O DOMINÓ
PRETO
Havia já
mais de oito anos que andava atrás dela. E só agora conseguira que ela se
resolvesse a ouvi-lo. Há tantos anos, santo Deus! Ainda ele estava moço na
mercearia da Rua dos Olivais, ainda nem
sonhava que lhe haviam de dar sociedade na casa, nem tinha amealhado os seis
contos de réis que tinha agora na Caixa
Geral de Depósitos, já gostava dela, já gostava de a ver passar, pisando
no seu passinho grácil e desenvolto a
calçada de pedras pontiagudas. Os gritinhos que ela dava quando punha o pé em falso, o pé de boneca calçado
de sapatinhos de verniz com saltos de palmo e meio! E quando entrava na loja! O cubículo escuro,
sujo, feio, era de repente um grande salão feérico todo cheio de luzes, deslumbrante de asseio,
bonito como nenhum. O pobre caixeirito, de mãos
deformadas pelas frieiras, de larga cara bonacheirona e ingênua,
ridículo no seu fato de cotim da mangas
curtas, de cabeleira encrespada e sobrancelhas hirsutas, ficava a olhar para
ela, esquecido do que lhe haviam pedido,
vendo apenas na sua frente a boca fresca e os olhos gaiatos da rapariguinha
risonha que, sem piedade, troçava dele constantemente. Mas que lindo riso o
dela! Muito aberto, muito sonoro, enchia
a casa de trilos de pássaros, mostrava-lhe os dentes todos muito sãos, muito brancos, e toda branca por
dentro, muito cor-de-rosa como a polpa carnuda e sumarenta dum morango acabado de colher numa manhã de
Primavera.
No banco da
avenida, sob a acácia já cheinha de folhas, noite escura, o Joaquim
entretinha-se a passar religiosamente as
contas do seu rosário de recordações dos longos anos que passara atrás dela, inutilmente, mendigando sem se cansar
um bocadinho de amor que matasse a fome e a sede ao seu corpo de adolescente casto que nunca se
atrevera a seguir uma mulher pelas ruas escusas, pelos cantos misteriosos, quando a cidade cúmplice
fecha os olhos e finge que dorme.
Sempre
gostara daquela, daquela só, e um dia – já lá iam dois anos! – enchera-se de
coragem e dissera-lho. A gargalhada que
ela lhe dera na cara! Tinha-a ainda nos ouvidos, aquela divertida e escarnecedora gargalhada que lhe fizera
chegar as lágrimas aos olhos.
Ele era um
pobre diabo, mas queria-a, queria-a como sabem querer os rústicos das suas montanhas, queria-a como todo o ardor dos
seus vinte anos, cheios de seiva como um chaparro novo, queria ganhá-la custasse o que
custasse, embora tivesse de andar de rastos atrás dela a vida inteira. Tinha tempo! E assim fez: trabalhou
sem descanso e sem desalento meses e meses, todos os dias do ano, quer de Inverno quer de Verão,
mal luzia o Sol no alto até noite fechada, sem domingos nem dias santos. Mal pago e mal alimentado,
mourejou e fez vontades, foi servo de toda a gente, com a tenaz ideia fixa encasquetada a martelo
no estúpido bestunto, sem querer saber de mais nada, não dando conta do que ia pelo mundo, do que
se passava para além do encardido balcão de pinho, aonde lhe ia correndo a mocidade, agrilhoado
ao trabalho como um escravo.
O patrão,
com o andar dos tempos deu finalmente por ele, observou-o, e um belo dia,
deitando contas ao lucro que podia tirar
duma bela ação, mandou-o ensinar a ler. À noite, depois da loja varrida e tudo
arrumado, que o patrão não se ensaiava para lhe pregar dois murros bem puxados,
o rapazito descia os dois degraus que fazia comunicar a lojeca com a úmida toca
onde dormia. Ah, se as paredes pudessem falar! Um coto de vela a arder sobre a
única cadeira de pau e, sentado na cama de tábuas, as mãos crispadas nos
cabelos rijos, cabelos de fome, a cabeça tonta, doido de sono, o pobre lá ia
decifrando as letras, soletrando, juntando as sílabas, estudando a lição para o
outro dia, à custa de esforços desesperados e duma força de vontade que nenhuma
força poderia vencer. Quando compreendia, a larga cara bonacheirona
iluminava-se-lhe num sorriso que, entre aquelas quatro paredes, onde as aranhas
teciam tranquilamente as suas teias de seda e prata fosca, era por si só um
belo milagre de amor! O manancial de águas claras que na planície vai matar
sedes e reverdecer os campos, jorra do seio das duras pedras das montanhas em
sítios agrestes, longe e alto!
