QUASE ELA DEU O "SIM";
MAS...
João Cazu era um moço suburbano,
forte e saudável, mas pouco ativo e amigo do trabalho.
Vivia em casa dos tios, numa
estação de subúrbios, onde tinha moradia, comida, roupa, calçado e algum dinheiro que a sua bondosa tia e
madrinha lhe dava para os cigarros.
Ele, porém, não os comprava;
"filava-os" dos outros. "Refundia" os níqueis que lhe dava
a tia, para flores a dar às namoradas e
comprar bilhetes de tômbolas, nos vários "mafuás", mais ou menos
eclesiásticos, que há por aquelas
redondezas.
O conhecimento do seu hábito de
"filar" cigarros aos camaradas e amigos, estava tão espalhado que, mal um deles o via, logo tirava da algibeira
um cigarro; e, antes de saudá-lo, dizia:
-Toma lá o cigarro, Cazu.
Vivia assim muito bem, sem
ambições nem tenções. A maior parte do dia, especialmente a tarde, empregava ele, com outros companheiros, em dar
loucos pontapés, numa bola, tendo por arena um terreno baldio das vizinhanças da residência dele ou
melhor: dos seus tios e padrinhos.
Contudo, ainda não estava
satisfeito. Restava-lhe a grave preocupação de encontrar quem lhe lavasse e engomasse a roupa, remendasse as calças e
outras peças do vestuário, cerzisse as meias, etc., etc.
Em resumo: ele queria uma mulher,
uma esposa, adaptável ao seu jeito descansado.
Tinha visto falar em sujeitos que
se casam com moças ricas e não precisam trabalhar; em outros que esposam professoras e adquirem a meritória
profissão de "maridos da professora"; ele, porém, não aspirava a tanto.
Apesar disso, não desanimou de
descobrir uma mulher que lhe servis convenientemente.
Continuou a jogar
displicentemente, o seu football
vagabundo e a viver cheio de segurança e abundância com os seus tios e padrinhos.
Certo dia, passando pela porteira
da casa de uma sua vizinha mais ou menos conhecida, ela lhe pediu:
-"Seu" Cazu, o senhor
vai até à estação?
-Vou, Dona Ermelinda.
-Podia me fazer um favor?
-Pois não.
-É ver se o "Seu"
Gustavo da padaria "Rosa de Ouro", me pode ceder duas estampilhas de
seiscentos réis. Tenho que fazer um
requerimento ao Tesouro, sobre coisas do meu montepio, com urgência, precisava muito.
-Não há dúvida, minha senhora.
Cazu, dizendo isto, pensava de si
para si: ,'É um bom partido. Tem montepio, é viúva; o diabo são os filhos!" Dona Ermelinda, à vista da
resposta dele, disse:
-Está aqui o dinheiro.
Conquanto dissesse várias vezes
que não precisava daquilo -o dinheiro -o impenitente jogador de football
e feliz hóspede dos tios, foi embolsando os nicolaus, por causa das dúvidas.
Fez o que tinha a fazer na
estação, adquiriu as estampilhas e voltou para entregá-las à viúva.
De fato, Dona Ermelinda era viúva
de um contínuo ou cousa parecida de uma repartição pública. Viúva e com pouco mais de trinta anos, nada se
falava da sua reputação.
Tinha uma filha e um filho que
educava com grande desvelo e muito sacrifício.
Era proprietária do pequeno chalet onde morava, em cujo quintal
havia laranjeiras e algumas outras árvores
frutíferas.
Fora o seu falecido marido que o
adquirira com o produto de uma "sorte" na loteria; e, se ela, com a morte do esposo, o salvara das garras de
escrivães, escreventes, meirinhos, solicitadores e advogados "mambembes", devia-o à precaução do
marido que comprara a casa, em nome dela.
Assim mesmo, tinha sido preciso a
intervenção do seu compadre, o Capitão Hermenegildo, a fim de remover os obstáculos que certos "
águias" começavam a pôr, para impedir que ela entrasse em plena posse do imóvel e abocanhar-lhe afinal o seu
chalézito humilde.
De volta, Cazu bateu à porta da
viúva que trabalhava no interior, com cujo rendimento ela conseguia aumentar de muito o módico, senão irrisório
montepio, de modo a conseguir fazer face às despesas mensais com ela e os filhos.
Percebendo a pobre viúva que era
o Cazu, sem se levantar da máquina, gritou:
-Entre, "Seu" Cazu.
Estava só, os filhos ainda não
tinham vindo do colégio. Cazu entrou.
