sábado, 21 de setembro de 2013

Hugo de Carvalho Ramos: "Ninho de Periquitos"

NINHO DE PERIQUITOS

Abrandando a canícula pelo virar da tarde, Domingos abandonou a rede de embira onde se  entretinha arranhando uns respontos na viola, após farta cuia de jacuba de farinha de milho e  rapadura que bebera em silêncio, às largas colheradas, e saiu ao terreiro, onde demorou a afiar  numa pedra piçarra o corte da foice.

Era pelo domingo, vésperas quase da colheita. O milharal estendia-se além, na baixada  das velhas terras devolutas, amarelecido já pela quebra, que realizara dias antes, e o veranico,  que andava duro na quinzena.

Enquanto amolava o ferro, no propósito de ir picar uns galhos de coivara no fundo do  plantio para o fogo da cozinha, o Janjão rondava em torno, rebolando na terra, olho aguçado  para o trabalho paterno: não se esquecesse, o papá, dos filhotes de periquitos, que ficavam lá no  fundo do grotão, entre as macegas espinhosas de malícia, num cupim velho do pé da mariapreta.  Não esquecesse...

O roceiro andou lá pelos fundos da roça, a colher uns pepinos temporões; foi ao paiol de  palha d'arroz, mais uma vez avaliando com a vista se possuía capacidade precisa para a rica  colheita do ano; e, tendo ajuntado os gravetos e uns cernes da coivara, amarrava o feixe e ia já a  recolher caminho de casa, quando se lembrou do pedido do pequeno. Ora, deixassem lá em paz  os passarinhos.

Mas aquele dia assentava o Janjão a sua primeira dezena tristonha de anos; e pois, não  valia por tão pouco amuá-lo.

O caipira pousou a braçada de lenha encostada à cerca do roçado; passou a perna por  cima, e pulando do outro lado, as alpercatas de couro cru a pisar forte o espinharal ressequido  que estralejava, entranhou-se pelo grotão – nesses dias sem pinga d'água – galgou a barroca  fronteira e endireitou rumo da maria-preta, que abria ao mormaço crepuscular da tarde a  galharada esguia, toda tostada desde a época da queima pelas lufadas de fogo que subiam da  malhada.

Ali mesmo, na bifurcação do tronco, assentada sobre a forquilha da árvore, à altura do  peito, escancarava a boca negra para o nascente a casa abandonada dos cupins, onde um casal de  periquitos fizera ninho essa estação.

O lavrador alçou com cautela a destra calosa, rebuscando lá por dentro os dois borrachos.  Mas tirou-a num repente, surpreendido. É que uma picadela incisiva, dolorosa, rasgara-lhe por  dois pontos, vivamente, a palma da mão.

E, enquanto olhava admirado, uma cabeça disforme, oblonga, encimada a testa duma  cruz, aparecia à aberta do cupinzeiro, fitando-lhe, persistentes, os olhinhos redondos, onde uma  chispa má luzia, malignamente...

O matuto sentiu uma frialdade mortuária percorrendo-o ao longo da espinha.

Era uma urutu, a terrível urutu do sertão, para a qual a mezinha doméstica nem a dos  campos possuíam salvação.

Perdido... completamente perdido...

O réptil, mostrando a língua bífida, chispando as pupilas em cólera, a fitá-lo ameaçador,  preparava-se para novo ataque ao importuno que viera arrancá-lo da sesta; e o caboclo, voltando  a si do estupor, num gesto instintivo, sacou da bainha o largo jacaré inseparável, amputando-lhe  a cabeça dum golpe certeiro.

Então, sem vacilar, num movimento ainda mais brusco, apoiando a mão molesta à casca  carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe, cerce quase à juntura do pulso.

E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi rasgando entre dentes,  saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo de casa, como um deus selvagem e  triunfante apontando da mata companheira, mas assassina, mas perfidamente traiçoeira...


1915

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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)   

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