AGARICUS AUDITAE
A João Luis Ferreira
Alexandre Ventura Soares tinha seus
vinte e cinco anos, bacharel em ciências físicas e naturais, era preparador do
Museu de História Natural, cargo que, obtido em concurso, lhe dera direito a
uma viagem à Europa, nos tempos em que
as subvenções para isso largamente se distribuíam, razão pela qual eram
eqüitativa e sabiamente feitas. De volta, por acaso, viera a morar defronte de
um homem de idade, venerável, que vivia, pelo jardim de sua vasta casa, a catar
pedrinhas no chão. Curioso com os trejeitos do homem, pôs-se a observá-lo, a
fim de descobrir o que significavam. Visou a Ásia e encontrou no caminho a
América. El Levante por el Poniente... A filha do ancião, muito naturalmente, pouco afeita a
curiosidades sobre o seu jardim que não tivessem a ela por objeto, supôs que o
doutor estivesse apaixonado por ela. Nenê, era o seu apelido familiar, sabia
que o rapaz era dado a cousas de botânica; que pertencia ao museu; que o
tratavam de doutor; logo não se podia tratar senão de um médico.
A nossa mentecapta inteligência
nacional, de que não fazem parte só as mulheres, não admite que tratem de
botânica senão os médicos; e de matemática os engenheiros; quando, em
geral, nem uns nem outros se preocupam em tais cousas.
Ela, porém, vivendo em círculo
restrito, não tendo estudos especiais, convivências outras que não essa da
sociedade, fossilizadas de cérebro e com receitas de formulário na cabeça, não
podia ter outra opinião que a geral na nossa terra, de cima a baixo. Aquele
moço era por força doutor em medicina ou, no mínimo, estudante. Quando soube
que não, teve uma ponta de despeito; e custou-lhe a crer que fosse tão formado
como outro qualquer doutor. Foi o próprio pai quem a convenceu.
Oh! filha! filha! Pois não sabias
disso? Pois eu estimo muito saber que tenho na vizinhança um sábio.
O desembargador Monteiro, pai da
Nenê, estava aposentado e tinha a mania da mineralogia. Ele mal conhecia o
primeiro sistema de cristalografia; mas não lhe deixava a teima. Tinha um
laboratório onde não havia nem uma balança de Jolly, nem um maçarico, nem um
bico de Bunsen, nem um reativo, nem um pedaço de carvão vegetal; mas quando
mostrava aos visitantes, exclamava ufano:
— Vejam como tenho livros! Vejam!
Tenho o Haüy, as suas duas obras; a Estrutura dos cristais e a Mineralogia, primeiras
edições... Olhem aqui Delafosse! Seis volumes! Hein?
E assim mostrava toda a sua
biblioteca de mineralogia sistemática e descritiva. Chegava a um canto, onde
havia uma pequena bigorna de ourives, montada em um forte soco de pau, tendo a
um dos lados um pesado martelo de carpinteiro; e observava:
— É aqui que trabalho há anos...
Ainda não consegui isolar uma granada de granito... No entanto, eu as vejo em
quase todas as pedras da rua sobre que ponho os pés.
Foi esta mania de procurar granadas
nas pedras da rua que chamou a atenção do jovem naturalista seu vizinho. Se
Monteiro lobrigava uma granada por menor que fosse, nas pedras soltas do seu
caminho, logo apanhava o pedregulho, levando-o para casa, e martelava-o naquela
bigorna de fazer pulseiras, à cata da pedrinha vermelha-rubra; mas, fosse por
isso ou por aquilo, a granada se escafedia e o nosso mineralogista ficava
desolado. Só os paralelepípedos do pavimento das ruas lhe escapavam; mas, assim
mesmo, quando estivessem ajustados aos outros; se soltos, ele pagava a algum
moleque para levar um ou outro à sua casa.
Sua filha, dona Nenê, ficou muito
contente; e o jovem botanista não teve nenhuma dificuldade em obter a sua mão.
O velho desembargador disse-lhe unicamente:
— Bem. Não há dúvida. O doutor tem
com certeza um futuro brilhante; mas, ainda não demonstrou para que veio
ao mundo. Já escreveu uma "memória"?
— Não, senhora.
— Faz mal. Na Alemanha, é muito
usado... A "memória” demonstra sagacidade para o novo, para o detalhe
inédito, inexplorado, um ponto de vista que houvesse escapado aos sábios e
grandes mestres... Eu queria que meu futuro genro merecesse
minha filha dessa maneira, porque, na Alemanha...
— Mas o senhora desembargador há de me permitir uma
pergunta?