Após entregar as estampilhas,
quis o rapaz retirar-se; mas foi obstado por Ermelinda nestes termos:
-Espere um pouco, "Seu"
Cazu. Vamos tomar café.
Ele aceitou e, embora, ambos se
serviram da infusão da "preciosa rubiácea" , como se diz no estilo
"valorização".
A viúva, tomando café,
acompanhado com pão e manteiga, pôs-se a olhar o companheiro com certo interesse. Ele notou e fez-se amável e
galante, demorando em esvaziar a xícara. A viuvinha sorria interiormente de contentamento. Cazu pensou
com os seus botões: "Está aí um bom partido: casa própria, montepio, renda das costuras; e além de tudo,
há de lavar-me e consertar a roupa. Se calhou, fico livre das censuras da tia..."
Essa vaga tenção ganhou mais
corpo, quando a viúva, olhando-lhe a camisa, perguntou:
-"Seu " Cazu, se eu lhe
disser uma cousa, o senhor fica zangado?
-Ora, qual, Dona Ermelinda?
-Bem. A sua camisa está rasgada
no peito. O senhor traz " ela" amanhã, que eu conserto
"ela".
Cazu respondeu que era preciso
lavá-la primeiro; mas a viúva prontificou-se em fazer isso também. O player dos pontapés, fingindo relutância no
começo, aceitou afinal; e doido por isso estava ele, pois era uma " entrada" , para obter uma
lavadeira em condições favoráveis.
Dito e feito: daí em diante, com
jeito e manha, ele conseguiu que a viúva se fizesse a sua lavadeira bem em conta.
Cazu, após tal conquista,
redobrou de atividade no football,
abandonou os biscates e não dava um passo,
para obter emprego. Que é que ele queria mais? Tinha tudo...
Na redondeza, passavam como
noivos; mas não eram, nem mesmo namorados declarados.
Havia entre ambos, unicamente um
" namoro de caboclo", com o que Cazu ganhou uma lavadeira, sem
nenhuma exigência monetária e cultivava-o carinhosamente.
Um belo dia, após ano e pouco de
tal namoro, houve um casamento na casa dos tios do diligente jogador de football.
Ele, à vista da cerimônia e da festa, pensou: "Porque também eu não me caso?
Porque eu não peço Ermelinda em
casamento? Ela aceita, por certo; e eu..."
Matutou domingo, pois o casamento
tinha sido no sábado; refletiu segunda e, na terça, cheio de coragem, chegou-se à Ermelinda e pediu-a em
casamento.
-É grave isto, Cazu. Olhe que sou
viúva e com dois filhos!
-Tratava " eles" bem;
eu juro!
-Está bem. Sexta-feira, você vem
cedo, para almoçar comigo e eu dou a resposta.
Assim foi feito. Cazu chegou cedo
e os dous estiveram a conversar. ela, com toda a naturalidade, e ele, cheio de ansiedade e, apreensivo.
Num dado momento, Ermelinda foi
até à gaveta de um móvel e tirou de lá um papel.
-Cazu -disse ela, tendo o papel
na mão -você vai à venda e à quitanda e compra o que está aqui nesta "nota". É para o almoço.
Cazu agarrou trêmulo o papelucho
e pôs-se a ler o seguinte:
1 quilo de feijão..........................................600 rs.
1/2 de farinha..............................................200 rs.
1/2 debacalhau..........................................1.200 rs.
1/2 debatatas.............................................360 rs.
Cebolas................. ...................................200 rs.
Alhos.........................................................100 rs.
Azeite........................................................300rs.
Sal............................................................100 rs.
Vinagre......................................................200 rs.
.................................................................3.260rs.
Quitanda:
Carvão.....................................................280 rs.
Couve......................................................200 rs.
Salsa.......................................................100 rs.
Cebolinha................................................100 rs.
tudo:.......................................................3.860 rs.
Acabada a leitura, Cazu não se
levantou logo da cadeira; e, com a lista na mão, a olhar de um lado a outro, parecia atordoado, estuporado.
-Anda Cazu, fez a viúva. Assim,
demorando, o almoço fica tarde...
-É que...
-Que há ?
-Não tenho dinheiro.
Mas você não quer casar comigo? É
mostrar atividade meu filho! Dê os seus passos... Vá! Um chefe de família não se atrapalha... É agir !
João Cazu, tendo a lista de
gêneros na mão, ergueu-se da cadeira, saiu e não mais voltou...
Careta, Rio, 29-1-1921.
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Nota:
Lima Barreto: "O homem que sabia javanês" (1911)
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