quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Ezequiel Freire: "Pedro Gobá"

PEDRO GOBÁ

Maio, nas fazendas , é um mês de azáfama.

Colheram-se as roças; empaiolou-se o mantimento. Topetadas até as  cumieiras, garantem as tulhas um ano de fartura. Malhou-se feijão; bateu-se o arroz;  quebrou-se o milho; arrancaram-se as túberas de toda a casta. Vêm chegando do  mato-dentro as derradeiras carradas. Chiam desesperadamente os grandes carros  circundados por alta esteira de taquara entrançada que boja com a pressão da  carga. Pausadamente, entra pelo terreiro a longa fila de bois, cangados aos pares,  parelhos no pêlo e no porte. Os da guia, retacos, dorso recurvo, pescoço alongado,  focinho abeirando a terra, esticam as tiradeiras, vergando os canzis, ao esforço da  tração. Corpulentos, possantes, pampas de amarelo e branco, cabeça ao ar,  entrechocando as armações luzidias, marcham pesadamente os do couce, em  passo processional e atitude de resistência, escorando, no cangote pelado pelo  diuturno atrito da canga, o peso enorme da carrada.

De pé sobre o cabeçalho, seguro por uma das mãos a um fueiro, com a outra,  brande o carreiro alentado e retinto uma comprida aguilhada, em cuja extremidade  chocalha entre argolas a roseta de ferro, de puas mais temíveis ao couro bovino do  que o ferrão da motuca.

Eia, Lavrado! Fasta, Barroso! Carrega, Damasco!

E, obediente ao comando, a destra boiada contorna a linha das senzalas,  marcando o lento passo ao monótono chiar do carro.

Por todo o largo terreiro uma grande alacridade barulha entre a criação  doméstica, ao desabar da carga, à beira do paiol. Acodem avoando as aves: grasnam  os palmípedes, gritam as galinholas, grugulam os perus; enquanto teimosamente  grunhem a leitoada miúda, torvelinhante em derredor do monte, faiscando por entre o  milho os tenros mogangas alaranjados tão doces ao dente do bácoro guloso.

De bodoque em punho um rio-branco traquinas, de cor de braúna, mantém o  respeito entre a bicharia ruidosa, arredando a pelotadas certeiras os insofridos e os  brigões.

Toda a fazenda ostenta um aspecto de abundância e fartura. O mantimento  anda a rodo. Cavalos de estimação, pêlo luzidio, garupa redonda, relincham  impacientes no cercado. Nédia e forte aguarda a boiada o rude labor dos meses da  colheita.

Tudo está pronto para o início da safra. Os cafezais prometem. O ano  passado fora de falha; neste a carga é de vergar.

De ponta a ponta do terreiro, indo e vindo, abstraidamente, o fazendeiro  calcula : — “20 contos, pelo menos, líquidos, sejam para reformar a minha gente, 12  peças de lei, molecotes de 15 a 25 anos, na flor da idade, cerne puro. Mais duas  safras desta, e mando ao diabo a hipoteca e o Banco”.

Entrementes, na alpendrada das senzalas, a um canto, os taquareiros se  ativam; e ao longo dos balaústres, em rumas simétricas, se alinham as sururucas, os  balaios de alqueires, as peneiras rasas de abanar.

No cafezal:

Está limpa e ciscada a terra para receber as bagas que transbordarem das  peneiras com a pressurosa apanhação... Porque em principio de colheita a tarefa é  alta e o Maurício feitor aperta o serviço, a estralos de relho sobre o lombo nu da  negrada, que escorre em suor, encrostado de poeira, alternadamente mordido, — de  manhã, pelo frio orvalho que esborrifa das árvores, — alto dia pela soalheira que  mordica a pele como a dentada cáustica da formiga-monjolo.

Os cafeeiros, vermelhos de frutos, deixam vergarem-se os galhos flexíveis. É  uma carga enorme!

— “Desta vez tiro o pé do lodo”, continua meditando o fazendeiro, indo e  vindo, abstraído, inteiramente alheio àquela grande alacridade que em derredor  barulha por todo o vasto terreiro entre a criação doméstica...

***

Domingo, ao entardecer, o sino da fazenda tocou à forma geral.

Vieram depressa os moços, trotando; depois as negras, com as crias novas  ao colo, arrastando pela mão um ou dois ingênuos seminus e magritos; por último,  com trôpego passo, os sexagenários, alquebrados veteranos do eito, perrengada  inválida e inútil.

Salva! Manda o feitor.

