O FILHO NATURAL
PRIMEIRA PARTE
Os fidalgos de terras de Basto
vão-se acabando. Tenho pena e saudades. Aqui há trinta anos, com os brasões e apelidos das
famílias heráldicas dentre Vizela e
Tâmega recompunha-se a história lendária de Portugal. Quem soubesse ler a simbólica
das arrogantes armas encimadas
nos portões das quintas podia lecionar
um curso de História Pátria com tanta filosofia como Fr. Bernardo de Brito e o
Sr. João Félix Pereira, o das várias faculdades. Em redor daqueles paços senhoriais pesava um silencio triste e
torvo. Era o luto de Portugal de D. João
II e de D. Manuel.
Cada portal bojava os seus
granitos folhados de acantos, entre dois ciprestes; as legendas dos
escudos denegridos e musgosos
pareciam inscrições tumulares; por sobre os paquifes dos elmos
desgrenhavam as suas madeixas os
chorões, escurentando as avenidas daqueles solares carrancudos, como se por ali se entrasse para as catacumbas da
Ordem Terceira de S. Francisco, na, sobre
todas, honrada e pia cidade do Porto.
Não era assim melancólico o viver intestinal daquelas
baleias de pedra que pareciam esmoer de papo acima as famílias em
soporosa digestão. Se lá dentro as tradições
históricas apenas se conservavam em alguns pires e jarras esbeiçadas de louça, que um sétimo avô
trouxera da Ásia, a Ideia Nova, que esvoaça
na atmosfera como os aromas de todas as flores e os eflúvios de todas as podridões,
chegara a terras de Basto, aninhara-se brincando nos açafates das meninas como as andorinhas alegres nas cornijas
dos seus palacetes sombrios.
A Ideia Nova, que brincava
no açafate da costura
e no bastidor, eram as traduções da Biblioteca Económica, em
que a velha virtude e a velha linguagem
portuguesa soluçavam os últimos
arrancos, nos braços do Feliz Independente, do padre Teodoro de Almeida. O
romance deu aos corações das
senhoras de Basto feitios
e jeitos novos,
ensinando-lhes o que diz a aurora, o que segredam as transparências
cetinosas do arrebol, o que se deve pensar
quando as fontes trépidas murmuram, e tudo o mais respetivo a flores, brisas e pássaros.
Desde a fundação da monarquia até
el-rei D. João VI, o Minho não florejara poetisa
conhecida, salvo a
viscondessa de Balsemão,
D. Catarina; porém, desde 1848 a 1860. contam-se por dúzias as cantoras
que pousaram gorjeando nos
periódicos do tempo
com grande riqueza de charadas e
muitíssimos Suspiros dignos
dos círculos mais
lagrimosos do Dante. O
amor, que até então
fora de frutos, fez-se de flores; a mulher entrou na idealização; obrigou o
cavalheiro de Basto a ser psicológico e sujeitar-se nos seus desejos amorosos um
pouco ao metro e à rima. Foi
ela, pois, quem refez
o homem, descascando-o, adelgaçando-o, cepilhando-lhe as rudezas, obrigando-o a cantar
a xácara dos
Dois Renegados. Por este tempo entrou em terras de Basto a caixa de música, e logo depois o
manicórdio. Faz agora vinte anos que ali se
inaugurou a perfectibilidade
lírica: ouviu-se um
piano-forte em Cabeceiras e outro
na Raposeira. Era o último ponto da craveira nos avanços do progresso.
Como Babilónia e Cartago,
Basto, refinando em civilização, começou a
desandar. Não houve
em Refojos nem em Mondim um Catão
Censorino que se levantasse, como em
Roma, contra a inoculação pestilencial das
belas-artes e letras. A poesia e o piano tinham corrompido a terra de Santa Senhorinha.
A degeneração do fidalgo de Basto
promoveu-a o sistema representativo. O ato eleitoral foi a rampa
traiçoeira por onde aqueles partidários do
trono absoluto escorregaram à democracia. Verdade é que o
sufrágio cedido aos seus
correligionários era um
sincero sufrágio pelos fiéis
defuntos. Os seus enviados ao Parlamento sentavam-se venerabundos,
cheios de Febo Moniz, com, ares de senadores romanos
em frente das zombarias daqueles
Brenos, que tinham as línguas de Cunha
Sotomaior e José Estêvão, cortantes como as achas galo-celtas. Não pediam estradas, nem abadias,
nem campanário, nem comendas, estavam
ali com os ouvidos atentos à espera
do que vinha da Rússia. Afinal,
o temperamento sanguíneo dos cavalheiros
de Basto borbulhou em comichões de novas ideias, e todos eles se coçaram mais ou menos com
a Carta Constitucional. A liberdade
vencera; mas as proeminências congênitas daquela plêiade
de Bayards, quase todos
capitães-mores, desvaneceram-se nas brumas da epopeia, que nunca mais terá
pessoa em que pegue naquela região,
onde já não há tradição da
velha tirania dos patíbulos, exceto o vinho; que ainda é de
enforcado.