— Pois não.
— A que sociedade ou academia deveria eu apresentar a minha
memória?
— Não há negá-lo: a sua objeção
procede. Não havendo entre nós academias especiais a semelhantes ciências,
havia, portanto, embaraço em achar quem julgasse o mérito ou demérito do seu
trabalho. As que há, ou são de uns ignorantes literatos que nunca viram uma
granada em uma pedra, ali, da pedreira no rio Comprido, ou são formadas por uns
médicos faladores que têm pretensões a literatos. Mas... acontece que os
senhores não conhecem bem o Brasil, senão saberiam que existe uma academia
respeitável e egrégia, não só pelos vários ramos de ciências naturais nela cultivados, como também
pelo número de sábios mortos e vivos a ela pertencentes, que mereciam ser
conhecidos pelo senhora que governa a sua mocidade nobre pela inteligência e
pelo estudo. Então não conhece o senhora a "Academia dos
Esquecidos"?
— Não!
— É de admirar! Pois, creia-me, dela, além dos atuais,
fizeram e fazem parte ainda: Alexandre Ferreira,
Conceição Veloso, Gomes de Sousa, o doutor José Maurício Nunes Garcia, Domingos
Freire, Tito Lívio de Castro, Morais e Vale, José Bonifácio...
—José Bonifácio, dos Esquecidos!
— Sim! Aquele mineralogista que depois foi político. E como
não?
— Ah!
— Compreende-me, agora? Pois bem. Atualmente,
presido eu a academia, disse o desembargador com ênfase; e espero que, como um
paladino, ofereça à sua noiva a árdua vitória de fazer parte dela: Está aqui a
minha mão, Nenê...
Os três sábios despediram-se
tocantemente; faltou porém, o quarto sábio. Talvez fosse o único que não
levasse n'alma engano cego; mas a pequena levou, creio, durante o primeiro ano.
Na rua, monologava Soares: um caso
novo, um detalhe original, onde hei de buscá-los? Fui bom estudante e, talvez,
por isso, nunca supus que, na ciência, houvesse novidade. Tudo já estava feito
e, quando não estava, quando se queria cousa nova, compravam-se as revistas
estrangeiras e lá estava a cousa digeridinha. E — que diabo! - para que havia eu de aumentar a
dificuldade dos estudantes? Não bastavam os
europeus, os tais alemães? Já que era preciso descobrir ou inventar para casar,
vá lá! Mas não era já suficiente ser "doutor" para casar? Ainda mais
esta! Até o que se havia de pedir para casar bem! Ora bolas! Estou quase
desistindo... Não! É preciso ter-se urna posição decente na sociedade, um bom casamento, se não rico, pelo menos
semi-rico... Se não descubro, forjico qualquer cousa e a ciência que se
amole... A ciência é um enfeite; é assim como este anel de safira.
E olhou para a pedra quase tão dura
como o diamante, a qual não esmaeceu em nada ao seu olhar feroz de
cupidez...
Resolveu-se Soares a escrever sobre
mineralogia: Rochas metamórficas do Brasil ou O veio de petrossílex do
Corcovado; mas isto, considerava, não é novo e muito menos é meu. O jovem sábio
foi dormir, julgando ter perdido a menina rica, a importância
de genro do desembargador Monteiro, e a sua entrada na Academia dos Esquecidos.
Buffon afirmou alhures que alguns volumes da sua monumental
História natural, ele os devia ao seu criado. Soares deveu a sua
"memória" e a sua felicidade ao seu criado José. Despertou-o este bem
cedo, muito a contragosto dele. Leu os jornais, de princípio a fim; leu a
notícia dos rolos que houvera no Teatro Lírico, tomou outra xícara de café,
fumou e, de súbito, sentou-se à mesa e escreveu em bastardo:
Agaricus auditae
Mais em baixo, ao lado direito, pôs à guisa de epígrafe:
Memória apresentada à Academia dos Esquecidos, secular e
vetusta como as demais congêneres, pelo bacharel em ciências físicas e naturais
da Escola Politécnica do Rio de Janeiro Alexandre Ventura Soares.
E então começou:
"Senhores Acadêmicos.
