O
FEITICEIRO E O DEPUTADO
Nos
arredores do "Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas Tropicais",
que, como se sabe, fica no município Contra-Almirante Doutor Frederico Antônio
da Mota Batista, limítrofe do nosso, havia um habitante singular.
Conheciam-no
no lugar que, antes do batismo burocrático, tivera o nome doce e espontâneo de
Inhangá, por "feiticeiro"; o mesmo certa vez a ativa polícia local,
em falta do que fazer, chamou-o a explicações. Não julguem que fosse negro.
Parecia até branco e não fazia feitiços. Contudo, todo o povo das redondezas
teimava em chamá-lo de "feiticeiro".
É
bem possível que essa alcunha tivesse tido origem no mistério de sua chegada e
na extravagância de sua maneira de viver.
Fora
mítico o seu desembarque. Um dia apareceu numa das praias do município e ficou,
tal e qual Manco Capac, no Peru, menos a missão civilizadora do pai dos incas.
Comprou, por algumas centenas de mil-réis, um pequeno sitio com uma miserável
choça, coberta de sapê, paredes a sopapo; e tratou de cultivar-lhe as terras,
vivendo taciturno e sem relações quase.
À
meia encosta da colina, o seu casebre crescia como um cômoro de cupins; ao
redor, os cajueiros, as bananeiras e as laranjeiras afagavam-no com amor; e cá embaixo,
no sopé do morrote, em tomo do poço de água salobra, as couves reverdeciam nos
canteiros, aos seus cuidados incessantes e tenazes.
Era
moço, não muito. Tinha por aí uns trinta e poucos anos; e um olhar doce e
triste, errante e triste e duro, se fitava qualquer cousa.
Toda
a manhã viam-no descer à rega das couves; e, pelo dia em fora, roçava, plantava
e rachava lenha. Se lhe falavam, dizia:
—
"Seu" Ernesto tem visto como a seca anda "brava".
— É
verdade.
—
Neste mês "todo" não temos chuva.
—
Não acho... Abril, águas mil.
Se
lhe interrogavam sobre o passado, calava-se; ninguém se atrevia a insistir e
ele continuava na sua faina hortícola, à margem da estrada.
À
tarde, voltava a regar as couves; e, se era verão, quando as tardes são longas,
ainda era visto depois, sentado à porta de sua choupana. A sua biblioteca tinha
só cinco obras: a Bíblia, o Dom Quixote, a Divina comédia, o Robinson e o Pensées,
de Pascal. O seu primeiro ano ali devia ter sido de torturas.
A
desconfiança geral, as risotas, os ditérios, as indiretas certamente teriam-no feito
sofrer muito, tanto mais que já devia ter chegado sofrendo muito profundamente,
por certo de amor, pois todo sofrimento vem dele.
Se
é coxo e parece que se sofre com o aleijão, não é bem este que nos provoca a
dor moral: é a certeza de que ele não nos deixa plenamente...
Cochichavam
que matara, que roubara, que falsificara; mas a palavra do delegado do lugar,
que indagara dos seus antecedentes, levou a todos confiança no moço, sem que
perdesse a alcunha e a suspeita de feiticeiro. Não era um malfeitor; mas
entendia de mandingas. A sua bondade natural para tudo e para todos acabou desarmando
a população. Continuou, porém, a ser feiticeiro, mas feiticeiro bom.
Um
dia Sinhá Chica animou-se a consultá-lo:
—
"Seu" Ernesto: viraram a cabeça de meu filho... Deu "pa
bebê"..."Ta arrelaxando"...
—
Minha senhora, que hei de eu fazer?
— O
"sinhô" pode, sim! "Conversa cum" santo...
O
solitário, encontrando-se por acaso, naquele mesmo dia, com o filho da pobre
rapariga, disse-lhe docentemente estas simples palavras:
—
Não beba, rapaz. É feio, estraga - não beba!
E o
rapaz pensou que era o Mistério quem lhe falava e não bebeu mais. Foi um milagre
que mais repercutiu com o que contou o Teófilo Candeeiro.
Este
incorrigível bebaço, a quem atribuíam a invenção do tratamento das sezões, pelo
parati, dias depois, em um cavaco de venda, narrou que vira, uma tardinha, aí
quase pela boca da noite, voar do telhado da casa do "homem" um pássaro
branco, grande, maior do que um pato; e, por baixo do seu vôo rasteiro, as árvores
todas se abaixavam, como se quisessem beijar a terra.
Com
essas e outras, o solitário de Inhangá ficou sendo como um príncipe encantado,
um gênio bom, a quem não se devia fazer mal.
