sábado, 14 de setembro de 2013

Florbela Espanca: "O Resto é Perfume"

 O RESTO É PERFUME

— Nesta época dolorosa da minha vida — prosseguiu a minha amiga —,  sabe você aonde vou buscar o mais benéfico consolo, o analgésico mais  seguro contra estas crises que me assaltam de vez em quando, de repente, no  meio de uma frase, de um riso, crises que me fazem lembrar um cobarde  assalto, pelas costas, numa praça iluminada e cheia de gente?

A minha amiga, no terraço da sua linda casa, uma romântica casa, meio  cottage, meio palacete, que dava para o mar, formulava-me esta estranha  pergunta à queima-roupa, naquele ar de maliciosa seriedade que lhe era  habitual e que lhe dava um tão estranho encanto.

Estávamos sós, naquela quente tarde de Agosto, face ao mar, abrigados do  vento, que naquele pedaço de costa é quase constante, pelo toldo às riscas  vermelhas e brancas que nos separavam do resto do mundo, comodamente  estendidos em cômodas cadeiras de vime; à mão, em cima de uma elegante  mesinha também de vime, um grande ramo de sécias, desgrenhadas e finas  como crisântemos, o Bouddha Vivant de Mor and com a faca de marfim  marcando a página interrompida, e a mancha verde, gritante, de um novelo de  lã: o seu trabalho, o seu inseparável trabalho de crochet. Bastas vezes me tinha  dado que pensar aquele seu eterno crochet, os velhos dedos sempre agitados  numa lida incessante. Verão e Inverno, os seus íntimos não se lembravam de a  ver um instante imóvel, estendida na sua cadeira, posição que, à primeira vista,  pareceria calhar como uma luva àquela estranha e dolorosa imaginativa. Quem  sabe? Talvez aquela incessante agitação dos dedos, que ela tinha brancos e  delgados, de miudinhas unhas de bebé, lhe ajudasse a compor melhor as  complicadas sinfonias das suas meditações, onde havia de tudo em afinado  desconcerto, se a frase pode arriscar-se... — gritos de revolta, dulcíssimos  gemidos, grotescas gargalhadas de escárnio.

Amodorrado pelo calor, e por esta indolência, por este desprendimento cheio  de beatitude, por esta incapacidade de esforço intelectual ou físico que nos  ataca às primeiras horas da tarde e depois de uma boa refeição, olhei para ela  sem responder.

— Às palavras de um doido — rematou ela, simplesmente.

Desconcertante e bizarra, com ela nunca a gente sabia aonde iria parar; as suas  premissas chegavam sempre a conclusões fantásticas; através dos seus  argumentos, os fatos chegavam-nos irreconhecíveis, tomavam as atitudes  mais ambíguas, nas contorções do seu espírito escarnecedor e singular. Nela,  parecia andar um Mark Twain de braço dado com um Edgar Poe.

Todos nós, que aqui estamos, conhecemos mulheres que em épocas dolorosas  da sua vida procuraram um consolo, um analgésico, como ela dizia, na  religião, esse maravilhoso unguento que faz sarar todas as chagas, no  cumprimento do dever, o mais rígido, no amor, no sacrifício mesmo pelos  seus ou pelos estranhos, na prática da caridade, na arte; mas uma mulher que  se agarre, como à única tábua de salvação que a pode fazer boiar à tona de  água, às palavras de um doido, qual de vocês conhece essa mulher? Pois bem,  conheci-a eu, e vou dizer-lhes o que ela me disse, o que lhe ouvi e que nunca  mais me esqueceu, naquelas primeiras horas de uma quente tarde de Agosto.
Pode ser que a algum de vocês faça bem... Tudo é possível.

* * *

— Conheci-o numa pequena vila, nessa linda província alentejana que tão  pouca gente conhece, onde toda a paisagem, em certas horas, toma ares  extáticos de iluminados, onde a alma das coisas parece falar através da  imobilidade das formas.