Vaássunscristo! Bradam 50 míseros negros, num clamor uníssono, vibrante e  merencório, como uma imprecação à surda justiça de Deus, tantas vezes neste triste  ermo bradada, sem que ninguém a exalce; nem tu, duro egoísmo do senhor de  escravos; nem tu, meigo coração de esposa; nem vós, inconscientes e insensíveis  ainda crianças que ides crescendo no espetáculo e nos exemplos desta dolorosa  infâmia, que veio de vossos pais e que haveis de legar a vossos filhos!... Ninguém,  ninguém te exalça, melancólico brado de angústia; e tu não irás mais alto nem mais  longe do que vão o mugido dos bois e o ladrar dos cães; e te perderás, voz animal  que tu és, entre as outra vozes da animalidade que te rodeia, no ar morto e sem  ecos da Fazenda!

Vaássunscristo!...

Em seguida, faz-se a distribuição anual da roupa: dois parelhos de algodão,  japona de baeta, coberta de lã grosseira; porque o dono desta Fazenda é generoso  ... Outro fora, e dar-te-ia, pobre pária, para cobrir-te a nudez lutulenta — de manhã,

o frio nevoeiro cortante dos eitos — alto dia, o sol que te mordiça a pele como a  penugem cáustica da urtiga.

No dia seguinte tinha de dar-se princípio à colheita.

Para que a solenidade fosse completa distribuiu-se pelos negros aguardente  e fumo, indo o Maurício com a canequinha de lata, ao longo da fila, dando a cada  qual um gole, que o negro sorvia com a beatitude de um padre emborcando o cálice  consagrado.

“Agora, disse o Fazendeiro, indicando com o cabo do relho a melhor peça da  fila: amanhã começa a apanhação; Gobá é o tarefeiro. No cafezal novo a tarefa, 10  alqueires. Cada alqueire que passar dos dez, — duzentos réis; cada alqueire que  faltar, — uma dúzia de couro. Ouviram ?”

— “Si siô!” Responde o eito num só grito com o automatismo dos entes em  cujas almas a diuturnidade da escravidão sob o regime cru das senzalas obliterou a  pouco e pouco, e de todo, o sentimento da personalidade.

Vergonhosamente, nesta pátria aviltada, a promiscuidade é a lei capital que  regula as relações do amor entre a escravatura. Raro fazendeiro — ainda hoje! —  permite o casamento religioso aos seus negros. Como em certas hipóteses o moderno  direto pátrio concede vantagens manumissórias aos cônjuges escravos, o fazendeiro,  receoso dos efeitos, obsta à aparição da causa impedindo o sacramento, que —  demais — ele considera como um luxo de dignidade supérfluo para a honra do preto.

Todavia, pois que é conveniente no próprio interesse da disciplina das  senzalas, aparentar alguma moralidade, os nossos grandes proprietários rurais,  alguns deles portadores de títulos de nobreza consentem (quando pessoalmente  não promovem) o concubinato entre a escravatura.

Alguns levam a solicitude ao excesso de eles próprios designarem os  nubentes e sacramentarem o conúbio, com a tranquila consciência de quem exerce  dentro do seu latifúndio uma legítima função senhorial; outros deixam aos próprios  interessados os cuidados da eleição.

Estes curiosos casamentos, nota simultaneamente cômica e torpe dos nossos  costumes agrícolas, dão-se com a maior freqüência na época da colheita do café; e  são, principalmente com referência às mulheres, determinados mais por um cálculo  interesseiro do trabalho do que pelo intuito genésico ou pelos impulsos naturais da  simpatia.

O que importa para interesse da Fazenda é “aparelhar-se a gente”, formando  de um negro diligente e destro com uma crioula morosa e inábil — uma entidade  mista, espécie de trabalhador andrógino cujos constituintes perfeitamente se  equilibrem para o exercício desta suprema função agrícola — dar a tarefa marcada.

Fazendeiros há, de tanta sagacidade no arranjo destas delicadas equações  da aritmética rural, que, possuindo no eito, entre peças de lei (do preço de 2 a 3  contos) e velhos perrengues (herdados da fazenda paterna) apanhadores que tiram  por dia até 16 alqueires nos cafezais carregados, quando outros nem à força de  relho chegam a atingir 3 ou 4 balaios; — entretanto, por meio da referida  organização conjugal sabiamente exploradas, conseguem obter o equilíbrio do eito,  do que resultam inapreciáveis vantagens.

Bem hajas, prole maldita de Cham, que nos libertas, a nós que no cimo do  Ararat soubemos pela sisudez dos nossos avós bíblicos conter o riso ante a  descompostura vínica do papai Noé; bem hajas, prole bendita, que amassa o nosso  pão com o suor do rosto.

***

Tecla é a mulata mais bonita da fazenda. Sob os seus precoces treze anos  borbulha o ardente sangue mestiço, inflando-lhes as veias que serpenteiam túmidas  debaixo da pele acobreada, pubesceste, de tons quentes como os do gerivá,  verdoengo. — “Flor de cafeeiro”, deve ser colhida pelo melhor apanhador de todo o eito.

