OUTRO AMÁVEL MILAGRE
Nesse tempo Jesus ainda
não saíra de Galiléia, das margens
do lago de Genesaré; mas a nova
dos seus milagres chegara já a Sichem, cidade rica, entre vinhedos, no país de Samaria. Uma tarde um
homem passara com os cabelos ao vento,
dizendo que um novo rabi, um novo profeta, andava pelas verdes colinas que vão de Magdala a Cafarnaum.
anunciando o advento do Reino de Deus, e,
curando todos os
males humanos. Enquanto
descansava. junto ao Poço
de Jacob, o homem contou mais que o
rabi, num campo ao
pé de Cafarnaum
sarara o servo de um centurião romano, de longe, e só com murmurar suavemente uma palavra; e noutra
tarde, tendo atravessado numa barca de
Galiléia para a
terras dos Gerasenos, onde
se fazia
a colheita do bálsamo,
ressuscitara a filha de Jaira, homem considerável, lia na sinagoga. E como a
gente em redor lhe perguntava se esse era
o Messias, e que doçura havia nas suas palavras, o homem ergueu-se,
apanhou o. cajado, e sem sequer — beber
do poço onde bebera Jacob, desapareceu, com os cabelos ao vento, por entre — as rochas, no caminho que levava a
Betânia. Mas uma esperança, deliciosa como o
orvalho do Hermon, ficara refrescando ás almas; e logo a terra pareceu menos dura, e todo o fardo
pareceu menos, pesado...
Ora, em Sichem, vivia um velho
chamado Obed, senhor de rebanhos, senhor de vinhas, de uma família pontifical, que,
desde os antigos cultos de
Israel, sacrificava no alto
do monte Ebal. Mas um
vento abrasador, esse vento de desolação
que vem, a voz
irada do Senhor, do fundo das terras de
Assur, matara as melhores reses
dos seus largos rebanhos; e, nas encostas, onde lhe tinham crescido mil pés alegres de vinha,
negrejava agora só a esterilidade das urzes. Obed, com a
cabeça escondida no
manto, lamentava-se à
beira dos caminhos.
Depois ouvindo
em Sichem falar do
rabi de Galiléia,
que alimentava as multidões,
e emendava todas
as desgraças humanas, Obed,
homem lido, pensou consigo que o
rabi seria um
desses feiticeiros que maravilhavam a Judéia, como Apolônio, o da
voz de bronze, e o subtil Simão
de Samaria. Esses, mesmo nas noites escuras,
conversavam com as estrelas; e sabiam as palavras que afugentam de sobre as searas os
moscardos negros, gerados no lodo do Egito.
Jesus, mais poderoso que Apolónio, mais subtil que Simão, sustaria a mortandade dos seus gados e faria
reverdecer as suas vinhas.. Obed chamou os
servos, e ordenou-lhes que fossem buscar o rabi às
cidades de Galiléia.
Os servos apertaram os cintos de
couro — e largaram cor rendo para o norte, pela
estrada das caravanas que conduz
a Damasco. Uma
tarde avistaram, sobre o poente vermelho, as neves
do monte Hermon. Depois o lago de
Genesaré resplandeceu diante deles, espelhado, azul-celeste, e
calmo na frescura da manhã: um
bando lento de cegonhas brancas cortava o céu claro, voando para os lados de Safed; a cidade nova
de Gamala tinha um doce brilho de
mármore entre as verduras: e a
água, transparente e sem murmúrio, banhava
os pés das ervas altas dos
aloendros em flor. Um pescador
que ali desamarrava preguiçosamente a
sua barca disse-lhes que o rabi deixara
a Galiléia, e partira com os
discípulos para os lados de Galaad, para onde desce o Jordão.