Houve
mesmo quem o supusesse um Cristo, um Messias. Era a opinião do Manuel Bitu, o
taverneiro, um antigo sacristão, que dava a Deus e a César o que era de um e o
que era de outro; mas o escriturário do posto, "Seu" Almada,
contrariava-o dizendo que se o primeiro Cristo não existiu, então um
segundo!...
O
escriturário era um sábio, e sábio ignorado, que escrevia em ortografia pretensiosa
os pálidos ofícios, remetendo mudas de laranjeiras e abacateiros para o Rio.
A
opinião do escriturário era de exegeta, mas a do médico era de psiquiatra.
|
Esse
"anelado" ainda hoje é um enfezadinho, muito lido em livros grossos e
conhecedor de uma quantidade de nomes de sábios; e diagnosticou: um puro louco.
Esse
"anelado" ainda hoje é uma esperança de ciência...
O
"feiticeiro", porém, continuava a viver no seu rancho sobranceiro a
todos eles. Opunha às opiniões autorizadas do doutor e do escriturário o seu
desdém soberano de miserável independente; e ao estulto julgamento do bondoso Mane
Bitu, a doce compaixão de sua alma tema e afeiçoada...
De
manhã e à tarde, regava as suas couves; pelo dia em fora, plantava, colhia,
fazia e rachava lenha, que vendia aos feixes, ao Mané Bitu, para poder comprar
as utilidades de que necessitasse.
Assim,
passou ele cinco anos quase só naquele município de Inhangá, hoje burocraticamente
chamado — "Contra-Almirante Doutor Frederico Antônio da Mota Batista".
Um
belo dia foi visitar o posto o deputado Braga, um elegante senhora, bem posto,
polido e céptico.
O
diretor não achava, mas o doutor Chupadinho, o sábio escriturário Almada e o
vendeiro Bitu, representando o "capital" da localidade, receberam o
parlamentar com todas as honras e não sabiam como agradá-lo.
Mostraram-lhe
os recantos mais agradáveis e pinturescos, as praias longas e brancas e também
as estranguladas entre morros sobranceiros ao mar; os horizontes fugidios e
cismadores do alto das colinas; as plantações de batatas-doces; a ceva dos
porcos...
Por
fim, ao deputado que já se ia fatigando com aqueles dias, a passar tão cheio de
assessores, o doutor Chupadinho convidou:
—
Vamos ver, doutor, um degenerado que passa por santo ou feiticeiro aqui. E um
dementado que, se a lei fosse lei, já há muito estaria aos cuidados da ciência,
em algum manicômio.
E o
escriturário acrescentou:
—
Um maníaco religioso, um raro exemplar daquela espécie de gente com que as
outras idades fabricavam os seus santos.
E o
Mané Bitu:
— É
um rapaz honesto... Bom moço — é o que posso dizer dele.
O
deputado, sempre cético e complacente, concordou em acompanhá-los à morada do
feiticeiro. Foi sem curiosidade, antes indiferente, com uma ponta de tristeza
no olhar.
O
"feiticeiro" trabalhava na horta, que ficava ao redor do poço, na
várzea, à beira da estrada.
O
deputado olhou-o e o solitário, ao tropel de gente, ergueu o busto que estava
inclinado sobre a enxada, voltou-se e fitou os quatro. Encarou mais firmemente
o desconhecido e parecia procurar
reminiscências. O legislador fitou-o também um instante e, antes que
pudesse o "feiticeiro" dizer qualquer cousa, correu até ele e
abraçou-o muito e demoradamente.
—
És tu, Ernesto?
—
És tu, Braga?
Entraram.
Chupadinho, Almada e Bitu ficaram à parte e os dois conversaram particularmente.
Quando
saíram, Almada perguntou:
— O
doutor conhecia-o?
—
Muito. Foi meu amigo e colega.
— É
formado? indagou o doutor Chupadinho.
—
É.
—
Logo vi, disse o médico. Os seus modos, os seus ares, a maneira com que se
porta, fizeram-me crer isso; o povo, porém...
—
Eu também, observou Almada, sempre tive essa opinião íntima; mas essa gente por
aí leva a dizer...
—
Cá para mim, disse Bitu, sempre o tive por honesto. Paga sempre as suas contas.
E
os quatro voltaram em silêncio para a sede do "Posto Agrícola de Cultura Experimental de Plantas Tropicais".
---
---
Nota:
Lima Barreto: "Histórias e Sonhos" (1920)
Nenhum comentário:
Postar um comentário