Uma noite,
ao estudar a lição, deu com o nome dela: “Maria”. Soletrou-lhe as duas sílabas,
de olhos arregalados, boca aberta, num êxtase, e os grossos lábios,
subitamente, sem ele saber como, foram pousar-lhe no livro roto e cheio de
nódoas, sobre as sílabas mágicas, enquanto as lágrimas lhe saltavam dos olhos e
os soluços lhe enchiam o peito. Esteve mais de meia hora a soletrar-lhe o nome:
“Ma-ria”, a olhar para as letras, sinais cabalísticos que queriam dizer tudo o
que ele tinha para dizer, traços que faziam surgir, como varinhas de condão, um
mundo de coisas boas, de coisas que ele nem sabia porque eram tão lindas e tão
boas!
E assim
foram passando os anos. A pouco e pouco foi subindo, juntando dinheiro, à custa
de se privar de tudo, de economias insensatas, ia-se matando; mas conseguira
juntar os seis contos de réis, que tinha na Caixa, que eram bem dele, só dele,
e alcançar sociedade na casa, sociedade que também lhe dava um lucrozinho certo
que não era nada para desdenhar…
E o Joaquim
ria-se baixinho com um riso feliz, no seu banco da avenida, debaixo da acácia
já cheinha de folhas, onde os pardais dormiam muito encostadinhos uns aos
outros por causa do frio. Já tinha com que pôr a casa, um quarto ou quinto
andar numa casinha acabada de construir, numa rua sossegada e limpa, que ele
tinha já debaixo de o lho, ali para os lados do rio. E não ficava muito longe
da mercearia… poderia ir e vir todos os dias a pé, para poupar o dinheiro do
elétrico… Uma mobília de quarto, de guarda-vestidos com portas de espelho… um
aparador de pedra mármore… cadeiras de palhinha e um canapé para a sala… uma
casa de luxo sólido, de coisas boas, que ele tinha dinheiro e não se importava
de o gastar todo. Para a vida, lá se iria ganhando, e nunca haveria de faltar à
Maria: o casaco de pelúcia, o seu vestidinho de seda de vez em quando e os
sapatos de verniz para sair à rua… Nada! Que ele não a queria ver feita uma pobretona,
de xale pelas costas e lenço na cabeça. Havia de ser uma senhora, mais linda e
mais bem posta que algumas feitas à pressa que ele via por essas ruas, a fingir
que eram grande coisa… A sua Maria havia de ter tudo o que ela quisesse e, para
começo, já amanhã lhe iria comprar aqueles brincos compridos de pedras azuis
que tinha visto na ourivesaria ao lado e que tão bem deviam ficar-lhe, a
baloiçarem-se na pontinha rosada da orelha, naquele gesto que ela fazia com
tanta graça, a dizer que “não” e “não”, a marota! Sempre, a todos os seus
rogos, a todas as suas promessas, a tudo o que fizera para a captar, para a
seduzir de há oito anos até… até ontem, Ah, ontem!
E o Joaquim
via na noite escura brilhos de lua cheia, escancarava a boca até às orelhas num
largo riso silencioso. Ontem!... E o Joaquim fechava os olhos esverdeados que
luziam como os de um gato bravo no ardor do desejo, no triunfo de a sentir
finalmente conquistada, finalmente muito sua, depois de tantos torvos anos de
miséria e de angústia, depois de por ela ter passado fome e frio, depois de a
ter querido como sabem querer as almas simples e rudes, na persistência da
ideia fixa, invencível e tenaz, encaixada no cérebro branco como silva
agarradiça de moita brava.
Ontem!... E
o Joaquim via a rua mal iluminada do bairro pobre, a gente que passava
afadigada, carregada de embrulhos, gente do povo, gente humilde de volta a casa
depois de um dia de fadiga, os elétricos cheios, num grande ruído de ferragens,
tim, tim.. tim, tim... Ladeira abaixo; via-a a ela, onde luzia o ouro duma
medalhinha de Nossa Senhora da Conceição; ouvia-lhe o riso garoto cheio de
reticências, evocador de carícias proibidas e desejadas, o riso que às vezes
lhe fazia vir à ideia coisas em que seria melhor não pensar.
