DENTRO DA NOITE
— Então causou sensação?
— Tanto mais quanto era
inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela, coitadita! parecia louca por ti,
e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces,
a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora...
Evidentemente havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os
espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo
geral é contra o teu procedimento.
— Contra mim?
Podia ser contra a pureza
da Clotilde. Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o
Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora,
onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio, com o ar
desvairado...
— Eu tenho o ar desvairado?
— Absolutamente desvairado.
— Vê-se?
— É claro. Pobre amigo!
Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura
fria, e com um olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que
choraste. Conta lá. Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queiroz, o mais elegante
artista desta terra, nem trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É
curioso. Ocultas os pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de
vício perigoso?
O trem rasgara a treva num
silvo alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele
badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes
das casas ainda abertas, os silvedos empapados d’água e a chuva lastimável a
tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da
banqueta próxima — o que falava mais — dizia para o outro:
— Mas como tremes, criatura
de Deus! Estás doente?
O outro sorriu desanimado.
— Não; estou nervoso, estou
com a maldita crise. E como o gordo esperasse:
— Oh! meu caro, o Prates
tem razão! E teve razão a família de Clotilde e tens razão tu cujo olhar é de
assustada piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado.
— Mas que é isto, Rodolfo?
— Que é isto! E’ o fim, meu
bom amigo, é o meu fim. Não ha quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua
brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito,
debato-me, não quero, não quero, mas o
vício vem vindo a rir, toma-me a mão,
faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te da Jeanne
Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos
convidava para as fumeries1de ópio? Sabiam ambos que acabavam a
vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar
com um homem que se sente doido.
— Tomas morfina, agora? Foi
o desgosto decerto...
O rapaz que tinha o olhar
desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais — a não ser eu, e eu
dormia profundamente... Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de
explicações.
— Foi de repente, Justino.
Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família
honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a que amava perdidamente. E
uma noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada,
com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e
comovedora, meio infantil, meio mulher — a beleza dos braços das Oréadas2 pintadas por Botticeli, misto de castidade
mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado
que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de
beija-los, de acaricia-los, mas principalmente de faze-los sofrer. Fui ao
encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era
agarrar-lhe os braços, sacudi- los, aperta-los com toda a força, fazer-lhes
manchas negras, bem negras, feri-los... Porque? Não sei, nem eu mesmo sei — uma
nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me
dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer. O desejo,
porém ficou, cresceu, brotou, enraigou-se na minha pobre alma. No primeiro
instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande
vontade era de espeta-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de coze-los
devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse
as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma
grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando
pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer
diante daquele susto de carne que havia de sentir.
— Que horror!
— Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauteríe3 da viscondessa
de Lages, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços — oh!
que braços, Justino, que braços ! — estavam quase nus. Quando Clotilde
erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto da varanda,
entre as roseiras, ela disse-me — “ Rodolfo, que olhar o seu. Está zangado? “
Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. — “
Oh! não! fiz. Estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço. “
Sabes como é pura a Clotilde. A pobresita olhou-me assustada, pensou, sorriu
com tristeza: —“Se não quer que eu mostre os braços porque não me disse a mais
tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado? “ — “ É , é isso, Clotilde. “ E
rindo — como esse riso devia parecer idiota! — continuei “ É preciso pagar ao
meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete. “ —~ Está louco,
Rodolfo? “ — “ Que tem? “ — “ Vai fazer-me doer. “ — “Não dói. “ — “ E o
sangue? ” —“Beberei essa gota de sangue como a ambrosia do esquecimento. “ E
dei por mim, quase de joelhos, implorando, suplicando, inventando frases, com
um gosto de sangue na boca e as frontes a bater, a bater... Clotilde por fim
estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir. Ah!
meu caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo,
de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo tempo, ela
curvou a cabeça, murmurou num suspiro “Bem, Rodolfo, faça... mas devagar,
Rodolfo! Há de doer tanto! “ E os seus dois braços tremiam.
Tirei da botoeira da casaca
um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o
lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma
pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os
meus sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse,
magoadamente — “ Mau!”
Ah! Justino, não dormi.
Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço
afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que
prazer tremendo!
E apertando os varões da
cama, mordendo a travesseira, eu tinha a certeza de que dentro de mim rebentara
a moléstia incurável. Ao mesmo tempo que forçava o pensamento a dizer nunca
mais farei essa infâmia! todos os meus nervos latejavam: voltas amanhã; tens
que gozar de novo o supremo prazer ! Era o delírio, era a moléstia, era o meu
horror...
Houve um silêncio. O trem
corria em plena treva, acordando os campos com o desesperado badalar da
máquina. O sujeito gordo tirou a carteira e acendeu uma cigarreta.
— Caso muito interessante,
Rodolfo. Não ha dúvida que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de S.
Francisco de Assis também é degeneração e o amor de Santa Teresa não foi outra
coisa. Sabes que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? És mais um tipo a
enriquecer a série enorme dos discípulos do marques de Sade. Um homem de
espírito já definiu o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. És um Jack-the-ripper-civilisado4,
contentas-te com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes.
O outro resfolegava, com a
cabeça entre as mãos.
— Não rias, Justino. Estás
a tecer paradoxos diante de uma criatura já do outro lado da vida normal. É
lúgubre.
— Então continuaste?
— Sim, continuei, voltei,
imediatamente. No dia seguinte, à noitinha, estava em casa de Clotilde, e com
um desejo louco, desvairado. Nós conversávamos na sala de visitas. Os velhos
ficavam por ali a montar guarda. Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o
sofá. Logo ao entrar tive o instinto de que podia praticar a minha infâmia na
penumbra da sala, enquanto o pai conversasse. Estava tão agitado que o velho
exclamou: — “ Parece, Rodolfo, que vieste a correr para não perder a festa.”
