PEDRO GOBÁ
Maio, nas fazendas , é um mês de azáfama.
Colheram-se as roças;
empaiolou-se o mantimento. Topetadas até as
cumieiras, garantem as tulhas um ano de fartura. Malhou-se feijão;
bateu-se o arroz; quebrou-se o milho;
arrancaram-se as túberas de toda a casta. Vêm chegando do mato-dentro as derradeiras carradas. Chiam
desesperadamente os grandes carros
circundados por alta esteira de taquara entrançada que boja com a
pressão da carga. Pausadamente, entra
pelo terreiro a longa fila de bois, cangados aos pares, parelhos no pêlo e no porte. Os da guia,
retacos, dorso recurvo, pescoço alongado,
focinho abeirando a terra, esticam as tiradeiras, vergando os canzis, ao
esforço da tração. Corpulentos,
possantes, pampas de amarelo e branco, cabeça ao ar, entrechocando as armações luzidias, marcham
pesadamente os do couce, em passo
processional e atitude de resistência, escorando, no cangote pelado pelo diuturno atrito da canga, o peso enorme da
carrada.
De pé sobre o cabeçalho, seguro
por uma das mãos a um fueiro, com a outra,
brande o carreiro alentado e retinto uma comprida aguilhada, em cuja
extremidade chocalha entre argolas a
roseta de ferro, de puas mais temíveis ao couro bovino do que o ferrão da motuca.
Eia, Lavrado! Fasta, Barroso!
Carrega, Damasco!
E, obediente ao comando, a destra
boiada contorna a linha das senzalas,
marcando o lento passo ao monótono chiar do carro.
Por todo o largo terreiro uma
grande alacridade barulha entre a criação
doméstica, ao desabar da carga, à beira do paiol. Acodem avoando as
aves: grasnam os palmípedes, gritam as
galinholas, grugulam os perus; enquanto teimosamente grunhem a leitoada miúda, torvelinhante em
derredor do monte, faiscando por entre o
milho os tenros mogangas alaranjados tão doces ao dente do bácoro
guloso.
De bodoque em punho um rio-branco
traquinas, de cor de braúna, mantém o
respeito entre a bicharia ruidosa, arredando a pelotadas certeiras os
insofridos e os brigões.
Toda a fazenda ostenta um aspecto
de abundância e fartura. O mantimento
anda a rodo. Cavalos de estimação, pêlo luzidio, garupa redonda,
relincham impacientes no cercado. Nédia
e forte aguarda a boiada o rude labor dos meses da colheita.
Tudo está pronto para o início da
safra. Os cafezais prometem. O ano
passado fora de falha; neste a carga é de vergar.
De ponta a ponta do terreiro,
indo e vindo, abstraidamente, o fazendeiro
calcula : — “20 contos, pelo menos, líquidos, sejam para reformar a
minha gente, 12 peças de lei, molecotes
de 15 a
25 anos, na flor da idade, cerne puro. Mais duas safras desta, e mando ao diabo a hipoteca e o
Banco”.
Entrementes, na alpendrada das
senzalas, a um canto, os taquareiros se
ativam; e ao longo dos balaústres, em rumas simétricas, se alinham as
sururucas, os balaios de alqueires, as
peneiras rasas de abanar.
No cafezal:
Está limpa e ciscada a terra para
receber as bagas que transbordarem das
peneiras com a pressurosa apanhação... Porque em principio de colheita a
tarefa é alta e o Maurício feitor aperta
o serviço, a estralos de relho sobre o lombo nu da negrada, que escorre em suor, encrostado de
poeira, alternadamente mordido, — de
manhã, pelo frio orvalho que esborrifa das árvores, — alto dia pela soalheira
que mordica a pele como a dentada
cáustica da formiga-monjolo.
Os cafeeiros, vermelhos de
frutos, deixam vergarem-se os galhos flexíveis. É uma carga enorme!
— “Desta vez tiro o pé do lodo”,
continua meditando o fazendeiro, indo e
vindo, abstraído, inteiramente alheio àquela grande alacridade que em
derredor barulha por todo o vasto
terreiro entre a criação doméstica...
***
Domingo, ao entardecer, o sino da
fazenda tocou à forma geral.
Vieram depressa os moços,
trotando; depois as negras, com as crias novas
ao colo, arrastando pela mão um ou dois ingênuos seminus e magritos; por
último, com trôpego passo, os
sexagenários, alquebrados veteranos do eito, perrengada inválida e inútil.
Salva! Manda o feitor.