Pobre rapariga!
Ia agora fazer caso das coisas que lhe diziam! Não tinha sido nem uma nem duas
vezes que lhe tinham dito mal dela; as referências que lhe faziam não eram nada
boas, lá isso não! Que não era séria, que não tinha mesmo juizinho nenhum, que
o não queria a ele, mas que talvez quisesse outros, que andava metida com gente
de teatro, que mais isto e mais aquilo, enfim, um ror de coisas que às vezes o
entristeciam. Nada tinham poupado para lhe fazerem perder aquela cisma, para o
arredarem daquele fado em que o viam andar há anos, mas tudo tinha sido em vão.
Podia lá acreditar uma coisa daquelas! Mentiras! Más palavras de má gente!
Invejas!... E o Joaquim cerrava os punhos num gesto de rancor. A sua vontade
era esganar toda aquela gente que dizia mal dela, cortar-lhes a língua aos
bocados como a blasfemos sem honra nem vergonha que se atreviam a pôr a boca
numa órfã honesta e trabalhadora. Costurava para o teatro, era verdade, e
então? É por acaso algum crime trabalhar, ganhar a sua vida, a triste côdea e o
direito duma telha que a abrigasse do frio e da chuva?! Gente mais ruim!...
Mas agora,
no banco da avenida, deitando para trás das costas os maus pensamentos, o
Joaquim era feliz, era amado, estava à espera dela, que tinha prometido vir:
“Às dez horas lá estarei, no primeiro banco à direita de quem sobe, um pouco
acima do Avenida, lá estarei, espere por mim, sem falta.”
Logo ao
anoitecer fora para lá, não fosse a ela dar-lhe na cabeça ir mais cedo ou ele
ter ouvido mal. Talvez ela tivesse dito às oito horas, já não se lembrava bem,
Ele estava como doido! Não era admiração nenhuma ter trocado as horas, ter-se
enganado. Ah, ontem!... Sabia ele lá bem de que freguesia era, ao ouvir-lhe
dizer, pela primeira vez na sua vida, que sim, que iria falar com ele, combinarem
a sua vida, trocarem as suas promessas, falarem de amor. De amor!...
Numa
tremura, como se estivesse com uma forte sezão, tateou o banco onde ela, dali a
pouco, se sentaria ao lado dele, mãos nas mãos, olhos nos olhos. A sua Maria!
Os pensamentos do seu cérebro zumbiam como abelhas ao sol; não podia seguir o
fio de nenhuma ideia; era como se tivesse dentro da cabeça um novelo de fio de
ouro, emaranhado, num torvelinho, num rodopio, enrolando-se e desenrolando-se,
bordando vertiginosamente visões de sonho, demasiado belas, demasiado douradas
para que os seus pobres olhos de simples as pudessem ver sem ficar
deslumbrados. Pobre morcego de olhos piscos no resplendor dum meio-dia a arder
em sol!
Mas já
deviam ser horas. É verdade, que horas seriam? Esteve para ali amodorrado, a
falar sozinho, sem prestar atenção a coisa alguma, em ricos de ela passar e não
a ver. Tateou no bolso do colete o grande relógio de prata. Ao puxar por ele,
para ver as horas, as mãos enrodilharam-se-lhe no dominó preto que vestia.
Sorriu, satisfeito. Mais um capricho do demônio da rapariga, que era levadinha
da breca! De que ela se havia de lembrar? Como era Terça-Feira Gorda...
“Leve um
dominó preto, com um laço azul no ombro, para o conhecer. Havemos de nos
divertir muito!” E ele fizera-lhe a vontade, pois é claro! Mirou-se
complacentemente de alto a baixo: o dominó de setineta preta que lhe chegava
quase aos pés, comprido como sotaina de clérigo, o farfalhudo laço de seda azul
sobre o ombro... Tal qual ela havia dito...
O Joaquim
ria, mas, ao ver as horas, o sorriso gelou-se-lhe repentinamente nos lábios.