Os servos seguiram, correndo, sem
repouso, até ao sítio onde o Jordão, mais baixo, tem um largo remanso, e dorme um
instante, imóvel e verde, à sombra dos
tamarindos. Da entrada de uma
cabana, feita de rama,
um Essênio, coberto de peles de cabra, soturno e selvagem, gritou-lhes
que Jesus, sozinho, se afastara para além. Mas aonde era além?
O Essênio, com um gesto brusco,
indicou vagamente as montanhas da Judeia, Engaddi, e as fronteiras roxas do reino de
Asketh onde se ergue, sinistra sobre o
seu rochedo, a cidadela de Makaur.
Mas debalde os servos arquejantes
procuraram até ao país de Moab. Jesus não estava ali. Um dia, já na volta, um escriba,
que recolhia a Jericó, passou por eles,
montado na sua mula. Os servos de Obed rodearam-no, perguntando-lhe se encontrara um profeta de Galiléia que fazia
milagres.
O
homem da Lei bradou-lhes
que nem havia profetas, nem havia
milagres fora de Jerusalém,
e que só Jeová era forte no seu Templo: e perseguiu-os ainda às pedradas, em nome do
senhor de Israel.
Os servos fugiram para Sichem.
E grande foi a desconsolação de
Obed porque os seus rebanhos morriam, as
suas vinhas secavam — e a esse tempo crescia
em Samaria, consolador e cheio de promessas divinas, o nome de Jesus de Galiléia.
Ora um
centurião romano, Públio
Sétimo, comandava então o
forte que domina o vale por onde se vai
a Cesareia e ao mar.
Públio era homem próspero,
e gozava os favores de Flaco, legado imperial na Síria. Mas, desde tempos, sua
filha única, e.
infinitamente amada, definhava com um
mal estranho, incompreensível mesmo aos esculápios e aos
mágicos que ele mandara consultar a Sídon e a Tiro. Branca e
triste como a lua, sem se queixar e sem
falar ao seu pai, deixava-se finar, sentada na esplanada do forte, sob um velário,
olhando melancolicamente os
longes azulados do mar de Tiro, por onde
ela viera de Itália, numa galera, com soldados.
Por vezes, ao seu lado, um
legionário, de entre as ameias, apontava lentamente ao alto a flecha, e varava uma grande águia,
voando de asa serena no azul.
A filha de Sétimo seguia um
momento a ave torneando até bater morta sobre as rochas; depois, mais triste e mais pálida,
continuava a olhar o mar.
Então Sétimo, tendo
ouvido destes feitiços do rabi,
tão potente sobre os espíritos, que curava todos os
males, destacou três decúrias
de soldados a procurá-lo em todas as cidades da Decápole, na
Peteia, e ao longo da costa até Áscalon.
Os soldados meteram os escudos dentro dos sacos de lona: e partiram, fazendo ressoar as sandálias ferradas sobre as
lajes das três estradas romanas que se
encruzam em Samaria.
De noite as suas armas brilhavam
no alto das colinas, entre a vermelhidão dos archotes. De dia penetravam nos casais,
rebuscavam a espessura dos pomares; e as mulheres inquietas traziam-lhes figos,
e malgas cheias de vinho de Safed, que
eles bebiam, às mãos ambas e de um trago, sentados no chão, à sombra dos sicômoros.
Ao passarem nos postos romanos, e dizendo o nome de Sétimo, outros legionários,
ou homens das coortes sírias,
juntavam-se-lhes, levando no, capacete um ramo de oliveira.
Mas pouco a pouco estas inúteis
marchas, à busca de um rabi judeu, irritavam-nos; agora
faziam parar as caravanas,
brutalizavam a gente nos burgos, clamando o nome de Jesus.
Ao avistá-los, os
pastores de Iduméia, que dão as reses brancas para o Templo,
refugiavam-se à pressa nos montes; e da beira dos eirados das vilas, os velhos sacudiam sobre eles as mãos cheias
de maus presságios, invocando a cólera
de Elias.