Eu estava louco, apenas.
Não poderás nunca imaginar o caos da minha alma naqueles momentos em que estive
a seu lado no sofá, o maelstrom5 de
angústias, de esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu
senti saltar-me á garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir... Quando ao cabo
de alguns minutos acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa
carícia lenta que subia das mãos para os ombros, entre os dedos senti que já
tinha o alfinete, o alfinete pavoroso. Então fechei os olhos, encolhi-me,
encolhi-me, e finquei.
Ela estremeceu, suspirou.
Eu tive logo um relaxamento de nervos, uma doce acalmia. Passara a crise com a
satisfação, mas sobre os meus olhos os olhos de Clotilde se fixaram enormes e
eu vi que ela compreendia vagamente tudo, que ela descobria o seu infortúnio e
a minha infâmia. Como era nobre, porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça.
Que se havia de fazer?...
Então depois, Justino,
sabes? foi todo o dia. Não lhe via a carne mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe
os braços! Por último perguntava: — “Fez sangue, ontem?” E ela pálida e triste,
num suspiro de rola: “Fez...” Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na
necessidade de saber se doera bem, se ferira bem, se estragara bem! E no
quarto, á noite, vinham-me grandes pavores súbitos ao pensar no casamento porque
sabia que se a tivesse toda havia de picar-lhe a carne virginal nos braços, no
dorso, nos seios... Justino, que tristeza !...
De novo a voz calou-se. O
trem continuava aos solavancos na tempestade, e pareceu-me ouvir o rapaz
soluçar. O outro porém estava interessado, e indagou:
— Mas então como te saíste?
— Em um mês ela emagreceu,
perdeu as cores. Os seus dois olhos negros ardiam aumentados pelas olheiras
roxas. Já não tinha risos. Quando eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo
de espaçar a hora do tormento. Era a mãe que a ia buscar. “Minha filha, o
Rodolfo chegou. Avia-te. “ E lá de dentro:”
Já vou, mãe “.Que dor eu tinha quando a via aparecer sem uma palavra !
Sentava-se à janela, consertava as flores da jarra, hesitava, até que sem
forças vinha tombar a meu lado, no sofá, como esses pobres pássaros que as
serpentes fascinam. Afinal, ha dois meses, uma criada viu-lhe os braços, deu o alarme.
Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa onda de soluços. Nessa mesma
tarde recebi uma carta seca do velho pai desfazendo o compromisso e falando em
crimes que estão com penas no código.
— E fugiste?
— Não fugi; rolei,
perdi-me. Nada mais resta do antigo Rodolfo. Sou outro homem, tenho outra alma,
outra voz, outras idéias. Assisto-me endoidecer. Perder a Clotilde foi para mim
o sossobramento total. Para esquece-la percorri os lugares de má fama, aluguei
por muito dinheiro a dor das mulheres infames, frequentei alcouces6. Até
aí o meu perfil foi dentro em pouco o terror. As mulheres apontavam- me a
sorrir, mas um sorriso de medo, de horror.
A pedir, a rogar um
instante de calma eu corria ás vezes ruas inteiras da Suburra7, numa
enxurrada de apodos. Esses entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na
fúria do amor, mas tremem de nojo assustado diante do ser que pausadamente e
sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso. Dei então para
agir livremente, ao acaso, sem dar satisfações, nas desconhecidas. Gozo agora
nos tramways8, nos music-halls, nos comboios dos caminhos de
ferro, nas ruas. É muito mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem
dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço des- culpa. Uma já me esbofeteou.
Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem
doentes.
A voz do desvairado
tornara-se metálica, outra vez. De novo porém a envolveu um tremor assustado.
— Quando te encontrei,
Justino, vinha a acompanhar uma rapariga magrinha. Estou com a crise, estou...
O teu pobre amigo está perdido, o teu pobre amigo vai ficar louco...
De repente, num entrechocar
de todos os vagões, o comboio parou. Estávamos numa estação suja, iluminada
vagamente. Dois ou três empregados apareceram com lanternas rubras e verdes.
Apitos trilaram. Nesse momento, uma menina loura com um guarda-chuva a pingar,
apareceu, espiou o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé
logo.
— Adeus.
— Saltas aqui?
— Salto.
— Mas que vais fazer?
— Não posso, deixa-me!
Adeus!
Saiu, hesitou um instante.
De novo os apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça
com as duas mãos como se quisesse reter
um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando rangeu por
sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira, correu para
o vagão onde desaparecera a menina loura. Logo o comboio partiu. O homem gordo
recolheu a sua curiosidade, mais pálido, fazendo subir a vidraça da janela.
Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava incapaz de erguer-me, imaginando
ouvir a cada instante um grito doloroso no outro vagão, em que estava a menina
loura. Mas o comboio rasgara a treva com outro silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente.
Através das vidraças molhadas viam-se numa correria fantástica as luzes das
casas ainda abertas, as sebes empapadas d’água sob a chuva torrencial. E à
frente, no alto da locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme sino
reboava, acordando a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraça e de
delírio.
Notas:
Notas:
1 - Casas onde se fumava
ópio.
2 - Ninfas dos bosques e
montanhas na mitologia greco-romana.
3 - Reunião dançante, de
natureza íntima. Em francês no texto.
4 - Alusão ao famoso
assassino londrino Jack-the-ripper (Jack, o estripador). Em inglês no
texto.
5 - Turbilhão.
6 - Prostíbulo, bordel.
7 - Alusão ao bairro boêmio
da Roma antiga.
8 - Bonde. Em inglês no texto.
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Nota:
João do Rio: "Dentro da noite" (1910)
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