domingo, 22 de setembro de 2013

Delminda Silveira: "Almas Gêmeas"

ALMAS GÊMEAS

 Acaso desconheces, ó muito adorada Aida, o profundo abismo que de ti me separa?

Dos teus prisioneiros, há já dez anos, sei, porventura, se ainda vive minha esposa?

Eu, bem jovem, desposei-a, julgava amá-la...ah! bem depressa conheci quanto nossas almas eram dessemelhantes! Eu não sentia mais o prazer a seu lado, e todo o amor que sonhara dar-lhe, aquele afeto imenso de esposo amante, no meu coração, se transformava em paternal carinho. Amei meus filhos com extremo; mas... eram do Céu: o Céu reclamou-os. Eu padeci longos, cruéis, martírios; a esposa não saberia, não poderia consolar-me.

A pátria necessitou-me; amo a terra que me viu nascer; era cavalheiro; parti.

Roto e desbaratado o exército cristão, fiquei prisioneiro dos teus irmãos do Oriente; sabes tu, ó muito minha amada, o quanto hei padecido?

Julgaram-me, por fim, inofensivo, tiraram-me os ferros, abriram-me as portas da horrível masmorra, e deram-me por menagem as cidades do Profeta.

Era ao cair da tarde; este formoso céu da Palestina cobria-se de um rico manto purpurado, com frisos de ouro, como a suntuosa veste de opulenta soberana.
As rosas abriam frescas e vermelhas, quais as do pudor nas faces da desposada. Junto à fonte, sob a ramagem desfiada do salgueiro, eu te vi, — estrela brilhante do formoso céu de Alá, pálida rosa dos jardins do Oriente; eu te vi, e te adorei!

Os negros olhos de Aida brilharam; os seios tremeraram-lhe como brancos lírios beijados pela aragem; semicerraram-se-lhe as pálpebras como as pétalas da maravilha aos primeiros raios de sol, e duas lágrimas deles se desprenderam quais gêmeas gotas de orvalho do seio de graciosa flor.

— Admar... Admar, meu amado! com voz dulçorosa a virgem muçulmana suspira, — quando o sol, como sultão que vai dormir, inclina a fronte ardente coroada de raios sobre suntuoso coxim de carmesi e ouro, a Natureza, sua favorita, dá-lhe em meigos cantos toda a ternura de sua alma, em doces perfumes, todo o amor de seu coração .

Que importa a violeta que à tarde abriu, tenha o sol aquecido as rosas da manhã?... A violeta ama o sol da tarde que vem docemente haurir-lhe o aroma do seio, e no delicioso perfume da melindrosa flor, o sol encontra mais doçura e vida do que nos encantos da peregrina rosa. O amor é livre como a avezinha do espaço; se apartasse do companheiro a avezinha mimosa, se a embaraçasse de chegar até ele, do galho florido do arvoredo, em meigos cantos de amor, a triste envia-lhe toda a ternura de seu inocente coração; o amante afastado lhe responde acorde, e, assim, o afeto doce e terno vence a dificuldade a mais cruel.

O coração da mulher é a flor que entorna suavíssimo perfume se o raio do sol do amor lhe penetra o seio... sua alma é a livre avezinha: — ama, ama sempre, embora não goze a felicidade do seu amor; e assim foi que eu te amei... assim te amo e te amarei! sempre!...

Quando a tarde esmorecia, e os campos eram mais verdes, e as rosas mais vermelhas abriam como caçoulas de nácar a derramar essências, eu cismava junto à fonte dos salgueiros, ouvindo o murmúrio suave das águas, o doce rumorejar da viração.

Contemplava os lírios que floresciam em derredor, e os lírios brancos eram em dois em uma mesma haste; os passarinhos não brincavam sós, nem as borboletas que voltejavam aos pares, como pétalas de flores levadas pela brisa.

Meigos pombinhos se acariciavam em um recanto da verdura; no galho mimoso de virente arbusto, sob um tufo de flores balançava-se um ninho aonde os pequeninos implumes se aconchegavam pipilando alegremente ao doce calor das asitas levantadas da avezinha mãe. Em toda a Natureza, pois, eu via uma afinidade de ternura e de amor; não havia, portanto, existência alguma semelhante a minha... nenhum ser era triste, — só -, sem os carinhos de mãe, sem as ternuras de amante; todos, enfim, gozavam a felicidade dos seus afetos; somente eu era solitária e triste como uma pobre deserdada!...

No meu coração levantou-se então um desejo...oh! que era belo como deve sê-lo o sonhador da liberdade! terno e meigo como o arrulhar da pombinha enamorada; mas forte, mas grande como a impetuosa corrente que tudo arrasta, como o oceano que se espraia arrojando do seio as maravilhas do abismo! era o desejo de amar... de ser amada!...

E eu sentia o peito entumecido de muito amor!

Teus passos quebraram o meu encantamento; eras tu a imagem evocada na minha fantasia; foste a realidade do meu ideal e eu te amei... oh! Amei-te, te amo muito...

Seus braços se enlaçaram, seus lábios se uniram, e o brando seio de Aida; no transporte, apertou-se ao valente peito do cavalheiro, como o festão da erva mimosa ao tronco do robusto carvalho que lhe dá vida.

Ah! Quanto mais profundo e insuperável não era o amor que unia suas almas do que o invencível abismo que os separava!...

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Nota:
Delminda Silveira: "Lises e Martírios" (1908)

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