«Era um velho muito alto, muito limpo, sempre muito bem vestido, com uma  grande cabeleira branca ondulada, que ele tinha o costume de alisar de vez em  quando, com a mão, quando falava. Era de boa família, de origem fidalga,  dizia-se. O pai tinha aparecido ali, um belo dia, vindo não sei donde, e ali tinha  morrido anos depois. Eu não cheguei a conhecê-lo, é claro. Lembro-me  vagamente de um pormenor curioso acerca da sua vida: levantava-se ao  escurecer e deitava-se só às primeiras horas do dia; fazia toda a sua vida de  noite. Lia quase constantemente os poetas gregos e latinos; era muitíssimo  culto e não falava com ninguém. O filho, bizarro como ele, caíra com a idade,  a pouco e pouco, numa completa loucura; mas, muito calmo, muito doce,  muito bem educado, não incomodando ninguém, deixaram-no à vontade, e  ninguém o incomodava.

«Eu fiz dele o meu único confidente, a minha grande afeição; ele era ao  mesmo tempo o meu cão. o meu livro, a minha amiga íntima, o inseparável  companheiro dos meus longos passeios solitários pela planície.

«Caminhávamos horas a fio pelas estradas fora, calados, a olhar avidamente  tudo o que nos cercava. A minha família, principalmente o meu pai, não se  conformava com semelhante esquisitice, e a princípio lutou desesperadamente  contra mais aquele disparate, aquela tola mania de fazer de um doido o meu  maior amigo; mas, como já estava habituado às bizarrias do meu caráter e  como eu, segundo eles diziam, não fazia nada como a outra gente, acabaram   por me deixar em paz a mim e ao meu amigo doido. Nunca tive outro assim... e hoje, as suas palavras que eu evoco são, como já lhe disse, o meu mais  benéfico consolo, o meu analgésico mais seguro contra as crises que me  assaltam de vez em quando, no meio de uma frase ou de um riso.

«Parece-me, se fechar os olhos, que foi ontem a última vez que o vi. As nossas  conversas eram sempre um longo monólogo: ele falava, eu ouvia. Nunca li  nos livros frases mais belas, ideias mais tragicamente consoladoras, de uma  maior e mais elevada espiritualidade. A palavra dele era como a água: gotinha a  cair numa raiz abrasada, regato que vai segredando profecias às ervas do chão,  torrente impetuosa que tudo arrasta, que tudo leva à sua frente.

«A planície estendia-se até aos confins do horizonte, de cambiantes  inverossímeis. A estrada poeirenta, quase reta. Charnecas bravias, de um e  doutro lado. Aqui e ali, a rara mancha escura de uns torrões lavrados que mais  tarde fariam o grande sacrifício de, mortos à sede, darem pão. Sob a  serenidade austera da minha terra alentejana, lateja uma força hercúlea, força  que se revolve num espasmo, que quer criar e não pode. A tragédia daquele  que tem gritos lá dentro e se sente asfixiado dentro de uma cova lôbrega; a  amarga revolta de anjo caído, de quem tem dentro do peito um mundo e se  julga digno, como um deus, de o elevar nos braços, acima da vida, e não poder  e não ter forças para o erguer sequer! Ah, meu amigo! o gênio que, com o  grotesco vocabulário humano, pudesse fazer vibrar a nossa sensibilidade,  estorcer os nossos nervos de encontro à trágica e mentirosa insensibilidade da  minha dura terra alentejana! Nem Fialho, nem nenhum! Que mar alto de  desolação e de força possante a perder de vista... e o Sol a abrasar tudo,  incendiário sublime a deitar fogo a tudo! E quando a chuva cai!... O misto de  inefável êxtase e de sofredora humildade com que a mísera e amarga erva  rasteira recebe a água fresca do céu! Moisés no monte Sinai, recebendo as  palavras divinas...