Vaássunscristo! Bradam 50 míseros
negros, num clamor uníssono, vibrante e
merencório, como uma imprecação à surda justiça de Deus, tantas vezes
neste triste ermo bradada, sem que
ninguém a exalce; nem tu, duro egoísmo do senhor de escravos; nem tu, meigo coração de esposa;
nem vós, inconscientes e insensíveis
ainda crianças que ides crescendo no espetáculo e nos exemplos desta
dolorosa infâmia, que veio de vossos
pais e que haveis de legar a vossos filhos!... Ninguém, ninguém te exalça, melancólico brado de
angústia; e tu não irás mais alto nem mais
longe do que vão o mugido dos bois e o ladrar dos cães; e te perderás,
voz animal que tu és, entre as outra
vozes da animalidade que te rodeia, no ar morto e sem ecos da Fazenda!
Vaássunscristo!...
Em seguida, faz-se a distribuição
anual da roupa: dois parelhos de algodão,
japona de baeta, coberta de lã grosseira; porque o dono desta Fazenda é
generoso ... Outro fora, e dar-te-ia,
pobre pária, para cobrir-te a nudez lutulenta — de manhã,
o frio nevoeiro cortante dos
eitos — alto dia, o sol que te mordiça a pele como a penugem cáustica da urtiga.
No dia seguinte tinha de dar-se
princípio à colheita.
Para que a solenidade fosse
completa distribuiu-se pelos negros aguardente
e fumo, indo o Maurício com a canequinha de lata, ao longo da fila,
dando a cada qual um gole, que o negro
sorvia com a beatitude de um padre emborcando o cálice consagrado.
“Agora, disse o Fazendeiro,
indicando com o cabo do relho a melhor peça da
fila: amanhã começa a apanhação; Gobá é o tarefeiro. No cafezal novo a
tarefa, 10 alqueires. Cada alqueire que
passar dos dez, — duzentos réis; cada alqueire que faltar, — uma dúzia de couro. Ouviram ?”
— “Si siô!” Responde o eito num
só grito com o automatismo dos entes em
cujas almas a diuturnidade da escravidão sob o regime cru das senzalas
obliterou a pouco e pouco, e de todo, o
sentimento da personalidade.
Vergonhosamente, nesta pátria
aviltada, a promiscuidade é a lei capital que
regula as relações do amor entre a escravatura. Raro fazendeiro — ainda
hoje! — permite o casamento religioso
aos seus negros. Como em certas hipóteses o moderno direto pátrio concede vantagens manumissórias
aos cônjuges escravos, o fazendeiro,
receoso dos efeitos, obsta à aparição da causa impedindo o sacramento,
que — demais — ele considera como um
luxo de dignidade supérfluo para a honra do preto.
Todavia, pois que é conveniente
no próprio interesse da disciplina das
senzalas, aparentar alguma moralidade, os nossos grandes proprietários
rurais, alguns deles portadores de
títulos de nobreza consentem (quando pessoalmente não promovem) o concubinato entre a
escravatura.
Alguns levam a solicitude ao
excesso de eles próprios designarem os
nubentes e sacramentarem o conúbio, com a tranquila consciência de quem
exerce dentro do seu latifúndio uma
legítima função senhorial; outros deixam aos próprios interessados os cuidados da eleição.
Estes curiosos casamentos, nota
simultaneamente cômica e torpe dos nossos
costumes agrícolas, dão-se com a maior freqüência na época da colheita
do café; e são, principalmente com
referência às mulheres, determinados mais por um cálculo interesseiro do trabalho do que pelo intuito
genésico ou pelos impulsos naturais da
simpatia.
O que importa para interesse da
Fazenda é “aparelhar-se a gente”, formando
de um negro diligente e destro com uma crioula morosa e inábil — uma
entidade mista, espécie de trabalhador
andrógino cujos constituintes perfeitamente se
equilibrem para o exercício desta suprema função agrícola — dar a tarefa
marcada.
Fazendeiros há, de tanta
sagacidade no arranjo destas delicadas equações
da aritmética rural, que, possuindo no eito, entre peças de lei (do
preço de 2 a
3 contos) e velhos perrengues (herdados
da fazenda paterna) apanhadores que tiram
por dia até 16 alqueires nos cafezais carregados, quando outros nem à
força de relho chegam a atingir 3 ou 4
balaios; — entretanto, por meio da referida
organização conjugal sabiamente exploradas, conseguem obter o equilíbrio
do eito, do que resultam inapreciáveis
vantagens.
Bem hajas, prole maldita de Cham,
que nos libertas, a nós que no cimo do
Ararat soubemos pela sisudez dos nossos avós bíblicos conter o riso ante
a descompostura vínica do papai Noé; bem
hajas, prole bendita, que amassa o nosso
pão com o suor do rosto.
***
Tecla é a mulata mais bonita da
fazenda. Sob os seus precoces treze anos
borbulha o ardente sangue mestiço, inflando-lhes as veias que
serpenteiam túmidas debaixo da pele
acobreada, pubesceste, de tons quentes como os do gerivá, verdoengo. — “Flor de cafeeiro”, deve ser
colhida pelo melhor apanhador de todo o eito.
