sábado, 21 de setembro de 2013

Lima Barreto: "Sua Alteza Imperial Jan-Ghothe"

SUA ALTEZA IMPERIAL JAN-GHOTHE
CONTOS ARGELINOS

Abu-Al-Dhudut gozava placidamente o trono do país de AlPatak, que ele tinha usurpado da maneira mais inconcebível.

Sabia que era impopular, que o povo ridicularizava com canções satíricas a sua pessoa desgraciosa e proclamava também os seus méritos intelectuais com anedotas hilariantes.

Isto, porém, não o aborrecia, porque, tendo a mesa farta, um harém sortido e sobretudo honras das tropas, dos caids e presentes dos príncipes estrangeiros, ele se satisfazia e se julgava um grande sultão igual àqueles que ilustraram o trono de Al-Patak.

De quando em quando, tinha desejos de se fazer notável e tomava alvitres singulares. Certa vez quis ser protetor das letras e fundou uma academia no seu palácio. Nem de propósito: Dhudut juntou nela tudo quanto foi mau rimador na cidade.

Em outra, entendeu em dar casas baratas a toda gente e gastou na construção delas tanto dinheiro que foi preciso lançar pesados impostos para que o tesouro não ficasse vazio. Tal cousa veio redundar no seguinte: o artífice pagava mais barata a casa, mas comprava pelo dobro a passagem e os alimentos. Assim mesmo, os engrossadores proclamaram-no él-mézuar, que quer dizer, segundo alguns — o pai dos operários.

Para uma única cousa ele tinha jeito: era para criar aduladores. Calcularam os sábios que cada adulador custava, uns pelos outros, ao tesouro público cinco libras por dia e que, com eles, Abu-Al-Dhudut gastou no seu curto reinado cerca de vinte mil contos na nossa moeda.

Impopular e odiado, por causa de suas vexações e crueldades, quis ter dedicações; e, para isso, abriu as portas das prisões aos criminosos condenados e não prendia os que eram apanhados em flagrante.

A capital do Estado ficou assim entregue aos malfeitores que, não contentes com a espórtula que recebiam do chefe de polícia — kaïa — extorquiam, sob ameaça, dinheiro aos mercadores.

Para os cargos do governo, para os principados vassalos, ele nomeava parentes obscuros e sem saber, chegando até a fazer ulemá do Beit-El-Mal, juiz das heranças, um seu primo que não sabia ler  o Corão.

O povo de Al-Patak é manso e ordeiro, por isso ele vivia sossegado, tramando violências com o seu vizir Pkent-Phin', um homem cruel e violento, que fora na sua mocidade criador e castrador de cavalos.

Não contava, portanto, com nenhum levante do povo e passava a vida na mesa e no harém, em passeio e festas, sem cuidados nem incômodos.

Os seus parentes também levavam a vida da mesma forma, tanto mais que haviam ficado ricos com as riquezas do Estado e com os presentes que recebiam em troca de proteção a este ou àquele.

Um dia veio, porém, que, não se sabe como, o povo se levantou, levou a tropa de vencida, varou as muralhas que cercavam o palácio de Abu-AI-Dhudut e tratou de pô-lo na rua.

Embora o sultão tivesse ficado com muito medo, não quis logo sair pelo caminho escuso que lhe ensinava haver o seu fiel eunuco Brederodes. Quis ainda carregar algumas riquezas e correu aos subterrâneos do palácio.

Esperava encontrar lá cequins de ouro, aos sacos; diamantes, pérolas, rubis, topázios, safiras, barras de ouro, enfim, riquezas sem número que haviam sido amontoadas pela longa geração de vinte sultões.

Desceu escadas secretas, sempre acompanhado do seu fiel Brederodes, enquanto o povo ululava diante das portas do palácio e as mulheres do harém ganiam e soltavam gritos estridentes, os quais não lhe davam nenhuma pena.  Descia com febre e obsedado.

Chegado que foi ao tesouro, o guarda veio abrir-lhe a porta chapeada,   couraçada e lenta de mover nos gonzos.

O sultão logo perguntou:

— Onde estão os diamantes, escravo?

O guarda respondeu:

— Saberá Vossa Majestade que o Vosso sublime irmão, sua Alteza Imperial Jan-Ghothe, levou-os todos?

— E os cequins? e a prata? e as pedrarias?

O guarda, com todo o respeito e muita calma, respondeu:

— Saberá Vossa Majestade que o vosso sublime irmão, sua Alteza Imperial Jan-Ghothe, levou tudo.

Abu-AI-Dhudut quase desmaiou; e, chorando, disse para o eunuco:

— Brederodes, como sou desgraçado! Não ficou nada para mim!


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Nota:
Lima Barreto: "Histórias e Sonhos" (1920)

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