Pedro Gobá, de Olinda, veio num comboio escolhido a dedo, de gente de  primeira ordem. Moço atlético, retinto, forte e dócil, é a melhor peça dentre toda a  escravatura. Para tocar uma enxada, cantando uma cantilena triste, morro acima,  num eito de mato bravo, ninguém como ele!

No manejo da foice, à roçada de um guaixumal de pasto velho, nem o Peroba  o acompanha: e, entretanto era Peroba o melhor crioulo da redondeza, antes de  aparecer o Gobá.

Naquele dia inicial da colheita, Tecla — a flor do cafeeiro, bonita e indolente  na exuberante precocidade dos seus treze anos, foi escolhida por Gobá, o tarefeiro,  rei da negrada.

Casou-os o Balbino, velho africano feiticeiro e manhoso, puxador do Terço,  que exercia na fazenda um arremedo de funções sacerdotais.

Era ele quem paramentado com uma sobrepeliz por cima de uma batina de  seda — feita de um dominó carnavalesco que lhe dera o senhor moço estudante em  São Paulo — casava os parceiros, todos os anos véspera da colheita, no oratório da  Fazenda, perante um Cristo envergonhado da sua impotência para aliviar a miséria  da raça negra maldita, condenada pelo Padre Eterno da legenda bíblica a  eternamente trabalhar em benefício nosso, dos que temos pais fazendeiros e  contamos por avós históricos — Sem e Jafet.

Tecla, confiada no esforço dedicado do marido, acompanhava-o entre os  arruados dos cafeeiros, toda atenta a resguardar dos galhos secos o seu vestido de  chita, por que se não rasgasse; e esquecida da tarefa, ia cantarolando, eito acima, a  mesma toada triste da cantiga do marido.

Gobá excedia-se de diligência para colher a tarefa sua e da mulher.

Ao largar o serviço à noitinha, contou às chapas que o feitor lhe dera a cada  balaio de café levado ao monte: eram 15. Depois contou as da Tecla: eram 3. Faltavam  duas para inteirar a tarefa da companheira: e o senhor bem lhes havia avisado:

“O que faltar para 10 , uma dúzia de relho por alqueire! ...”

À noite, na forma, recebiam-se as chapas da tarefa. Dois moleques, nas  extremidades da fila , suspendiam ao ar tachos de taquara-seca em labaredas.

A negrura daquela mísera gente, ao clarão do fogo, mais negra ainda se  tornava Cabisbaixos, mudos, iam entregando os discosinhos de Flandres, à  proporção que o Maurício os tomava, passando-os depois, para verificação, ao feitor  do terreiro. Sob o alpendre da casa, a família dos brancos assistia curiosa contagem:  João Cassange, 10. Pedro Crioulo, 12. Nazário, 11.Tecla, 8.

E o Maurício, feitor prático , tomando o seu grande relho de couro trançado ,  intimou: Tecla fora de forma.

Era o primeiro castigo por falta de tarefa, crime imperdoável na alta justiça  dos fazendeiros.

Tremendo, a mulata, “flor de cafeeiro”, mimosa no abrolhar dos seus treze  anos, saiu para frente da fila, quedou-se imóvel, erguendo os braços para que o relho  vibrado a dois pulsos pudesse enlaçar-lhe num cíngulo de dor o torso flexível e  esbelto de mestiça nova. Mas antes que a primeira relhada caísse sobre a carne  trêmula daquela criança apenas revestida no busto pelo fino morim da sua camisa de  noivado, Pedro Gobá interpõe-se, e se ajoelha. — Sinhô! Murmura comovido, com as  mãos postas em súplica, voltado para a família dos brancos o rosto sempre risonho,  agora crispado pelas contrações da angústia. Sinhô! Repete mais trêmulo ainda.

Que é lá, negro? Brada o fazendeiro irado ante aquele ato de indisciplina.  Sinhô, eu quero apanhar por minha mulher!

Ah! Negro você conta histórias!...

***

Mas antes que ninguém tivesse tempo de mover-se, dominados todos pela  surpresa daquela cena, Gobá, o Pernambucano de raça, altivo e nobre no íntimo da  sua alma admirável, debalde abafada desde o berço pela dominação dos senhores;  Gobá, a flor da escravatura, manso e bom, subitamente transformado em homem pelo  irresistível impulso da nobreza inata, arranca da faca e crava-a no coração da mulher.


Depois, enquanto ela tomba inanimada, ele, placidamente, fitando com um ar  de asco a família atônita dos brancos, placidamente crava a faca ainda rubra e  quente no seu próprio coração.

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Nota:
Ezequiel Freire: "Pedro Gobá" (1887)

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