***
Um dos mancebos mais
completos, por patrimônio, nascimento e gentileza, no concelho de Celorico, era o fidalgo de
Agilde, Vasco Pereira Marramaque, vigésimo
terceiro neto de Gonçalo Mendes, o Lidador. Se eu tivesse de ir, ao arrepio, na peugada genealógica deste sujeito,
encontrava-me com o macaco de
Darwin. É família muito
antiga a dos Marramaques — são
anteriores à história e talvez aos macacos. E, se me não
falha a conta dos avôs apurados nesta
linhagem, o dilúvio universal está desmentido.
Vasco era um rapaz moderno então.
Em 1846 tinha vinte e três anos e trocava costaneiras genealógicas encadernadas em
vitela por canastras de romances de Arlincourt e Eugéne
Sue. Não era caçador
nem potreiro: era um sonhador trigueiro familiarizado com certas estrelas,
hipocondríaco, olheiras, fastio, um grande
aborrecimento de tudo e principalmente do estilo dos parentes, que lhe chamavam mágico.
Ele tinha dado à luz no Periódico
dos Pobres uma poesia na qual declarava que era
um anjo caldo em lodaçal de
javardos. Aludia aos primos.
Isto fez sensação em todo o
Basto. Um poeta de Refojos mordeu-o com uma sátira que começava assim:
Ó bardo de Celorico, Quem te deu
tamanho bico?
Vasco Marramaque enviou-lhe o seu
cartel por dois intrépidos ex-oficiais de milícias de Braga. O outro, que era discípulo
de Alceu e de Horácio no lirismo e
no amor
do seu corpo, fugiu de Basto
como o seu mestre fugira
dos legionários de Octávio.
Poetas, por via de regra, não
querem nem devem morrer em batalhas: o seu ofício é dar a imortalidade aos bravos, O de
Refojos pensava assim; e O de Celorico
ia mais para os citaristas das cruzadas, que morriam como Raul de Coucy entre duas rimas e três cutiladas.
Este incidente deu ares heroicos
a Vasco. Fizera fugir o versista de Refojos, que satirizava as autoridades nas gazetas,
assinando-se Juvenal em Cabeceiras. As
senhoras amaram-no quase furiosamente.
As mulheres das terras frias e
regadas pelas torrentes das montanhas amam os trovadores valentes. Querem que o poeta lhes
diga:
Para sentir-vos, braço às armas
feito; Para cantar-vos, mente às musas dada.
Vasco provou a mão nos solaus, e
dizia sempre que ia afinar o arrabil. Era o instrumento de 1848, o arrabil. Mas, de vez em
quando, no Eco Popular, do Porto,
aparecia uma pergunta anônima:
Ó bardo de Celorico, Quem te deu
tamanho bico?
***
Vasco Marramaque viveu do amor
das castelãs dos seus solaus com exemplar castidade por
espaço de seis
meses. Os frutos destas inocentes mancebias eram umas
trovas em redondilha, quase
todas aleijadas. Procurava
uma menina acomodada ao molde da
sua imaginação; mas terras de Basto não lha forneciam.
Ali as meninas eram cheias como
as abóboras —
abóboras- meninas. Ele queria a mulher vaporosa. Naquele tempo era moda
o vapor nas senhoras como encanto; hoje
os poetas realistas malsinam-nas de anêmicas e cloróticas. Nós, os rapazes que tínhamos alma
e lira, queríamos que as nossas amadas,
por várias razões, se alimentassem do aroma das finas flores, como Camões refere de certas famílias vizinhas do
Ganges; ora os poetas da última hora,
com o zelo de corretores de restaurantes, arguem, acaudilhados pelo Sr. R. Ortigão, as senhoras magras porque não
digerem uns tantos quilos de boi com
mostarda, nem bebem cerveja preta, nem barram de manteiga fresca o seu pão.
