sábado, 21 de setembro de 2013

Hugo de Carvalho Ramos: "À Beira do Pouso"

À BEIRA DO POUSO
A Mário de Alencar

Contavam casos. Histórias deslembradas do sertão, que aquela lua acinzentada e friorenta de  inverno, envolta em brumas, lá do céu triste e carregado, insuflava perfeita verossimilhança e  vida animada.

Pela maioria, contos lúgubres e sanguinolentos, eivados de superstições e terrores,  passados sob o clarão embaçado daquela mesma lua acinzentada e friorenta de inverno, no seio  aspérrimo das solidões goianas.

Acocorados à sertaneja sob a copa desfolhada do pouso – um jatobá gigantesco –  aquentavam fogo, a petiscar baforadas grossas dos cigarrões de palha, ouvidos atentos ao  narrador.

A cangalhada, vermelha à luz da fogueira e rebuçada em ligais, amontoava-se em forma  de toca ao pé da árvore, resguardando o carregamento, e, na necessidade, dado o mau tempo,  todo o pessoal. Uma neblina leve e hibernal, esgarçada e refeita aos raios mortos da lua,  embuçava ao fundo a campina, onde cincerros de tropa badalavam intermitentes.

E, sob aquele céu frio e austral de maio, estiolava-se ressequida a vegetação tenra e  rasteira dos campos goianos.

O arrieiro, mestiço traquejado e serviçal, na sua voz grossa e arrastada de cuiabano,  arrematava o final dum conto de lobisome.

O silêncio – pesado – restabelecera-se debaixo da impressão sinistra daquela narrativa; e  o Aleixo – um caburé truculento amigo da boa pinga e freqüentemente mudando de patrão pelo  seu gênio teimoso e arreliado, – puxando para si o cuité fumegante de congonha e chupitando  uma golada, começou então assim:

– Naquele tempo viajava eu escoteiro, no meu jaguané de fama, por estas estradas da  minha terra; isso, noitão cerrado e vésperas da Paixão. Manhãzinha, Deus servido, devia bater  em Santa Rita pra negócio de precisão e a lua só pela madrugada despontaria. Marchava  apressado, tendo a cortar todo um estirão de oito léguas bem puxadas para alcançar o arraial.  Vai senão, ali nas alturas do Bugre, ouço passos cadenciados à minha frente. Olhei, o lugar era  ensombrado, o caminho muito estreito e solapado não tinha desvio; e, como lhes dizia, não  havia luar. Assim na sombra, assemelhou-se-me a dois homens baixos, conduzindo qualquer  cousa, a modo de trouxa, num varão.

“– Naturalmente soldados em diligência para Santa Leopoldina –, calculei. Num claro de  mato, achegando o animal, vi perfeitamente: eram dois negros acurvados, num andar ora lento,  ora apressado, que levavam ao ombro uma rede de defunto. Cravei as esporas no meu bicho pra  ganhar a dianteira – que eu não arreceio um cabra de maus fígados, mas tenho uma ojeriza dos  diabos a tudo que me cheira defunto; e isso, desde aquela estopada onde o Policarpo viu que um  jacaré não sai à toa da bainha e que eu, apesar de simples camarada, não guardo desfeita para  depois. O bicho fiel certamente estranhou as rosetas, tanto que meteu num trote bruto de pôr  tripas pela boca afora do peão mais desabusado. Os pretos excomungados, sacolejando a rede,  começaram a trotar lá adiante.

“– Olá – gritei. – Param vocês aí com o defunto e abram-me passagem. – Os carregadores  nem pio, antes continuaram, arremedando, a correr duro, vergados sob o varão, cabisbaixos e  macambúzios. Achei esquisito. Joguei o jaguané a galope: galoparam também, ganhando  distância, a desaparecer no sombreado espesso das árvores. Qual, isso é ainda efeito da beijoca  que dei ali atrás ao frasco de cachaça, ia pensando. Noutro claro, porém, lá tornei a enxergar os  dois pretos condutores, arqueados e silenciosos debaixo da carga maldita. Iam depressa, tanto  como o meu punga. O carreiro apertava, aprofundando-se; não tinha por onde atalhar. Demais,  um travo de zanga subia-me à garganta.

“– Eu lhes amostrarei, canalhas; estão caçoando comigo, seus bêbados, pois esperam aí. –  Varei o meu bicho nas chilenas e ele disparou à toda, que o terreno era um seu tico movediço,  mas o animal, apesar de cansado, era de fiança.”

– E pegou-os?

– Qual o quê, seu Zé; os demônios abriram numa carreira de curupira, a fazer mais  estrépito que o casco do meu bicho! Assim andamos bom pedaço, o carreiro mais estreito e  solapado, o arvoredo mais fechado e carrancudo, o sítio mais escuro. Afinal, não ganhava nem  perdia, e o pingo a resfolegar já bambo. Sofreei a marcha. Os pretos, bufando alto debaixo da  carga, regularam logo a sua andadura pela minha. Pus o sendeiro a passo: eles, do mesmo modo,  pausados, em cadência, recomeçaram o movimento primitivo, a passo, desocupados.  Decididamente esquisito, mesmo muito esquisito. Parei o pingo. Os pretos, imitando, pararam.  Fiquei ali imóvel longo tempo, os olhos neles grudados, sem tino, enquanto que o minguante  principiava a tingir de açafrão a copa folhuda das árvores, e lentamente ia abaixando a sua luz  amarelada sobre o carreiro. Acoroçoado, reencetei a marcha; eles fizeram o mesmo, e assim  continuamos por mais de hora, eu calado, apertando nos dedos o cabo encerado do jacaré, eles  arcados, pausados, o fardo ao ombro, em cadência de soldados. De supetão – desfiava eu o  creio-em-deus-padre de trás para diante mais uma vez – o carreiro desembocou num campo  largo, coalhado de luar. A lua deu de chapa nos dous carregadores. Adivinham, se podem, o que  vi então, todo apalermado, assombrado mesmo.

– O cuca – aventurou tímido um.

– Qual! Uma vaca.

E perante o assombro descomedido daquelas feições rústicas e encardidas de sol, o  Aleixo arrematou com pachorra:

– Pois isso mesmo, os dois pretos arcados, eram seus quartos escuros e a rede de defunto,  a barriga malhada. Como o carreiro era fundo e apertado, ela não tivera por onde torcer; o  escuro, a solidão daqueles lugares e – pra tudo dizer – o medo, fizeram o resto.

A companhia respirava aliviada.

O plenilúnio acinzentado e friorento de inverno, envolto em brumas, lá do céu triste e  carregado, insuflava vida e animação às personagens fantasmagóricas daquelas histórias  primitivas.

Cincerros badalavam intermitentes e sonoros na campina ao fundo, onde a neblina  hibernal do sertão, esgarçada e refeita aos raios mortos da lua, abafava o horizonte.

Fumegando, a chocolateira fuliginosa e aromatizada de congonha passou de mão em mão,  transbordando os cuités.

A fogueira – em brasa – tremeluzia.

Um outro tomou a palavra.

Janeiro – 1912


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Nota:
Hugo de Carvalho Ramos: "Tropas e Boiadas" (1917)  

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