência, e os influxos naturais e físicos ao indivíduo. É um expressivo documento de seleção inversa que caracteriza toda a nossa  sociedade burguesa, permitindo no seu campo especial, com a anulação dos melhores da inteligência, de  saber, de caráter e criação, o triunfo inexplicável de um Mata-Borrão por aí".  

Pela cópia, conforme.

Brás Cubas, Rio, 10-4-1919.


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Nota:Lima Barreto: "O homem que sabia javanês" (1911) 

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