«Outras vezes, íamos para o lado dos olivais, campos tão tristes, tão tristes,  que toda a atmosfera parece impregnada de tristeza; até a luz é triste. Oliveiras  salpicadas de cinza, sobre terras barrentas que parecem empapadas em sangue.  Não se vê um vulto humano... não se ouve uma voz... Tem-se a impressão de  se estar fora do mundo e em comunicação com ele, dentro da vida e fora dela,  no estranho e triunfal inebriamento de agitar perdidamente as asas no espaço  e no profundo desânimo de as sentir presas ainda! A terra é tão triste, tão  triste, que a gente até tinha pena de lhe pôr os pés em cima; nos nossos  passos, ao pisá-la, arrastávamos o remorso e a dor de quem um dia escarneceu  um pobre! As nossas mãos esboçavam sem querer o gesto de a levantar, de a  erguer devagarinho até à altura dos nossos lábios; sentíamos uma profunda e  dolorosa vergonha de a adivinharmos humilde e boa, pobrezinha a dar  misericordiosamente todo o bem que tem, a despojar-se de todas as suas   escassas galas de pobre envergonhado, inesgotavelmente, nas mãos abertas  dos ricos soberbos.

«Muitas vezes, confundíamos os arrastados crepúsculos de Verão com as  claras noites de lua cheia. Estávamos longe; vínhamos para casa noite fechada.  Na charneca, o luar inundava tudo, os rosmaninhos e os alecrins, as estevas e  as urzes, todas as moitas sequiosas, que o bebiam como água límpida que um  cântaro a transbordar entornasse lá do alto. Às vezes era tão branco, tão  imaterial, de uma tão pura religiosidade, que a planície alagada fazia lembrar  uma grande toalha de altar onde tivessem espalhado hóstias.

«Nos olivais era ainda mais lindo. O meu amigo doido sorria apaziguado. O  luar entrava sorrateiro, em bicos de pés, não fosse alguém pô-lo lá fora... E as  árvores, as tristes oliveiras de há pouco?!...

Ao passar pelo meio delas, dava vontade de lhes perguntar: “E os vossos  vestidinhos de burel cinzento? Que lhes fizeram, princesinhas de lenda?...  Onde está o teu vestido e o teu negro capuz, Peau d’Ane? E o teu,  Cendrillon?” Todas vestidas de prata, toucadas de diamantes, recamadas de  opalas, turquesas e safiras, calçadas de brocado, com os pés num tapete tecido  a fios de ouro semeado de rubis, são princesas, filhas de reis, belles au bois  dormant à espera do Príncipe Encantado.

«Quando estávamos cansados, ao cair da tarde, sentávamo-nos no tronco  carcomido de uma oliveira, nas pedras de um muro esboroado ou em  qualquer talude de estrada poeirenta. Ele estendia o braço para o horizonte  longínquo que se diluía nas sombras do crepúsculo, alisava a sua longa  cabeleira branca, e começava a falar. Eu, de mãos no regaço, imóvel, ouvia.

«Uma tarde, em Abril, tínhamo-nos sentado no muro de uma  propriedadezinha à beira da estrada, perto da minha casa. Lembro-me tão  bem! Parece-me ver desenhar-se na minha frente, no cimo daquelas ondas,  sempre as mesmas e sempre diferentes, o humilde décor: um muro, um lilás  todo florido e, a animar a cena, ele e eu.

«Naquele dia esteve sempre muito agitado, dir-se-ia que a fada Primavera não  se tinha esquecido de trazer também para ele o seu quinhão de seiva a  tumultuar que nos troncos velhos, como nos novos, quer subir e dar flores.  Apesar de há muito estar habituada à sua esquisita maneira de se expressar,  não entendi completamente o sentido das suas palavras, nessa tarde. Por  muito tempo, não consegui adivinhar a razão porque as trazia gravadas no  cérebro como misteriosos símbolos, palavras de encantamento e de magia a  que só depois penetrei o sentido. Primeiro, foi preciso sofrer e chorar. Tinha
de fazer delas, com o correr dos tempos, o meu estranho viático para as horas  dolorosas; tinha de encerrar dentro delas todo o meu sentido da vida. O que  durante anos inteiros procurara nas páginas dos livros, conseguira extrair de  ideias condutoras no estudo das mais variadas filosofias, o que adivinhara em  mim de misterioso e de grande, tudo o doido, no seu falar incoerente,  conseguiu meter dentro daquele dulcíssimo crepúsculo de Abril.

