CONGRESSO PAMPLANETÁRIO
Urubu pelado não se mete no meio dos coroados
Ditado popular
De tal forma se haviam
multiplicado os congressos, que foi preciso ser original. Dentro de cada um dos
oito planetas, desde o mais bronco, que me parece ser Vênus, até o mais
inteligente, que naturalmente deve ser Netuno, não era possível reunir um que
não fosse a milésima repartição dos outros anteriores. Congressos nunca foram
coisas de primeira necessidade; mas a necessidade do espetáculo tem em todos nós
tão fortes exigências como desvios convenientes.
Demais, Júpiter estava em tal
estado de adiantamento que precisava mostrar-se ao sistema todo. Produzia por
ano 200.000$000 de toneladas de aperfeiçoadas farpas de bambus (específico
contra as dores de dentes); e os seus filósofos e escritores, graças às
modernas máquinas elétricas de escrever, abarrotavam os armazéns das estradas
de ferro com bilhões de toneladas de papel impresso. Houve um que, narrando
todas as suas conversas e atos do ano, dia por dia, hora por hora, minuto por
minuto, segundo por segundo, escreveu uma obra de 68.922 volumes, com
20.677.711 páginas, das quais 3.000.000 alvas e limpas — as melhores! —
significavam as horas de seu sono sem sonhos.
O autor não omitiu nelas nem as
ordens aos criados, nem tampouco as frases vulgares que trocamos ao
cumprimentar. Tudo registrou porque, dizia ele, isso aumentava o peso da obra,
e, portanto, o seu valor.
Era unicamente Júpiter que estava
assim: o resto dos satélites do Sol vivia sofrivelmente... Como, porém,
houvessem descoberto que todos eles estavam ligados por uma força oculta que, embora
influindo mutuamente sobre todos eles, pesava mediocremente sobre os destinos
particulares de cada um; e, como também
fosse preciso ser original nos congressos
— Júpiter propôs, e todos os planetas restantes aceitaram, a reunião de um
Congresso Pamplanetário.
Era preciso, diziam os
embaixadores de Júpiter, formar um espírito planetário, em contraposição ao
espírito estelar. Com isso, eles escondiam o secreto desejo de vender aos
outros planetas farpas aperfeiçoadas, remédios para calos, toneladas de um
literário papel de embrulhos e outros produtos similares de sua atividade sem limites,
não esquecendo o fito de conquistar alguns destes últimos ou parte deles.
Todos os outros não viram bem
esse propósito de Júpiter; mas este lhes venceu a resistência convencendo-os de
que deviam ser originais e chamar a atenção do Universo... O mundo estelar não
nos debocha? Altair não está sempre a rir-se sarcasticamente de nós?
Aldebarã não nos ameaça com seu
rubor? Sirius não nos desdenha? Havemos de lho mostrar.
A reunião — ficou decidido —
teria lugar na Terra. Não porque a Terra fosse muito poderosa, mas porque, nos
últimos anos, ela instalara nos seus pólos uma imensa buzina que gritava para
as estrelas — "Sou o primeiro planeta do orbe, tenho estradas de milhões
de metros: sou o paraíso do Universo", etc., etc.
A buzina era indispensável, visto
que os caminhos, palácios, jardins e teatros etc. se destinavam aos extraterrestres e tinham por fim atraí-los, no pensamento de que
os estranhos viessem trazer a segura prosperidade dela — a Terra.
O seu povo, todos conhecem-no: é
uma gente cheia de uma nevoenta poesia, tema, loquaz, um tanto indolente, mas
liberal, por ser relaxada, e generosa, por ser liberal.
São defeitos e são qualidades,
mesmo porque, para os povos, não há defeitos nem qualidades; há
características, e mais nada.
Os de Júpiter não são assim; são
rígidos, duros e frios; e têm dous sentimentos dominadores: o do enorme, que é
o seu critério de beleza, e o do dourado.
Um habitante do grande planeta,
uma vez na Terra, ao ver pelo crepúsculo o céu banhado de ouro liqüefeito,
esperneou de tal modo e de tal modo subiu às montanhas para colhê-lo que nos
antípodas houve um terremoto.
Em vendo a cor do ouro, eles saem
bufando, com o olhar injetado, em estado de fúria; e saem matando, estripando a
indiferentes, a amigos, a parentes e até aos pais; e — curioso — só querem ouro
para construir caixões de seis léguas de alturas e seis polegadas quadradas de
base. Eis como sentem a beleza... A isso juntam um horror
pelos gatos, um ódio idiota e histérico; no entanto, os "gatos" são
bons; se velhos, têm a candura de criança; se crianças, uma grácil
espontaneidade de encantar. Mesmo se não são melhores do que os seus
companheiros de planeta, são perfeitamente iguais a eles.
