domingo, 1 de setembro de 2013

Eça de Queirós: "Outro Amável Milagre"

OUTRO AMÁVEL MILAGRE
  
Nesse tempo  Jesus ainda  não saíra  de Galiléia,  das margens  do lago de  Genesaré; mas a nova dos seus milagres chegara já a Sichem, cidade rica, entre  vinhedos, no país de Samaria. Uma tarde um homem passara com os cabelos  ao vento, dizendo que um novo rabi, um novo profeta, andava pelas verdes  colinas que vão de Magdala a Cafarnaum. anunciando o advento do Reino de  Deus,  e,  curando  todos  os  males  humanos.  Enquanto  descansava.  junto  ao  Poço de Jacob, o homem contou mais  que o rabi,  num campo  ao  pé  de  Cafarnaum  sarara  o servo de um  centurião romano, de longe,  e só com  murmurar suavemente uma palavra; e noutra tarde, tendo atravessado numa  barca de Galiléia  para  a  terras dos Gerasenos,  onde se  fazia  a  colheita  do  bálsamo, ressuscitara a filha de Jaira, homem considerável, lia na sinagoga. E  como a  gente  em redor  lhe perguntava se  esse era  o Messias,  e que doçura  havia nas suas palavras, o homem ergueu-se, apanhou o. cajado, e sem sequer  — beber do poço onde bebera Jacob, desapareceu, com os cabelos ao vento,  por entre — as rochas, no caminho que levava a Betânia. Mas uma esperança,  deliciosa  como  o orvalho do Hermon,  ficara  refrescando ás almas;  e logo a  terra pareceu menos dura, e todo o fardo pareceu menos, pesado...

Ora, em Sichem, vivia um velho chamado Obed, senhor de rebanhos, senhor  de vinhas, de uma  família pontifical,  que,  desde os antigos cultos  de Israel,  sacrificava no  alto  do  monte Ebal.  Mas um  vento abrasador,  esse vento de  desolação  que  vem,  a  voz irada  do Senhor,  do fundo das terras  de  Assur,  matara as melhores reses dos seus largos rebanhos; e, nas encostas, onde lhe  tinham crescido mil pés alegres de vinha, negrejava agora só a esterilidade das  urzes.  Obed, com a  cabeça  escondida  no  manto,  lamentava-se  à  beira  dos  caminhos.

Depois  ouvindo  em  Sichem  falar do  rabi  de  Galiléia,  que alimentava  as  multidões,  e  emendava  todas  as  desgraças humanas,  Obed,  homem lido,  pensou consigo que o rabi  seria  um  desses  feiticeiros  que maravilhavam  a  Judéia,  como Apolônio,  o da  voz de bronze, e o subtil  Simão de Samaria.  Esses,  mesmo nas noites  escuras,  conversavam com as estrelas; e sabiam as  palavras que afugentam de sobre as searas os moscardos negros, gerados no  lodo do Egito. Jesus, mais poderoso que Apolónio, mais subtil que Simão,  sustaria a mortandade dos seus gados e faria reverdecer as suas vinhas..  Obed  chamou os  servos,  e  ordenou-lhes que fossem buscar o rabi  às  cidades de  Galiléia.

Os servos apertaram os cintos de couro — e largaram cor rendo para o norte,  pela  estrada  das caravanas  que conduz  a  Damasco.  Uma  tarde  avistaram,  sobre o poente vermelho,  as neves  do monte Hermon.  Depois o lago de  Genesaré resplandeceu diante deles,  espelhado, azul-celeste,  e  calmo na  frescura da manhã: um bando lento de cegonhas brancas cortava o céu claro,  voando para os lados de Safed; a cidade nova de Gamala tinha um doce brilho  de mármore entre  as verduras:  e a  água,  transparente e sem  murmúrio,  banhava  os pés  das ervas  altas dos  aloendros  em flor.  Um pescador  que ali  desamarrava  preguiçosamente  a  sua  barca  disse-lhes que o rabi  deixara  a  Galiléia, e partira com os discípulos para os lados de Galaad, para onde desce  o Jordão.  

