sábado, 21 de setembro de 2013

Hugo de Carvalho Ramos: "Dias de Chuva"

DIAS DE CHUVA

Cai a chuva lá fora. Plac! plac! ouço-a cantando em goteiras e cornijas, no cimento molhado da  rua e nas vidraças embaçadas do meu quarto. Não sei por que, vendo o borraceiro descer, o  espírito embebe-se-me em doce e longínqua rêverie.

Vejo, através duma tela úmida as paisagens distantes de meu torrão natal, e afaz-se-me a  que ando viajando, como antigamente, por esses sertões, sentindo sob o pala de viagem a água  cirandar forte, cabriolando e verdascando sobre os serros longes, as saraivadas, ou peneirando  grosso, em meio o rendilhado sombrio da floresta por onde vou.

Assim, anos lá vão, cavalgava eu por essas estradas ermas da minha terra remota, um  macho perrengue de aluguer, ou o lépido alazão Dourado, em férias, rumo do sítio. Dia em  meio, casais de araras e bandos de papagaios despregavam dum jenipapeiro qualquer de tapera o  seu vôo balofo, e passavam alto, em gritaria álacre de contentados; cracarás corriam  escrutadores e solertes pelos campos, em surtos rasteiros de carnívoros. O verde das campinas,  das orlas de mato longe, quando ganhava a chapada, tinha deslumbramentos intensos de seiva  robusta e viva.

E – plac! plac! – arremedando como agora a chuva das goteiras, segue o alazão caminho  afora, pelo alagado trilho de argila vermelha, deixando atrás, vincado, o molde de seus cascos  ferrados, chapinhando pelo rego das enxurradas, crinas pendidas, cabeça baixa, a resfolegar...

E o aguaceiro molinhando, desce manso e manso, como se uma grande e fantástica mó  andasse remoendo cristais pelo céu de cinábrio, e sobre a extensão imensamente esmeralda  daqueles desertos rincões. E chupitando a fumaça de minha cigarrilha de palha, sob o pala  quente de viageiro, sigo eu, cabeça baixa, desengonçado na sela, num grande descaso da  borrasca, ruminando planos futuros.

Às vezes, cantavam galos perto, cacarejavam galinhas-d'angola – cocás, – cães latiam dos  currais e porteiras, quando não vinham, esganiçadores e embolados, esfalfar-se até os jarretes do  Dourado, em matinadas hostis. Olhava: era um sítio, um morador, por onde passava ao largo. E  calculando, pensava: Aí ficam já os Peludos, duas léguas ainda a andar. E agitando as rédeas em  abandono no arção, prosseguia, acelerando a andadura do animal.

Dentro em pouco, ficava para trás, escondida nas sombras, no nevoeiro, na folhagem, a  silhueta pardacenta dos telhados. A chuvarada continuava aberta, naquele seu grande choro de  desconforto, ensopando os campos. Encachoeiravam-se longe, ao fundo, nos plainos baixos, em  cujas bordas carreiras viçosas de buritis contornavam capões, as águas marulhentas de regatos  perenes. Gaviões, entanguidos, quedavam-se sonolentos e marasmáticos a olhar do cimo  desnudo dos galhos secos das encruzilhadas. Nas várzeas umentes de jaraguá, um e outro  mestiço zebu passeia pachorrento e indiferente, ao borrifo.

Em torno, silêncio absoluto; muricizeiros abriam-se em flor, nessas primeiras chuvas de  outubro, e, com eles, paineiras esgalgadas e pequizeiros copudos dos cerrados.

Numa baixada, transposto o córrego, o caminho internava-se novamente na mata bruta.  Aí, a rama superior, densamente fechada, afogava, nulificando-a, o ruído da chuva; apenas um  ou outro grosso pingo, escapulindo-se por uma ligeira aberta rasgada no folhedo pelo vento,  tombava – poc! poc! – na camada espessa de folhas podres que atapetavam, abafando os passos,  o carreiro calmoso. E, indiferente e esquecido do mundo, seguia eu cabisbaixo, numa grande  paz e conforto da alma, sob o pala de viagem, ruminando saudades...

Nas beiradas de mato dos barrancos – onde o carreiro se cavava fundo pelo trânsito  continuado – marmeladas-de-cachorro ofereciam os seus negros e brilhantes frutos maduros;  ingazeiros encapotavam-se no alto; saputás polposos, à beira dos córregos, pendiam, num tom  berrante de cores escarlatemente retintas, de frutas sazonadas; e perfumes intensos de baunilha e  flores silvestres evolavam-se da mata densa, ao misterioso e secreto entreabrir das corolas  medrosas... Um grande ramo pendia às vezes, tomando o passo, emperolado de orvalhada; e o  alazão, acaçapando-se, metia a cabeça, atravessando-o a escorrer. E a floresta prosseguia,  interminável e profunda, no silêncio eterno da sua solidão.

E, no silêncio eterno da minha solidão, prosseguia, sob o pala, ruminando saudades...

Ah! viagens e passeios antigos, sob a chuva ou a canícula, nos pagos da minha terra!  Quão longe e distantes sois!

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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)    

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