Contudo, são doridos e auditivos,
o que lhes dá a faculdade de criar uma poesia e uma música próprias, das quais
os de Júpiter se aproveitam, à míngua de poder eles mesmos criar essas
manifestações artísticas, pois a sua insensibilidade não o permite.
Mas os jupiterianos não os
toleram, porque podem os "gatos" votar, embora fossem os próprios
algozes destes que lhes tivessem dado esse direito.
Por qualquer de cá aquela palha,
os estúpidos jupiterianos se reúnem na praça pública e matam a pauladas, a
fogo, à fouce, sem forma de processo alguma, sob o pretexto de que o
"gato" queria casar ou namorava uma filha deles. Lá se chama
banditismo e é cousa parecida com o linchamento yankee.
Um viajante, entretanto, que lá esteve, achou esses “gatos" excepcionalmente
tímidos e doces, admirando-se que lá não houvesse mais crimes, provocados pelos
sofrimentos e humilhações que eles sofrem.
Perseguem-nos de um modo bárbaro
e covarde. Chamam-nos de poltrões, mas, quando querem guerrear, socorrem-se
deles e os "gatos" se portam bem. Vem a paz, oprimem-nos,
encurralam-nos mas, assim mesmo, eles crescem e multiplicam-se... Fraca raça!
Júpiter, como ia dizendo, acudiu
ao grito da buzina e reuniu o congresso na Terra. Na primeira sessão, logo os
Jupiterianos falaram na fraternidade de todos os animais do Universo: homens e
gatos, burros e jupiterianos, marcianos e raposos. Um principal de Júpiter até,
a esse respeito, fez um discurso muito bonito.
É muito cediça a manobra de
Júpiter falar sempre em liberdade, fraternidade, etc. Certa vez, ele declarou
guerra a Saturno, para libertar-lhe os povos. Logo, porém, que o venceu,
restabeleceu a escravatura que já estava absolvida. Tal e qual a América do
Norte fez com o Texas, província do México, em 1837.
Como todos esperavam, os
trabalhos do congresso prosseguiram com grande atividade.
Além de tratar do estabelecimento
de pontes pênseis que ligassem todos os planetas entre si, o congresso votou as
seguintes conclusões sobre a perfeita fraternidade animal, estabelecido nos
seguintes pontos:
a) Não se deveria mais comer
qualquer animal (boi, carneiro, porco);
b) As gaiolas dos pássaros deveriam ser
aumentadas do dobro, no mínimo;
c) Na caça, uma espingarda não poderia ser carregada
com mais de seis grãos de chumbo;
d) Generalizar 05 jogos de bola
na sociedade dos cabritos.
O programa era vasto e piedoso; e
até um principal de Júpiter, a esse respeito, orou e citou largamente a Bíblia,
tanto o Antigo como o Novo Testamento, fazendo pena não haver ali muitas beatas
que pudessem chorar com tal homem, tão digno de vir a substituir são Vicente de
Paulo, porque não é próprio citar Sáquia-Múni.
O povo da Terra — boa gente! —
exultou e encheu-se de orgulho por poder mandar às estrelas este grito:
"Não comemos mais bois!! Nada temos com as estrelas!"
Houve festas: banquetes e bailes
para alguns; luminárias para quem quisesse ver as fantasmagorias surpreendentes
nos órgãos de publicidade.
No Céu, porém, Sírius sorriu e
Altair mais amarela se fez. Da Plêiade, duas estrelas empalideceram de espanto,
e a Aldebarâ quis avisar aos néscios, mas não pôde.
Júpiter vendeu a todos os seus
irmãos toneladas de farpas, de remédios para calos, de papel literário; e isto
com alguma violência, que me eximo de contar. De passagem, digo-lhes que ele
ocupou um pedaço de Mercúrio...
Se tais produtos não estavam
completamente envenenados, foram, no entanto, deletérios. A Terra banalizou-se;
Marte perdeu a inteligência; Vênus, o amor desinteressado; Netuno, a bravura
generosa; os "gatos" de todos os planetas, contudo, vieram a gozar
dos benefícios das instituições jupiterianas, isto é, foram expulsos da
comunhão dos patrícios.
Sob os bons auspícios de Júpiter,
foi assim que se fez a fraternidade animal em todo o sistema planetário. Sírius
nunca mais cessou de sorrir.
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Nota:
Lima Barreto: "Histórias e Sonhos" (1920)
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