Pedro Gobá, de Olinda, veio num
comboio escolhido a dedo, de gente de
primeira ordem. Moço atlético, retinto, forte e dócil, é a melhor peça
dentre toda a escravatura. Para tocar
uma enxada, cantando uma cantilena triste, morro acima, num eito de mato bravo, ninguém como ele!
No manejo da foice, à roçada de
um guaixumal de pasto velho, nem o Peroba
o acompanha: e, entretanto era Peroba o melhor crioulo da redondeza,
antes de aparecer o Gobá.
Naquele dia inicial da colheita,
Tecla — a flor do cafeeiro, bonita e indolente
na exuberante precocidade dos seus treze anos, foi escolhida por Gobá, o
tarefeiro, rei da negrada.
Casou-os o Balbino, velho africano
feiticeiro e manhoso, puxador do Terço,
que exercia na fazenda um arremedo de funções sacerdotais.
Era ele quem paramentado com uma
sobrepeliz por cima de uma batina de
seda — feita de um dominó carnavalesco que lhe dera o senhor moço
estudante em São Paulo — casava os
parceiros, todos os anos véspera da colheita, no oratório da Fazenda, perante um Cristo envergonhado da
sua impotência para aliviar a miséria da
raça negra maldita, condenada pelo Padre Eterno da legenda bíblica a eternamente trabalhar em benefício nosso, dos
que temos pais fazendeiros e contamos
por avós históricos — Sem e Jafet.
Tecla, confiada no esforço
dedicado do marido, acompanhava-o entre os
arruados dos cafeeiros, toda atenta a resguardar dos galhos secos o seu
vestido de chita, por que se não
rasgasse; e esquecida da tarefa, ia cantarolando, eito acima, a mesma toada triste da cantiga do marido.
Gobá excedia-se de diligência
para colher a tarefa sua e da mulher.
Ao largar o serviço à noitinha,
contou às chapas que o feitor lhe dera a cada
balaio de café levado ao monte: eram 15. Depois contou as da Tecla: eram
3. Faltavam duas para inteirar a tarefa
da companheira: e o senhor bem lhes havia avisado:
“O que faltar para 10 , uma dúzia
de relho por alqueire! ...”
À noite, na forma, recebiam-se as
chapas da tarefa. Dois moleques, nas
extremidades da fila , suspendiam ao ar tachos de taquara-seca em
labaredas.
A negrura daquela mísera gente,
ao clarão do fogo, mais negra ainda se
tornava Cabisbaixos, mudos, iam entregando os discosinhos de Flandres,
à proporção que o Maurício os tomava,
passando-os depois, para verificação, ao feitor
do terreiro. Sob o alpendre da casa, a família dos brancos assistia
curiosa contagem: João Cassange, 10.
Pedro Crioulo, 12. Nazário, 11.Tecla, 8.
E o Maurício, feitor prático ,
tomando o seu grande relho de couro trançado ,
intimou: Tecla fora de forma.
Era o primeiro castigo por falta
de tarefa, crime imperdoável na alta justiça
dos fazendeiros.
Tremendo, a mulata, “flor de
cafeeiro”, mimosa no abrolhar dos seus treze
anos, saiu para frente da fila, quedou-se imóvel, erguendo os braços
para que o relho vibrado a dois pulsos
pudesse enlaçar-lhe num cíngulo de dor o torso flexível e esbelto de mestiça nova. Mas antes que a
primeira relhada caísse sobre a carne
trêmula daquela criança apenas revestida no busto pelo fino morim da sua
camisa de noivado, Pedro Gobá
interpõe-se, e se ajoelha. — Sinhô! Murmura comovido, com as mãos postas em súplica, voltado para a família
dos brancos o rosto sempre risonho,
agora crispado pelas contrações da angústia. Sinhô! Repete mais trêmulo
ainda.
Que é lá, negro? Brada o
fazendeiro irado ante aquele ato de indisciplina. Sinhô, eu quero apanhar por minha mulher!
Ah! Negro você conta
histórias!...
***
Mas antes que ninguém tivesse
tempo de mover-se, dominados todos pela
surpresa daquela cena, Gobá, o Pernambucano de raça, altivo e nobre no
íntimo da sua alma admirável, debalde
abafada desde o berço pela dominação dos senhores; Gobá, a flor da escravatura, manso e bom,
subitamente transformado em homem pelo
irresistível impulso da nobreza inata, arranca da faca e crava-a no
coração da mulher.
Depois, enquanto ela tomba
inanimada, ele, placidamente, fitando com um ar
de asco a família atônita dos brancos, placidamente crava a faca ainda
rubra e quente no seu próprio coração.
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Nota:
Ezequiel Freire: "Pedro Gobá" (1887)
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Nota:
Ezequiel Freire: "Pedro Gobá" (1887)
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