Os servos seguiram, correndo, sem repouso, até ao sítio onde o Jordão, mais  baixo, tem um largo remanso, e dorme um instante, imóvel e verde, à sombra  dos tamarindos.  Da entrada  de uma  cabana,  feita  de rama,  um Essênio, coberto de peles de cabra, soturno e selvagem, gritou-lhes que Jesus, sozinho, se afastara para além. Mas aonde era além?

O Essênio, com um gesto brusco, indicou vagamente as montanhas da Judeia,  Engaddi, e as fronteiras roxas do reino de Asketh onde se ergue, sinistra sobre  o seu rochedo, a cidadela de Makaur.

Mas debalde os servos arquejantes procuraram até ao país de Moab. Jesus não  estava ali. Um dia, já na volta, um escriba, que recolhia a Jericó, passou por  eles, montado na sua mula. Os servos de Obed rodearam-no, perguntando-lhe  se encontrara um profeta de Galiléia que fazia milagres.

O  homem da  Lei  bradou-lhes  que nem havia  profetas,  nem havia  milagres  fora  de Jerusalém,  e que só  Jeová  era forte no seu Templo:  e perseguiu-os ainda às pedradas, em nome do senhor de Israel.

Os servos fugiram para  Sichem.  E grande foi a  desconsolação de Obed  porque os seus rebanhos morriam, as suas vinhas secavam — e a esse tempo  crescia em Samaria, consolador e cheio de promessas divinas, o nome de Jesus  de Galiléia.

Ora  um  centurião romano,  Públio Sétimo,  comandava  então o  forte que  domina  o vale por onde  se  vai a  Cesareia  e ao mar.  Públio  era  homem  próspero, e gozava os favores de Flaco, legado imperial na Síria. Mas, desde  tempos, sua  filha  única,  e.  infinitamente amada,  definhava  com um  mal  estranho,  incompreensível mesmo aos esculápios  e aos  mágicos  que ele  mandara consultar a Sídon e a Tiro. Branca e triste como a lua, sem se queixar  e sem falar ao seu pai, deixava-se finar, sentada na esplanada do forte, sob um  velário,  olhando melancolicamente  os longes  azulados do mar de Tiro,  por  onde ela viera de Itália, numa galera, com soldados.

Por vezes, ao seu lado, um legionário, de entre as ameias, apontava lentamente  ao alto a flecha, e varava uma grande águia, voando de asa serena no azul.  

A filha de Sétimo seguia um momento a ave torneando até bater morta sobre  as rochas; depois, mais triste e mais pálida, continuava a olhar o mar.  

Então Sétimo,  tendo  ouvido destes  feitiços  do rabi,  tão potente  sobre os  espíritos, que curava  todos os  males,  destacou três  decúrias  de soldados  a  procurá-lo em todas as cidades da Decápole, na Peteia, e ao longo da costa até  Áscalon.

Os soldados meteram os  escudos dentro dos sacos de lona:  e partiram,  fazendo ressoar as sandálias ferradas sobre as lajes das três estradas romanas  que se encruzam em Samaria.

De noite as suas armas brilhavam no alto das colinas, entre a vermelhidão dos  archotes. De dia penetravam nos casais, rebuscavam a espessura dos pomares; e as mulheres inquietas traziam-lhes figos, e malgas cheias de vinho de Safed,  que eles bebiam, às mãos ambas e de um trago, sentados no chão, à sombra  dos sicômoros.


Ao passarem nos postos  romanos, e dizendo o nome de Sétimo,  outros  legionários,  ou homens  das coortes  sírias,  juntavam-se-lhes,  levando no,  capacete um ramo de oliveira.

Mas pouco a pouco estas inúteis marchas, à busca de um rabi judeu, irritavam-nos;  agora  faziam parar as caravanas,  brutalizavam a  gente nos burgos,  clamando o nome de Jesus.

Ao avistá-los,  os  pastores de Iduméia, que dão as reses brancas para  o  Templo, refugiavam-se à pressa nos montes; e da beira dos eirados das vilas,  os velhos sacudiam sobre eles as mãos cheias de maus presságios, invocando a  cólera de Elias.