Não eram assim que o fidalgo de Agilde
anelava a mulher que lhe preluzia dentre a poeira de ouro das suas visões.
Procurou-a no
Jardim de S. Lázaro do
Porto. Se vai no domingo anterior, encontrava
cinco meninas de transparência
cristalina, bastante lidas no Telémaco,
sabendo de cor as passagens mais
sentimentais do Eurico e a Vivandeira, de Palmeirim.
Eram as cinco joias do Porto
em delicadeza de espírito e de cintura
— tão subtis
que pareciam almas deplorativas da Divina
Comédia envoltas em tarlatanas.
Estas meninas, de famílias diversas, davam preocupação aos pais; porque, em matéria de matrimônio, diziam todas
à uma que não achavam no Jardim de S.
Lázaro, nem na Filarmônica, nem na missa das onze, homens que as compreendessem. Cada uma delas, portanto,
devia ser a visão realizada de Vasco
Marramaque; infelizmente, porém, ele chegou oito dias tarde, porque as cinco incomprises tinham casado naquela semana
com cinco brasileiros.
Percorreu o Pais, farejando todos os
centros, todas as constelações de senhoras
neste o nosso sistema planetário de terra a terra. Esteve em Sintra, em Cascais, no Circo Laribau, nos gineceus
doutos das Ex.mas Kruzes e nos celebrados
bailes dos Srs.
Marqueses de Viana. Ouviu de
perto o rugido das leoas e o metálico frescor da
frase sacudida das damas aristocratas. Apertou na
sua mão fria os dedos febris
e opalizados das filhas dos
marqueses; sentiu no rosto, em polcas vertiginosas, as doces crispações dos boucles,
que descobririam o galvanismo no homem,
se Galvani o não tivesse já achado nas rãs. Pois não sentiu nada! Pela palavra nada! Quando saiu a barra de
Lisboa, com o coração a disputar à algibeira primazias do vácuo, conta-se
que, pendido o rosto para o
peito, chorara copiosamente; e que, em frente das
Berlengas, perguntara ao destino surdo
se a mulher dos seus sonhos estaria naqueles penedos.
Voltou pára a sua
casa de Agilde, aprendeu a
jogar o gamão com o farmacêutico
Macário Afonso e enfronhou-se em
política com o juiz ordinário.
Este magistrado, galopim
condecorado com o hábito de Cristo, incitava-o a ir ao Parlamento, assegurava-lhe
a uma, contando-lhe os rombos que fizera
nela sempre que foi preciso fazer triunfar a justiça.
Entretanto, Vasco,
enquanto o boticário
manipulava os seus basilicões, namorava-lhe a filha, com uns jeitos cínicos
de quem vinha de Lisboa. Era ela uma
rapariga fresca e perfumosa como o rosmaninho e sécia de alegres cores como a flor da hortênsia.
Chamava-se a Tomazinha
da botica. Lia novelas,
que o fidalgo lhe emprestava, traduzidas do francês. A
Salamandra, de E. Sue, fez-lhe estranhos abalos no organismo.
Aquele personagem chamado Saffie,
por quem as mulheres morriam de amor, enxertou-o em Vasco.
Assimilava capítulos como quem ingere cabeças de fósforos. O pai
gostava da ouvir
declamar os diálogos dos romances;
e, moralizando aquelas histórias
com bastante juízo, dizia:
— Tomásia, isso parecem-me
petas!...
E, a respeito do Saffie,
acrescentava:
— Dá-me vontade de dar dois pontapés
nesse safio!
Ele bem via que a filha
desatremava no governo da casa; não pegava em meia nem fazia
peruas de missanga; dava-lhe
as peúgas esburacadas
e as ceroulas sem nastros.
Trauteava as xácaras da Moura e do Pajem de Aljubarrota com o lacerante
sentimento das enormes desgraças.
Às vezes chorava sem saber porquê. Punha a mão na testa, afastava com
frenesi os cabelos e murmurava: «Anátema!»,
como Cláudio Frolo.
E o pai dava-lhe chás de tília e
de valeriana para o nervoso e óleo de mamona de quinze em quinze dias para o flato.
