sábado, 14 de setembro de 2013

Lima Barreto: "Quase ela deu o "sim"; mas..."

QUASE ELA DEU O "SIM"; MAS...

João Cazu era um moço suburbano, forte e saudável, mas pouco ativo e amigo do trabalho.

Vivia em casa dos tios, numa estação de subúrbios, onde tinha moradia, comida, roupa, calçado e  algum dinheiro que a sua bondosa tia e madrinha lhe dava para os cigarros.

Ele, porém, não os comprava; "filava-os" dos outros. "Refundia" os níqueis que lhe dava a tia, para  flores a dar às namoradas e comprar bilhetes de tômbolas, nos vários "mafuás", mais ou menos eclesiásticos,  que há por aquelas redondezas.

O conhecimento do seu hábito de "filar" cigarros aos camaradas e amigos, estava tão espalhado que,  mal um deles o via, logo tirava da algibeira um cigarro; e, antes de saudá-lo, dizia:

-Toma lá o cigarro, Cazu.

Vivia assim muito bem, sem ambições nem tenções. A maior parte do dia, especialmente a tarde,  empregava ele, com outros companheiros, em dar loucos pontapés, numa bola, tendo por arena um terreno  baldio das vizinhanças da residência dele ou melhor: dos seus tios e padrinhos.

Contudo, ainda não estava satisfeito. Restava-lhe a grave preocupação de encontrar quem lhe lavasse  e engomasse a roupa, remendasse as calças e outras peças do vestuário, cerzisse as meias, etc., etc.

Em resumo: ele queria uma mulher, uma esposa, adaptável ao seu jeito descansado.

Tinha visto falar em sujeitos que se casam com moças ricas e não precisam trabalhar; em outros que  esposam professoras e adquirem a meritória profissão de "maridos da professora"; ele, porém, não aspirava a  tanto.

Apesar disso, não desanimou de descobrir uma mulher que lhe servis convenientemente.

Continuou a jogar displicentemente, o seu football vagabundo e a viver cheio de segurança e  abundância com os seus tios e padrinhos.

Certo dia, passando pela porteira da casa de uma sua vizinha mais ou menos conhecida, ela lhe  pediu:

-"Seu" Cazu, o senhor vai até à estação?

-Vou, Dona Ermelinda.

-Podia me fazer um favor?

-Pois não.

-É ver se o "Seu" Gustavo da padaria "Rosa de Ouro", me pode ceder duas estampilhas de seiscentos  réis. Tenho que fazer um requerimento ao Tesouro, sobre coisas do meu montepio, com urgência, precisava  muito.

-Não há dúvida, minha senhora.

Cazu, dizendo isto, pensava de si para si: ,'É um bom partido. Tem montepio, é viúva; o diabo são os  filhos!" Dona Ermelinda, à vista da resposta dele, disse:

-Está aqui o dinheiro.

Conquanto dissesse várias vezes que não precisava daquilo -o dinheiro -o impenitente jogador de  football e feliz hóspede dos tios, foi embolsando os nicolaus, por causa das dúvidas.

Fez o que tinha a fazer na estação, adquiriu as estampilhas e voltou para entregá-las à viúva.

De fato, Dona Ermelinda era viúva de um contínuo ou cousa parecida de uma repartição pública.  Viúva e com pouco mais de trinta anos, nada se falava da sua reputação.

Tinha uma filha e um filho que educava com grande desvelo e muito sacrifício.

Era proprietária do pequeno chalet onde morava, em cujo quintal havia laranjeiras e algumas outras  árvores frutíferas.

Fora o seu falecido marido que o adquirira com o produto de uma "sorte" na loteria; e, se ela, com a   morte do esposo, o salvara das garras de escrivães, escreventes, meirinhos, solicitadores e advogados  "mambembes", devia-o à precaução do marido que comprara a casa, em nome dela.

Assim mesmo, tinha sido preciso a intervenção do seu compadre, o Capitão Hermenegildo, a fim de  remover os obstáculos que certos " águias" começavam a pôr, para impedir que ela entrasse em plena posse  do imóvel e abocanhar-lhe afinal o seu chalézito humilde.

De volta, Cazu bateu à porta da viúva que trabalhava no interior, com cujo rendimento ela conseguia  aumentar de muito o módico, senão irrisório montepio, de modo a conseguir fazer face às despesas mensais  com ela e os filhos.

Percebendo a pobre viúva que era o Cazu, sem se levantar da máquina, gritou:

-Entre, "Seu" Cazu.

Estava só, os filhos ainda não tinham vindo do colégio. Cazu entrou.