Teve um sobressalto como de quem acorda com um encontrão. Dez horas e meia! Que
estaria ela a fazer que não chegava? Já teria passado? Enquanto estivera para
ali a cismar, era capaz de ter passado por ele sem ter dado por isso. Murmurou
aflito: valha-me Deus! Levantou-se, lançou em torno um olhar esgazeado. Na
avenida, a fila ininterrupta dos autos continuava a desenrolar-se. À porta do
Avenida, estacionava ainda um grupo palrador; gente corria à sua vida, aos seus
prazeres, ao seu destino; duas mulheres passaram por ele numa grande algazarra,
rindo muito, fazendo grandes gestos. Pensativo, contornou o maciço de flores
vagarosamente, deu mais uns passos para cima, mas, lembrando-se de repente de
que ela podia chegar e ir-se embora sem o ver, voltou a correr para o banco.
Mas, afinal,
que tolice estar assim a afligir-se por uma demora de meia hora! A rapariga era
séria, que diabo Não ia agora duvidar dela, da sua boa fé! O dito, dito. Era
ter paciência! Isto de mulheres, nunca estão prontas a horas, é mais um
alfinete para aqui, mais uma besuntadela para acolá, mais um laço, mais uma
fita... E para largarem o espelho é o cabo dos trabalhos!... E, à doce visão da
sua Maria a enfeitar-se para ele, a ver-se ao espelho para lhe parecer bonita a
ele, o coração dilatou-se lhe num suspiro de consolo, e um sorriso radioso
entreabriu-lhe novamente os lábios que o sofrimento contraíra.
Agitou-se no
banco, envolveu-se melhor no dominó, que a noite ia-se pondo fria, e resolveu
esperar com resignação. Passou, porém, uma hora, duas, e ela sem aparecer... A
inquietação mordeu-lhe novamente a alma... Porque não viria? Onde estaria
àquelas horas da noite?...
Continuavam
a passar autos, continuava a passar gente, e ela nada! Nem sombras dela
sequer!... Ele bem olhava para todos os lados, bem perscrutava, de olhos muito
abertos, as trevas lá no fundo, por onde ela havia de vir. Nada!...
As luzes do
Avenida cegavam-no, fechava os olhos para as não ver. A inquietação, a
angústia, a mortal aflição dos que esperam sem esperança corroíam-no lá por
dentro como chumbo derretido. E o pobre, no meio da multidão folgazã duma noite
de Entrudo, tremia como se estivesse num deserto sem vivalma, sem gota de água
ou folha de palmeira povoando a imensidade desolada e tétrica, até aos confins
do horizonte, até ao fim do mundo! O polícia de giro, adivinhando do que se
tratava, deu uma volta em redor do banco e seguiu, sem lhe dirigir a palavra.
Um perdigueiro novo, preto como azeviche, veio rebolar-se na relva a dois
passos dele, dando latidos de alegria por se ver solto. Filho-família com
tinetas de boémio conseguiu, com as suas cabriolas, arrancá-lo por um instante
aos seus lancinantes pensamentos. Estendeu a mão para o acariciar, mas o
cãozito, esquivo e desconfiado, fugiu-lhe e perdeu-se nas pesadas sombras duma
rua ao lado.
Que horas
seriam?... Viu outra vez o relógio: três horas! Ela já não vinha! Era
impossível!... Que estava ele ali a fazer naquele maldito banco, sozinho?...
Num supremo esforço de toda a sua vontade, retesou os músculos, levantou-se. Um
homem que ia a passar recuou assustado, ao ver de súbito na sua frente aquele
fantasma negro; depois de passar, olhou ainda para trás, curioso. O polícia de serviço,
que já não era o mesmo, perguntou-lhe desabridamente o que estava ali a fazer,
há que tempos, naquele banco. Num humilde sorriso, que mais parecia um esgar de
choro, respondeu-lhe, esforçando-se por dar ao seu todo um ar pândego, que
estava à espera duma rapariga para irem cear, para festejarem a Terça-Feira
Gorda... O polícia, satisfeito com a explicação, piscou o olho, indulgente, e
seguiu à sua vida. Ele tornou a sentar-se. Podia ser, podia muito bem ser que
ela viesse ainda. Ainda não era tarde! Podia ter adoecido... Mas a estes
enganos com que pretendia iludir-se, o pobre coração, que era como uma chaga em
sangue dentro do seu peito, revoltava-se num sobressalto das suas últimas energias,
numa náusea de nojo perante a perfídia imerecida. Ah, Maria, Maria!