Seduziu-me desde moço a doutrina darwiniana; e eu, com Lyell, a sorvi em
grandes haustos na sua aplicação à geologia. Concordei que o mundo atual era
resultante e resultado de várias, lentas, pequeninas transformações seriadas
cujos termos não têm origem; com Huxley, depois daquela sua célebre demonstração
por que tem passado o cavalo através das idades (T. Huxley — L'Évolution
et l'origine des espèces — tradução francesa, 1892,
págs. 232 e segs.) — com Huxley, dizia, acreditei que o Megatherium e o mamute,
como plenipotenciários seus, tivessem acreditado entre nós a hórrida preguiça e
o informe elefante. Sustentei que, sob o império inexorável da seleção natural
e da adaptação ao meio, marchássemos nós, pedras e homens, nessa sucessão de
modificações, passo moroso e graduado com que vai a variável, de estádio em
estádio, se aproximando do limite para nunca atingi-lo, como nós para o nosso
perfeito destino desconhecido (Haeckel, passim)".
— Bem começado! exclamou o nosso
Alexandre. Os períodos se sucedem como uma falange de teoremas e deles tirarei
legiões de corolários. Festina lente.. Mas continuemos:
"E, certo nestas idéias,
parecia impossível, e de fato é, que, em plena vida contemporânea, existissem
exemplares da fauna e da flora dos primórdios da Terra. Houve, não obstante ser
inconseqüente com os verdadeiros princípios da ciência, alguém que
pretendeu ter visto fósseis 'vivos', mas, se é possível isto no mundo das inteligências,
fora do mundo do pensamento, tal como o dos artistas, dos poetas, dos
sociólogos, dos escritores, dos arquitetos, dos jornalistas, dos músicos, tal
não permite a evolução em geral".
"Deveis lembrar-vos, senhores acadêmicos, dos
Pterodactylus longisrostris, que alguns viajantes (poetas naturalmente)
julgaram lobrigar por entre as florestas ralas da Nova Zelândia, mas que, após
visitas de verdadeiros cientistas, foram arrastados para a voragem dos
desmentidos da excelsa ciência”.
Soares não se conteve e exclamou bem alto:
— Muito bem! Excelsa ciência! Admirável! Naturalmente o
desembargador Monteiro há de apreciar esta bela frase: excelsa ciência! Não há
dúvida! Esta minha memória traz no seu bojo toda uma síntese das minhas
qualidades e das minhas audácias fáceis! Assentarei a minha fama de
naturalista; entrarei para a Academia dos Esquecidos; demonstrarei o vigor do
meu estilo e, por cima de tudo, uma pequena semi-rica! Arre! Como é bom ter-se
um bom curso na Escola Politécnica do Rio de Janeiro! Nenê, como te amo!
Socorre-me nesse transe, como me vais socorrer a vida toda! A mulher foi feita
para sustentar homem... Aquele burro do Comte! Era por isso que ele detestava a
geologia, a paleontologia! Burro! Nenê!... E não é que estou mesmo parecendo o Paulo, o tal
da Virgínia? Ora bolas!
Adiante:
"II - Amigo meu e consumado sábio, J. C. Kramer,
exímio geólogo e professor da mesma cadeira da Harvard University, USA, em
conversa comigo, há dias, no Museu de História Natural desta capital — conversa
amável de sábios — comunicou-me que, há tempos, por ocasião de estudar, no Rio
de Janeiro, a hipótese da glaciação do Brasil”, de Agassiz, observou vegetando
nesta cidade de assaz estranha casta de tortulhos — a que as crianças chamam
‘mijo-de-sapo' e ‘orelha-de-burro’ que ele julgava,
apesar do disparatado dos caracteres, exemplares da flora do período triássico
da época secundária.
"Óbvio será dizer-vos,
senhores acadêmicos, que uma tal comunicação me encheu de imenso júbilo,
patriótico e científico.
"Cavaqueando comigo o doutor
Kramer, da Harvard University, USA, admirava-se, sorrindo com mofa e
desculpando-se amável, que, vivendo os tais cogumelos tão próximos dos nossos
estabelecimentos de ciências, não houvéssemos ainda notado a sua singular
estrutura. É bastante explicável - desculpava-se agora mal - vosso país é muito
novo. E, na continuação da palestra, não se media, ás vezes, de contentamento e
satisfação. Deixava sempre transparecer nesses sentimentos a utilidade
científica da perspicácia e subtileza do sábio yankee; e o que parecia acrescer
ainda mais a sua maligna satisfação, era que tais Agaricus fossem além dos
nomes das crianças que tinham, também conhecidos vulgarmente por 'diletantes',
nome que, dado o seu explicável e previsto mau ouvido para as línguas do
sul da Europa, creio tratar-se de dilettanti."
Nisto, o José chega á porta do gabinete do sábio Alexandre
e grita:
— "Seu dotô"! O almoço na mesa!
— Oh! Já?