Após entregar as estampilhas, quis o rapaz retirar-se; mas foi obstado por Ermelinda nestes termos:

-Espere um pouco, "Seu" Cazu. Vamos tomar café.

Ele aceitou e, embora, ambos se serviram da infusão da "preciosa rubiácea" , como se diz no estilo

"valorização".

A viúva, tomando café, acompanhado com pão e manteiga, pôs-se a olhar o companheiro com certo  interesse. Ele notou e fez-se amável e galante, demorando em esvaziar a xícara. A viuvinha sorria  interiormente de contentamento. Cazu pensou com os seus botões: "Está aí um bom partido: casa própria,  montepio, renda das costuras; e além de tudo, há de lavar-me e consertar a roupa. Se calhou, fico livre das  censuras da tia..."

Essa vaga tenção ganhou mais corpo, quando a viúva, olhando-lhe a camisa, perguntou:

-"Seu " Cazu, se eu lhe disser uma cousa, o senhor fica zangado?

-Ora, qual, Dona Ermelinda?

-Bem. A sua camisa está rasgada no peito. O senhor traz " ela" amanhã, que eu conserto "ela".

Cazu respondeu que era preciso lavá-la primeiro; mas a viúva prontificou-se em fazer isso também.  O player dos pontapés, fingindo relutância no começo, aceitou afinal; e doido por isso estava ele, pois era uma  " entrada" , para obter uma lavadeira em condições favoráveis.

Dito e feito: daí em diante, com jeito e manha, ele conseguiu que a viúva se fizesse a sua lavadeira  bem em conta.

Cazu, após tal conquista, redobrou de atividade no football, abandonou os biscates e não dava um  passo, para obter emprego. Que é que ele queria mais? Tinha tudo...

Na redondeza, passavam como noivos; mas não eram, nem mesmo namorados declarados.

Havia entre ambos, unicamente um " namoro de caboclo", com o que Cazu ganhou uma lavadeira, sem nenhuma exigência monetária e cultivava-o carinhosamente.

Um belo dia, após ano e pouco de tal namoro, houve um casamento na casa dos tios do diligente  jogador de football. Ele, à vista da cerimônia e da festa, pensou: "Porque também eu não me caso? Porque eu  não peço Ermelinda em casamento? Ela aceita, por certo; e eu..."

Matutou domingo, pois o casamento tinha sido no sábado; refletiu segunda e, na terça, cheio de  coragem, chegou-se à Ermelinda e pediu-a em casamento.

-É grave isto, Cazu. Olhe que sou viúva e com dois filhos!

-Tratava " eles" bem; eu juro!

-Está bem. Sexta-feira, você vem cedo, para almoçar comigo e eu dou a resposta.

Assim foi feito. Cazu chegou cedo e os dous estiveram a conversar. ela, com toda a naturalidade, e  ele, cheio de ansiedade e, apreensivo.

Num dado momento, Ermelinda foi até à gaveta de um móvel e tirou de lá um papel.

-Cazu -disse ela, tendo o papel na mão -você vai à venda e à quitanda e compra o que está aqui  nesta "nota". É para o almoço.

Cazu agarrou trêmulo o papelucho e pôs-se a ler o seguinte:

1 quilo de feijão..........................................600 rs.
1/2 de farinha..............................................200 rs.
1/2 debacalhau..........................................1.200 rs.
1/2 debatatas.............................................360 rs.
Cebolas................. ...................................200 rs.
Alhos.........................................................100 rs.
Azeite........................................................300rs.
Sal............................................................100 rs.
Vinagre......................................................200 rs.
.................................................................3.260rs.

Quitanda:
Carvão.....................................................280 rs.
Couve......................................................200 rs.
Salsa.......................................................100 rs.
Cebolinha................................................100 rs.
tudo:.......................................................3.860 rs.

Acabada a leitura, Cazu não se levantou logo da cadeira; e, com a lista na mão, a olhar de um lado a  outro, parecia atordoado, estuporado.

-Anda Cazu, fez a viúva. Assim, demorando, o almoço fica tarde...

-É que...

-Que há ?

-Não tenho dinheiro.

Mas você não quer casar comigo? É mostrar atividade meu filho! Dê os seus passos... Vá! Um chefe  de família não se atrapalha... É agir !

João Cazu, tendo a lista de gêneros na mão, ergueu-se da cadeira, saiu e não mais voltou...

Careta, Rio, 29-1-1921.


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Nota:
Lima Barreto: "O homem que sabia javanês" (1911) 

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