«O cenário, como vê, nada tinha de extraordinário: um muro, um lilás em flor,  o horizonte a esbater-se nas cinzas abrasadas do crepúsculo... Vocês, os  romancistas, precisam de muito mais... Pois bem! daquele muro, daquele lilás,  com o horizonte, opala a fundir-se num largo oceano de sombras, por pano  de fundo, fez o meu doido um grande tratado de Filosofia para uso das almas  simples e sofredoras; com aquele pouco, compôs ele os dogmas da minha  futura religião.

«“Vês? ” apontava ele para o horizonte longínquo. “Não, tu não podes ver!, à  tua compreensão só pode chegar a percepção dos objetos que os teus  misérrimos sentidos te apresentam e tal como eles te os apresentam. Lês isso  em qualquer cartapácio de Filosofia.

«O bom do Kant passou a vida a pregá-lo. O que os teus dedos tateiam são as  ilusões dos teus olhos e dos teus ouvidos. Árvores! Que são árvores?...  Pedras? Poeira? Que é isso? É o mundo!... E tu vês o mundo! Os homens  criaram o mundo! De uma árvore fizeram uma floresta, de uma pedra um  templo, deitaram-lhe por cima um pozinho de estrelas, e pronto... fizeram o  mundo! E não há árvores, não há pedras e não há florestas, nem há templos, e  as estrelas não existem. Não há nada, digo-te eu. Tu não sabes nada. Os  mortos é que sabem. Os vivos chamam-lhes sombras. Os vivos metem as  sombras dentro de um caixão, fecham-no à chave, pregam-no bem pregado,  soldam-no, afundam-no na terra, muito fundo, e a sombra lá vai... fica o resto.

São eles que por aí andam, são eles que tu sentes. Não há árvores, não há  pedras, não há nada: há mortos. Os mortos é que fazem a vida; dentro dos  túmulos não há nada. Eu queria agora dizer-te o que vejo, o que os mortos  veem, mas não posso. As palavras não vão além do que tu vês e ouves; as  palavras são túmulos: estão vazias. Olha”, e apontava as primeiras estrelas que  se acendiam na abóbada do céu, “aquilo são estrelas, dizem os homens... e  porque não há de ser o pó doirado que tombou de uma grande asa de  borboleta? Eu queria dizer-te agora o que é a vida dentro do mundo. Os  mortos sabem. Eu sei. Os mortos pousaram as pontas das suas miríades de  dedos sobre os meus olhos, enterraram-nos para dentro de mim, e mandaram- me ver... eu vi. Aparecem, de séculos a séculos, vivos que veem. Os homens  chamam-lhes santos, profetas, artistas, iniciadores. Os homens escrevem em  léguas e léguas de traços e borrões as suas histórias... e explicam-nos,  comentam-nos, decifram-nos! Oh, miséria, deixa-me rir!! Joana d’Arc...  Pascal... Savonarola... João Huss... Vinci... Oh, miséria! Tu vives, mas não  sabes a vida. Estes sabiam-na, mesmo com os olhos fechados, mas dentro da  vida. Os outros mortos também a sabem. Olha”, e, arrancando abruptamente  um cacho de lilás, deu-mo a cheirar, “é perfume! A vida é este cacho de lilás...  Mais nada... O resto é perfume...”
  
* * * 

— O resto é perfume... — repetiu lentamente a minha amiga, olhando o  mar que as primeiras velas sulcavam.  

E, mãos no regaço, vi-a pela primeira vez imóvel, esquecida de mim e de tudo.


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Nota:
Florbela Espanca: "As Máscaras do Destino" (1931)

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