Nas vizinhanças de Hebron
arrastaram para fora das grutas os solitários, para lhes arrancar o nome do deserto ou
do palmar onde se escondia
Jesus de Galiléia;
e a ignorância de dois mercadores, que vinham de Jope com uma carregação de malóbatro, e que não tinham
jamais ouvido o nome do rabi de Galileia, foi-lhes
contada como um delito e pagaram vinte dracmas ao decurião.
Assim prosseguiram até
Áscalon, não encontraram Jesus; e retrocederam ao longo da costa, enterrando as sandálias nas
areias ardentes.
Uma madrugada,
junto a Cesareia, avistaram,
sobre um fresco outeiro, um bosque
de loureiros onde alvejava
recolhidamente o frontão liso de um templo. Um velho, de barbas brancas,
vestido de linho alvo,
esperava ali, grave e religiosamente, a aparição do Sol.
Os soldados, de baixo,
perguntaram-lhe, agitando os ramos de oliveira, se ele sabia de um profeta de Galiléia que fazia
milagres. O velho, sereno e sorrindo, disse-lhes
que não havia profetas, nem havia
milagres, e só. Apolo Délfico conhecia o segredo das coisas.
Então devagar, com a cabeça baixa,
como numa tarde de derrota, os soldados recolheram
ao forte de Samaria.
E grande foi o desespero de
Sétimo, porque sua filha morria, sem se queixar e sem falar ao seu pai — e a fama de Jesus de
Galiléia ia subindo, iluminando toda a
Samaria, como a aurora quando se levanta por trás do monte Hermon.
Ora, junto a
Sichem, num casebre, vivia
então uma viúva desgraçada
entre todas, que tinha um filho
doente com as febres. O chão miserável não estava caiado, nem nele havia
enxerga. Na lâmpada de barro vermelho secara o azeite. O grão
faltava na arca:
o ruído dormente do moinho doméstico cessara, e esta era, em. Israel, a
evidência cruel da infinita miséria.
A pobre mãe, sentada a um canto,
chorava; e, estendida sobre os seus joelhos, embrulhada
em farrapos, pálida e tremendo toda, a
criança pedia-lhe, numa voz
débil como um suspiro,
que lhe fosse chamar esse rabi de Galiléia de quem
ouvira falar junto ao Poço de Jacob, que amava
as crianças, nutria as multidões, e curava todos os males humanos,
com a carícia das suas mãos. E a mãe
dizia, chorando:
— Como queres tu, filho, que eu te deixe, e vá procurar o rabi a
Galileia? Obed é rico e tem servos, eu
vi-os passar, e debalde buscaram Jesus por areais e cidades,
desde Chorazim até ao país de
Moab. Sétimo é forte e tem soldados,
eu vi-os passar e perguntaram por.
Jesus sem o achar desde o Hebron
até ao mar. Como queres tu que eu te deixe? Jesus está longe, a nossa dor
está connosco. E sem
dúvida o
rabi, que lê nas sinagogas novas, não escuta
as queixas de uma mãe de Samaria que só sabe ir orar, como outrora, no alto do monte Gerazim.
A criança, com os olhos cerrados,
pálida e como morta, murmurou o nome de Jesus.
E a mãe dizia, chorando:
— De que me serviria, filho, partir e ir procurá-lo? Longas são
as estradas da Síria, curta é a piedade
dos homens. Vendo-me tão pobre e tão só, os cães viriam ladrar-me às portas dos casais.
Decerto Jesus morreu; e com ele morreu, uma vez mais, toda a esperança dos
tristes.
Pálida, e desfalecendo, a
criança murmurou: Mãe,
eu queria ver Jesus de Galiléia. E logo, abrindo devagar a porta e
sorrindo, Jesus disse à criança: — Aqui
estou.
---
---
Nota:
Texto-fonte: Conto de Eça de Queirós, obra póstuma publicada em 1902
Nenhum comentário:
Postar um comentário