sábado, 14 de setembro de 2013

Lima Barreto: "Manel Capineiro"

MANEL CAPINEIRO

Quem conhece a Estrada Real de Santa Cruz? Pouca gente do Rio de Janeiro. Nós todos  vivemos tão presos à avenida, tão adstritos à Rua do Ouvidor, que pouco ou nada sabemos desse nosso vasto  Rio, a não ser as coisas clássicas da Tijuca, da Gávea e do Corcovado.

Um nome tão sincero, tão altissonante, batiza, entretanto, uma pobre azinhaga, aqui mais larga, ali  mais estreita, povoada, a espaços, de pobres casas de gente pobre, às vezes, uma chácara mais assim ali. mas  tendo ela em todo o seu trajeto até Cascadura e mesmo além, um forte aspecto de tristeza, de pobreza e  mesmo de miséria. Falta-lhe um debrum de verdura, de árvores, de jardins. O carvoeiro e o lenhador de há  muito tiraram os restos de matas que deviam bordá-la; e, hoje, é com alegria que se vê, de onde em onde,  algumas mangueiras majestosas a quebrar a monotonia, a esterilidade decorativa de imensos capinzais sem  limites.

Essa estrada real, estrada de rei, é atualmente uma estrada de pobres; e as velhas casas de fazenda, ao  alto das meias-laranjas, não escaparam ao retalho para casas de cômodos.  

Eu a vejo todo dia de manhã, ao sair de casa e é minha admiração apreciar a intensidade de sua vida,  a prestança do carvoeiro, em servir a minha vasta cidade.

São carvoeiros com as suas carroças pejadas que passam; são os carros de bois cheios de capim que  vão vencendo os atoleiros e os "caldeirões", as tropas e essa espécie de vagabundos rurais que fogem à rua  urbana com horror.

Vejo-a no Capão do Bispo, na sua desolação e no seu trabalho; mas vejo também dali os Órgãos  azuis, dos quais toda a hora se espera que ergam aos céus um longo e acendrado hino de louvor e de glória.

Como se fosse mesmo uma estrada de lugares afastados, ela tem também seus "pousos". O trajeto dos capineiros, dos carvoeiros, dos tropeiros é longo e pede descanso e boas "pingas" pelo caminho.

Ali no "Capão", há o armazém "Duas Américas" em que os transeuntes param, conversam e bebem.

Pára ali o "Tutu", um carvoeiro das bandas de Irajá, mulato quase preto, ativo, que aceita e endossa  letras sem saber ler nem escrever. É um espécime do que podemos dar de trabalho, de iniciativa e de vigor.  Não há dia em que ele não desça com a sua carroça carregada de carvão e não há dia em que ele não volte  com ela, carregada de alfafa, de farelo, de milho, para os seus muares.

Também vem ter ao armazém o Senhor Antônio do Açougue, um ilhéu falador, bondoso, cuja maior  parte da vida se ocupou em ser carniceiro. Lá se encontra também o "Parafuso", um preto, domador de  cavalos e alveitar estimado. Todos eles discutem, todos eles comentam a crise, quando não tratam  estreitamente dos seus negócios.

Passa pelas portas da venda uma singular rapariga. É branca e de boas feições. Notei-lhe o cuidado  em ter sempre um vestido por dia, observando ao mesmo tempo que eles eram feitos de velhas roupas. Todas  as manhãs, ela vai não sei onde e traz habitualmente na mão direita um bouquet feito de miseráveis flores  silvestres. Perguntei ao dono quem era. Uma vagabunda, disse-me ele.

"Tutu" está sempre ocupado com a moléstia dos seus muares.  O "Garoto" está mancando de uma perna e a "Jupira" puxa de um dos quartos. O " Seu" Antônio do Açougue,  assim chamado porque já possuiu um muito tempo, conta a sua vida, as suas perdas de dinheiro, e o desgosto   de não ter mais açougue. Não se conforma absolutamente com esse neg6cio de vender leite; o seu destino é  talhar carne.

Outro que lá vai é o Manel Capineiro. Mora na redondeza e a sua vida se faz no capinzal, em cujo  seio vive, a vigiá-lo dia e noite dos ladrões, pois os há, mesmo de feixes de capim. O "Capineiro" colhe o  capim à tarde, enche as carroças; e, pela madrugada, sai com estas a entregá-lo à freguesia. Um companheiro  fica na choupana no meio do vasto capinzal a vigiá-lo, e ele vai carreando uma das carroças, tocando com o  guião de leve os seus dois bois -"Estrela" e "Moreno".

Manel os ama tenazmente e evita o mais possível feri-los com a farpa que lhes dá a direção requerida.

Manel Capineiro é português e não esconde as saudades que tem do seu Portugal, do seu caldo de  unto, das suas festanças aldeãs, das suas lutas a varapau; mas se conforma com a vida atual e mesmo não se  queixa das cobras que abundam no capinzal.

-Ai! As cobras!... Ontem dei com uma, mas matei-a .

Está aí um estrangeiro que não implica com os nossos ofídios o que deve agradar aos nossos  compatriotas, que se indignam com essa implicância.

Ele e os bois vivem em verdadeira comunhão. Os bois são negros, de grandes chifres, tendo o "Estrela" uma mancha branca na testa, que lhe deu o nome.

Nas horas do ócio, Manel vem à venda conversar, mas logo que olha o relógio e vê que é hora da  ração, abandona tudo e vai ao encontro daquelas suas duas criaturas, que tão abnegadamente lhe ajudam a  viver.

Os seus carrapatos lhe dão cuidado; as suas "manqueiras" também. Não sei bem a que propósito me  disse um dia:

-Senhor fulano, se não fosse eles, eu não saberia como iria viver. Eles são o meu pão.

Imaginem que desastre não foi na sua vida, a perda dos seus dois animais de tiro. Ela se verificou em  condições bem lamentáveis. Manel Capineiro saiu de madrugada, como de hábito, com o seu carro de capim.  Tomou a estrada pra riba, dobrou a Rua José dos Reis e tratou de atravessar a linha da estrada de ferro, na  cancela dessa rua.

Fosse a máquina, fosse um descuido do guarda, uma imprudência de Manel, um comboio, um  expresso, implacável como a fatalidade, inflexível, inexorável, veio-lhe em cima do carro e lhe trucidou os  bois. O capineiro, diante dos despojos sangrentos do "Estrela" e do "Moreno", diante daquela quase ruína de  sua vida, chorou como se chorasse um filho uma mãe e exclamou cheio de pesar, de saudade, de desespero:

-Ai mô gado! Antes fora eu !...

Era Nova, Rio, 21-8-1915.


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Nota:
Lima Barreto: "O homem que sabia javanês" (1911) 

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