Nas vizinhanças de Hebron arrastaram para fora das grutas os solitários, para  lhes arrancar o nome  do deserto ou  do palmar onde  se  escondia  Jesus  de  Galiléia;  e a  ignorância  de dois mercadores,  que vinham de Jope com uma  carregação de malóbatro, e que não tinham jamais ouvido o nome do rabi de  Galileia,  foi-lhes  contada como  um  delito e pagaram vinte  dracmas ao  decurião.

Assim prosseguiram até Áscalon,  não encontraram Jesus;  e retrocederam ao  longo da costa, enterrando as sandálias nas areias ardentes.

Uma  madrugada,  junto a  Cesareia, avistaram, sobre um  fresco outeiro,  um  bosque de loureiros  onde  alvejava  recolhidamente o frontão liso de um  templo. Um velho, de barbas  brancas,  vestido  de linho alvo, esperava  ali,  grave e religiosamente, a aparição do Sol.

Os soldados, de baixo, perguntaram-lhe, agitando os ramos de oliveira, se ele  sabia de um profeta de Galiléia que fazia milagres. O velho, sereno e sorrindo,  disse-lhes que não havia  profetas,  nem havia  milagres,  e só.  Apolo Délfico  conhecia o segredo das coisas.

Então devagar, com a cabeça baixa, como numa tarde de derrota, os soldados  recolheram ao forte de Samaria.

E grande foi o desespero de Sétimo, porque sua filha morria, sem se queixar e  sem falar ao seu pai — e a fama de Jesus de Galiléia ia subindo, iluminando  toda a Samaria, como a aurora quando se levanta por trás do monte Hermon.  

Ora,  junto a  Sichem,  num casebre,  vivia  então uma  viúva  desgraçada  entre  todas, que tinha um filho doente com as febres. O chão miserável não estava  caiado, nem nele  havia  enxerga.  Na  lâmpada de barro vermelho secara  o  azeite.  O  grão faltava  na  arca:  o ruído dormente do moinho doméstico cessara, e esta era, em. Israel, a evidência cruel da infinita miséria.

A pobre mãe, sentada a um canto, chorava; e, estendida sobre os seus joelhos,  embrulhada  em farrapos,  pálida  e tremendo toda,  a  criança  pedia-lhe,  numa  voz débil  como um  suspiro,  que lhe  fosse chamar esse  rabi de Galiléia  de  quem ouvira falar junto ao Poço  de Jacob,  que amava  as crianças,  nutria as  multidões, e curava todos os males humanos, com a carícia das suas mãos. E a  mãe dizia, chorando:

— Como queres tu, filho, que eu te deixe, e vá procurar o rabi a Galileia?  Obed é rico e tem servos, eu vi-os passar, e debalde buscaram Jesus por areais  e cidades,  desde Chorazim até ao país  de Moab.  Sétimo  é forte e tem  soldados,  eu vi-os passar e perguntaram por.  Jesus sem o achar desde o  Hebron até ao mar. Como queres tu que eu te deixe? Jesus está longe, a nossa  dor  está  connosco.  E  sem dúvida  o  rabi,  que lê  nas sinagogas novas,  não  escuta as queixas de uma mãe de Samaria que só sabe ir orar, como outrora,  no alto do monte Gerazim.

A criança, com os olhos cerrados, pálida e como morta, murmurou o nome de  Jesus. E a mãe dizia, chorando:

—  De que me serviria, filho, partir e ir procurá-lo? Longas são as estradas  da Síria, curta é a piedade dos homens. Vendo-me tão pobre e tão só, os cães  viriam ladrar-me às portas dos  casais.  Decerto Jesus morreu;  e com ele  morreu, uma vez mais, toda a esperança dos tristes.  

Pálida,  e desfalecendo,  a  criança  murmurou:  Mãe,  eu queria  ver  Jesus de  Galiléia. E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança: —  Aqui estou.


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Nota:
Texto-fonte: Conto de Eça de Queirós, obra póstuma publicada em 1902

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