Olhou o relógio na parede e concordou:
— Você tem razão... E verdade! Já
são dez horas... Almoço, vou ao museu, consulto as notas da besta do Kramer e,
antes do fim do mês, tenho a "pequena" e o resto... E, se alguns
cépticos, pessimistas e despeitados disserem que a ciência, no Brasil, não leva
longe, não dá fortuna, independência, eu posso dizer bem alto: aqui estou eu!
E bateu, com força, no peito, como
se dissesse para a escolta do fuzilamento: atirem que eu não preciso de
ficar amarrado, nem vendado. Sei morrer!
No dia seguinte, completamente
armado com as notas do famoso geólogo yankee, o notável brasileiro Alexandre
Ventura Soares, homem grave e sábio, tanto mais grave e mais sábio por ser
jovem, continuou a sua memória casamenteira assim:
"III — O habitat de tais
'orelhas-de-burro', como lhes chamam as crianças do Rio de Janeiro, é um barracão úmido e quente que fica ao sopé do morro de Santo Antônio,
no centro da cidade, e serve as mais das vezes de depósito de jornais europeus
de modas e jóias de aluguel que correm, em vários corpos, as capitais de segunda
ordem do globo, exibindo-as como riquezas próprias".
— Diabo! exclamou Soares,
compulsando as notas. Este Kramer tem cada idéia! Isto é impossível! Adiante,
pois é preciso! Enfim ponho umas aspas e vai a cousa por conta dele:
"Convém — e com humildade vos
peço, senhores acadêmicos — que vos esqueçais (não fôsseis Esquecidos) das mais
comezinhas noções de botânica, pois o nosso excêntrico sábio vai desvendar
órgãos pouco fáceis de aceitar em ‘mijos-de-sapo' "
— Está salva a minha
responsabilidade, monologou o notável preparador do Museu de História Natural.
Vamos! E preciso não esquecer o teu ideal científico! A Nenê está
ali! Vamos! Esta "memória" é a tua sorte grande!
E tomando fôlego, continuou:
"Eles deveriam ser análogos
aos criptógamos que formavam com outros a flora do período carbonífero; e, para
justificar isto, encontraram-se entre eles alguns exemplares
do Lepidodendron elegans, do gênero Atanephae.
"Parecia a pessoas pouco
versadas em geologia e paleontologia, que tais criptógamos não alcançassem, nos
nossos dias, mais do que alguns centímetros de altura; mas, a vós, que delas
sabeis mais do que eu, não parecerá estranho que afirme tê-los visto com 1,50 m e 1,80 m de altura.
"Sob a forte objetiva de um
microscópio de Zeiss, encontrou o doutor Kramer, na parte mínima do disco
superior que possuem tais tortulhos, alguma cousa semelhante
ao cérebro humano.
"Analisando esse pedacito de
cabeça pacientemente, com a paciência característica de um professor da Harvard
College, se lhe depararam, ao doutor Kramer, coroando as suas fatigantes
pesquisas, em estado rudimentar, os nervos óptico, auditivo, olfativo,
gustativo etc. e, de todos esses, o mais rudimentar e grosseiro, era o
auditivo. Usando, então, de um paradoxo fácil, o sábio de Cambridge
(USA) denominou-os cogumelos auditivos (Agaricus auditae).
"Das bossas (o singular Kramer
ainda admite a teoria de Gall), só lhes restava a da memória. As funções da vida
vegetativa tinham neles um completo e pleno desenvolvimento, tanto assim que, apesar de agáricos, sabiam comer demasiadamente.
"O que toma tais cogumelos
dignos de nota, além de outros caracteres — observa o doutor Kramer —, é que
possuem sexos. Há-os machos e os há fêmeas. Embora fiel aos ditames da ciência,
no entretanto, por honestidade científica, julgo-me obrigado a transcrever aqui
essa blasfêmia. Mas, se ela foi irrogada à ciência, por um sábio com o
distinto professor do Harvard University, claro é que nós não devemos senão acatá-la, embora assim
parecendo ser. Se não nos parece verdade inconcussa, partindo de onde parte,
néscios como somos, temos o dever de tomá-la como tal. "Diz o professor americano que há os exemplares de um coloração negra, intensamente negra, tendo na parte superior um canudo também negro,
lustroso, como uma espécie de rabo de ave — são os machos; e os outros claros,
róseos, cabeludos, seminus, cheios de pedrarias — são as fêmeas.
"Nessas diferenças, todas superficiais, que o
extraordinário professor julga traduzirem sexos, no choque delas, no seu atrito
é que reside a agitação, a fermentação daquele principado vegetal dos Agaricus
auditae.