Era então
verdade todo o mal que diziam dela, todo o mal que lhe tinham dito! Sem
vergonha, sem juízo, sem consciência,
passava a vida a desgraçar homens, a desgraçada! Mas então a sua casinha, a sua
casinha nova na rua limpa e sossegada, as suas economias, todos os seus sonhos,
toda a sua vida?! Que seria feito
daquilo tudo, santo deus?! Ah, a mentira, a ilusão de todos esses miseráveis
anos que tinham passado, o escárnio de engano que tinha sido o ar que
respirara, o pão que comera a viver para ela, a trabalhar para ela, a sofrer
por ela! Não a teria nunca, nunca! Não lhe saberia nunca o gosto à boca, àquela
boca de tentação, vermelha e húmida, como um cravo a abrir!
Soluços
violentos faziam-lhe estalar o peito, a emoção apertava-lhe a garganta em
tenazes de ferro, caíam-lhe lágrimas em fio pela cara abaixo. Na sua grotesca
humildade era um espantalho desprezível. Mascarado, ridículo, lavado em
lágrimas, era mais infeliz que as pedras e dava vontade de rir!
Quatro
horas! O riso dela, rio cheio de reticências, riso canalha e escarninho,
fustigou-o como uma chicotada na cabeça, ao evocá-lo. Tinha feito pouco dele!
Nunca fizera tensões de vir! Onde estaria ela?... Ah, Maria, Maria!...
Num arranco,
apalpou no bolso das calças, com a mão crispada, o canivete que trazia sempre;
de olhos fechados, a boca torcida num ricto odioso, abriu-o e, num gesto de
doido, enterrou fundo no pulso a estreita lâmina afiada. O sangue jorrou como
um repuxo e salpicou-lhe os dedos. Sem pensamentos, a cabeça a fugir-lhe,
tonto, desvairado, soltou um grito rouco, abafado como um rugido de fera
ferida, dobrou-se sobre si mesmo como um fantoche e, de olhos muito abertos,
ficou-se a contemplar, num ar pasmado, o sangue a correr-lhe pela mão, em
grossos traços negros até ao chão.
Para as
bandas do oriente o céu tomava uns vagos tons de nácar. O perdigueiro boêmio,
cansado de folgar, veio a passos lentos para ele, cheio de gravidade,
desconfiado, farejando de longe o sangue. Os pardais, aconchegados na acácia
que a Primavera enchera já de folhas tenras, começavam a mexer-se e a pipiar
docemente.
O Joaquim
quis levantar-se, mas não pôde, quis abrir os olhos, não teve forças. Um grande
bem-estar invadia-lhe o corpo todo, um estranho entorpecimento tornava-lhe as
pernas e os braços moles como trapos. A cabeça pendeu-lhe paras as costas do
banco. O sangue continuava a correr pelo braço, pela sotaina negra, num ténue
fiozinho tépido.
De repente,
aos ouvidos do moribundo chegou vagamente, como num sonho, um ruído de passos.
Fez um grande esforço para se endireitar, para pensar: Seria ela?... Os passos
aproximavam-se... Nas primeiras claridades ainda indecisas da madrugada
adivinhou-se um grupo de homens e mulheres vestidos de dominós pretos. Vinham
conversando e rindo animadamente, de volta de um baile, talvez...
Ao passar
por ele, uma das mulheres exclamou:
- Olha
aquele no banco, parece um faz-tudo.
- Está
bêbado – disse a outra.
E uma
gargalhada estridente acordou a manhã como um gorjeio de pássaro. Ao ouvir
aquele riso que se afastava, o agonizante, no seu banco, estremeceu. Num
medonho esforço conseguiu desembaraçar-se da mortalha que o envolvia já,
conseguiu expulsar o fantasma da morte que rondava perto e pôde mexer os
braços, abrir os olhos. Ele bem sabia que ela havia de vir, ele bem sabia!...
O riso
juvenil extinguia-se na sombra, em notas de clarim... O grupo afastava-se,
sumia-se ao longe...
O moribundo
tornou a deixar cair os braços, tornou a fechar os olhos e ficou-se muito
rígido, muito estendido no seu banco, com um sorriso nos lábios, iludido e
contente...
O céu num
pálido azul-esverdeado, acentuava os tons de madrepérola como uma grande concha
aberta, dourava-se levemente na orla... Uma andorinha, a primeira, passou veloz
como uma seta, tente à cara dele, com um gritinho agudo de alegria...
Despontava a
madrugada.
---
Nota:
Florbela Espanca: "Dominó Preto" (1982)
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