sábado, 21 de setembro de 2013

Hugo de Carvalho Ramos: "Caçando Perdizes"

CAÇANDO PERDIZES

Volta e meia, o Guilherme, pousando sobre um tamborete o pires por onde sorvera o café, deu  um giro pela varanda, e disse ao Vicente:

– Compadre, já que tanto gaba o Belém, enquanto não chega a boquinha da noite para ir  escolher a minha espera, vou experimentar o cachorro aí pelos lados do Lambedor.

– Pois perdigueiro como este, estou ainda à percura.

– Êh! – E assoviou arremedando a perdiz, quando anoitece.

Lá embaixo da mesa, onde dormitava, o Belém fitava orelhas, e varreu com a cauda a  poeira do massapé.

E a comadre desandando:

– Vai mesmo, compadre. Criação no terreiro 'stá de gogo que é um castigo; o Vicente não  tem tempo para caçadas; só assim terei uma perna de galinha para ir debicando com farofa...

E logo, sem tomar fôlego:

– Não imagina como ando enfarada estes dias! Já me estava dando no goto o quitute...

O Vicente Peludo morava, e ainda mora, ali, naquela encruzilhada de Santa Leopoldina –  Vargem Alegre. Como bem diz o nome, tirando a nesga de terras lavradias ao pé do Mosquito –  campos e várzeas, num horizonte aberto, mui ao longe, à distância indefinida, rendilhados pelo  azul nostálgico dos contrafortes da serra Dourada. Pela estrada arenosa, escaldada e faiscante,  ao largo, o vaivém contínuo de carros e cargueiros, gemebundos ou arfantes, em demanda das  margens do Araguaia, ou vindos de Santa Rita com destino à capital.

Àquela hora, já declinava o sol para o lado da Barra. O compadre Guilherme viera da  cidade caçar naquelas bandas. Como tivesse o animal aparelhado no telheiro, mal apanhou a  caçadeira, já o Belém, a um silvo amigável, dera duas corridas pelo terreiro, e batia-lhe às  perneiras com a cauda jovial.

O Vicente viu-o desaparecer em direção à tapera do Antônio; mas não o viu voltar  naquela tarde.

Com certeza ficou na chapada, prendeu lá o cachorro e foi armar a sua espera de veado no  caminho da Barra, explicou à mulher.

De fato, ali pela volta das onze, levantada e descambando a lua, chega o Guilherme.  Trazia à garupa uma enfiada de perdizes; não o acompanhava, porém, o cachorro.

Fora até a chapada, matando pelo caminho quantas perdizes o cão levantava; na volta,  descuidando perto do Mosquito em escolher um pequizeiro onde armar a sua rede, o Belém  metera-se pelo mato, não mais aparecendo. Amarrara a besta num retiro; trepou para a espera,  supondo que o perdigueiro tivesse tomado o rumo de casa.

– Pois aqui não voltou; você botou fora o meu cachorro, compadre.

– Espera que ele há de aparecer; bicho de faro como aquele não toma sumiço assim,  compadre.

E como o luar estivesse claro como o dia, dispensou a hospedagem, e ia torando para a  cidade.

A noite toda o Vicente não dormiu. Volta e meia levantava, abria a porta, chegava ao  terreiro, a ver se aparecera o Belém. Apenas o luar, mui frígido e translúcido, ia rebrilhando  indefinidamente pelos campos, além.

Ao amiudar dos galos não se conteve; foi ao curral, encabrestou o redomão que ali estava  para acabar de amansar, arreou-o e meteu-se pelo trilho da chapada. Ia seguindo o roteiro que  fizera na véspera o compadre. De caminho, cortava pelos atalhos, a indagar em duas ou três  choças, raras, que lá havia ao fundo das restingas, se o animal fora por ali esbarrar.

Tomava de novo o roteiro. Não lhe bastavam as indicações que trazia. Sertanejo, seguia  passo a passo todas as marchas e contramarchas que fizera na véspera o Guilherme. Pode  mesmo, pelas penas deixadas, assinalar um por um os lugares onde tinham sido abatidas as  perdizes. Desistira de procurar aquém do Mosquito: no tijuco fresco da rampa, rastros da  montaria iam e vinham; os do Belém seguiam, mas não vinham.

Cruzou em todos os sentidos o Lambedor. Na manhã luminosa, engalanadas para a glória  do mês mariano, as aleluias e florinhas-de-maio iam pontilhando de ametista e prata o verde  ridente da várzea. Pios súbitos, estrídulos, explodiam às vezes, quebrando a monotonia dos  grilos nas touceiras de jaraguá.

Invadia-o a pouco e pouco uma ponta de desânimo. Deu uma volta de quarto de légua, foi  à casa do defunto Amâncio, outro morador naquelas redondezas.

– Não – por ali não tinha aparecido o cachorro.

O sol aquentava já, seriam onze horas da manhã e ele ali em jejum, atrás do Belém!

Descorçoado, tomou o rumo de casa. Então, na descida do Mosquito, esse ribeirão tão  farto de piaus e curumatãs, como se descuidasse a enrolar uma palha de cigarro, um tranco do  animal que ainda não perdera as suas tretas de redomão – por pouco o botava fora da sela. – Era  um toro de madeira atravessado no caminho.

Pelo menos, assim julgou à primeira vista. Mas logo, engatilhava a central e dois  formidáveis tiraços abalavam aquelas solidões. Mexeu-se o madeiro, pesadamente, aquietando  depois.

O Vicente apeou e chegou-se à sucuri. Era a maior que topava junto àquele rio, tão fértil  delas! Deu volta à estrada, torou para casa.

Depois do almoço, tornou ao lugar. Mediu-a de ponta a ponta, contando quarenta e oito  palmos, nem mais nem menos. Um grande nó no ventre desde logo lhe atraíra o olhar. Meteu-lhe  o facão, abriu de extremo a extremo a barriga: dentro, todo inteiro, enrodilhado e gosmento,  jazia o cão.

E a pele dessa sucuri, ainda há três meses viva lá no meu sertão adusto, tenho-a presente  agora sob os olhos, dando volta aos quatro ângulos do meu quarto de estudante...


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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917) 

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