"Tocando isto à sociologia dos 'orelhas-de-burro', em
que não sou versado, não me animo a discutir a questão e adio o debate para
mais tarde..."
— Que é, José?
— Esta carta da casa do doutor Monteiro.
O criado retirou-se e o sábio, apud Kramer, abriu o bilhete
e leu:
"Meu querido:
Já não apareces, não te vejo mais. Deixa essa história de
memória. Papai é maníaco, isto não é preciso. É melhor que arranjes um
soneto, uns versos, enfim, que talvez façam o mesmo efeito; e,
se quiseres, manda-los-ei fazer por um poeta discreto que anda na precisão de dez mil-réis. Queres? Que
tal? Responde.
Nenê".
O sábio Alexandre, luzeiro da ciência brasileira,
respondeu:
“Nenê.
Tem fé em mim e na Ciência.
Alexandre".
Em seguida, o original cientista Ventura considerou de si
para si:
— Bem, por hoje, basta. Amanhã irei
determinar a origem e, no sábado, lerei a memória ao desembargador; e, ainda,
não foram passados dous meses! A ciência brasileira tem os seus lados notáveis
e singulares — continuou Alexandre na sua meditação — e um deles é essa
presteza nos seus trabalhos. Isto é devido ao fato que, para
os outros sábios, o objeto da ciência está no mundo, exigindo pesquisas, observações
e experiências demoradas; nós, porém, pouco nos importamos com o mundo. Há
livros; fazemos ciência. Com eles, revistas, memórias dos outros, sem ir diretamente
á natureza, estudam-se detalhes, arquiteta-se uma teoria nova que escapou aos
grandes mestres das grandes obras. A questão é combinar um com outro, embora
antagônicos... Oh! Este Brasil não é um país perdido! E um grande país!
Na quinta-feira, tinha o nosso bacharel concluído a sua
memória e fê-lo de modo feliz e completo. Ei-lo:
"IV - Escusado será dizer que, desde logo, procurei
motivar e determinar as origens de tão estranha vegetação; e sem nada
encontrar, já desesperava, quando o acaso, constante amigo dos sábios,
auxiliou-me eficazmente, como quando foi ao encontro de Newton, com a maçã, e
de Galileu, com a lâmpada da catedral de Pisa. "V- Há um ano pouco mais,
andando eu na Itália, em comissão do governo, vi, na praia de Nápoles onde flanava,
brotando sobre uns andrajos sujos e abandonados de um lazzarone, uns cogumelos
de um cromatismo vário e minúsculos. Naturalista, impressionaram-me eles e tive
o capricho de trazer a policrônica aglomeração dos pequeninos tortulhos, com os
competentes andrajos, para o Rio de Janeiro. Aqui chegado, depositei-os em um
quarto contíguo ao do meu criado José, que, ora tocando em uma flauta de bambu
ou em sanfona valsas e polcas mais em voga; ora, lendo noticias de fitas de
cinema, distraía-se, sem esquecer, de quando em quando, de entoar com
indecifrável voz, árias das óperas da moda, que ele ouvia trauteadas pelas
ruas. Sem que tal saiba bem explicar, a não ser a flauta, o cantochão as
crônicas do José, as 'orelhas-de-burro' napolitanas começaram a medrar, a
crescer e têm atualmente quase meio metro de altura.
"VI — Atributo, portanto, senhores acadêmicos
Esquecidos, aos portentosos Agaricus do doutor Kramer as mesmas origens que os
meus e o seu desenvolvimento às mesmas causas que os daqueles trazidos por mim
da Itália, tanto mais que perto do habitat dos primeiros existe a banda de
música da Brigada Policial e o Teatro Lírico".
O doutor Alexandre Ventura Soares, bacharel em ciências
físicas e naturais pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, preparador, por
concurso, do Museu de História Natural do Rio de Janeiro, terminando a memória,
levou-a ao desembargador Monteiro que gastou
seis meses em lê-la e meditar sobre ela. Ao fim dos quais, mandou chamá-lo e,
logo que veio, apresentando-o à filha, assim falou:
— Nenê, é este o teu noivo que,
pelo seu talento e pela sua erudição, acaba de penetrar na Academia Brasileira
dos Esquecidos. Casados, desejo que vocês continuem o número deles, para
grandeza e fama do Brasil.
Casaram-se e a primeira cousa que
fizeram, graças ao dote dela, foi comprarem um chalé na "curiosa floresta" dos
Agaricus auditae.
---
Nota:
Lima Barreto: "Histórias e Sonhos" (1920)
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