Tomásia, medicada
com diluentes enérgicos, esmaiou-se e desmedrou; mas alindava-se
com a palidez doentia do sangue empobrecido, afilaram-se-lhe os dedos,
desceu a cinta dos vestidos
quando os quadris abaixaram, tinha um languir,
um desfalecer tão senhoril, que o pai, ao vê-la morbidamente reclinar-se no
escabelo, dizia sorrindo sobre posse:
— Pareces-me a Inês de Castro que
eu vi representar em Amarante!
Este bom homem, noite alta, folheava
a sua livraria, copiosa em veterinária; erguia-se para
escutar a respiração da
filha e correr-lhe a
vidraça nas noites quentes; porque ela, quando a aurora de alvava
a curva do horizonte, estava ainda na
janela a ouvir os últimos gorjeios dos rouxinóis.
Contemplai uma vitima dos
romances, é pais e mães de famílias!
***
Por uma noite de calma, o
boticário acordou estrouvinhado com um áspero choque de raspão na face esquerda. Sentou-se
espavorido no leito e viu dois morcegos
a esvoaçarem-se contra a vidraça com fortes pancadas e voltearem pelo ar uns voos estridentes que faziam
oscilar a luz da lamparina. Pareceu-lhe agouro;
mas a reflexão levou-o a meditar no modo como os morcegos se lhe meteram no quarto, estando a
janela fechada. Conjeturou
que a invasão se fizera
pela janela de
Tomásia, ou pela porta
do quintal, e afligiu-se na suposição de que a pequena adormecera exposta
ao relento. Foi de mansinho, envolto no
lençol, pelo corredor, com um rolo aceso; parou à porta da alcova, que estava aberta; ergueu a luz para projetar
a claridade sobre a janela, e viu-a fechada. Fez com a mão direita um
abat-jour, a fim de não despertar a filha com o
clarão, e manteve quieto a
ouvi-la ressonar. Nem o leve
ciciar das expirações lhe ouvia.
Assustou-se; e,
roçagando o lençol como os
espectros dos Mistérios
de Udolfo, transpôs o limiar do
quarto. A cama estava feita; a dobra do lençol alvejava na colcha escarlate.
— Tomásia! —
exclamou o pai, como
se ela pudesse estar naquele pequeno recinto.
— Minha filha!
Assalteou-o uma suspeita
angustiosa. Desandou, desceu
à cozinha precipitadamente e viu aberta a porta do
quintal. Neste lance assomou à porta do
seu quarto a criada, que despertara com õ rumor dos passos; mas, vendo o amo vestido tão insuficientemente como o poderia estar
o nosso primeiro avó, se fugisse
do Paraíso depois de inventar o lençol, recuou trespassada de pudor.
— Onde está a menina?! —
perguntou o atribulado pai.
— Onde está a menina?! — repetiu
a criada com as costas voltadas para o escândalo.
— Sim... Onde está?
— Onde há de estar? Na cama.
— Não está! — bradou ele.
— Vossemecê está a sonhar.. Faça favor de sair daí, que eu vou
procurá-la. . Estará no quintal.
Nisto deu três horas o relógio da
botica.
— No quintal às três horas? —
observou ele menos alvoroçado.
— Pois então?
Era a primeira vez!.. Faz favor
de sair daí, Sr. Macário? Olha que feitio de homem! Que preparo! Quero
sair.
Foi então que o boticário,
reparando em si, viu que estava quase indecoroso.
Voltou aceleradamente ao seu
quarto e vestiu-se, enquanto a criada chamava Tomazinha do patamar da escada; e,
como lhe não respondeu, correu
ela o quintal com uma
luz e, vendo aberta
uma porta que entestava com a
rua, levantou um grande choro,
chamando as almas benditas.
O
amo estava já encostado ao beiral do poço, porque não podia mover-se nem falar desde que ouviu o chorar da criada.
Aquela dor nunca o ameaçara nos seus
sobressaltos de pai. Atormentara-o o susto da perder; mas nunca se lhe antolhava a filha desonrada; morta é que
ele a chorara e preferira.
— Eu estou acordado?! — dizia ele
entre si. E friccionava com a mão o rebordo
do poço, para se afirmar na consciência da vigília.
Nas árvores
do quintal começaram a chiar
os pássaros; ao longe soaram as nove
badaladas das ave-marias; na rua
passavam ranchos de jovens que iam para as
segadas cantando o S.
João com acompanhamento de viola.
Que formosa aurora de um dia de
Julho!
***
Ilustremos o sucesso. Quando
Macário chamou de rijo a filha na alcova vazia, estava ela com Vasco no quintal, e já três
vezes se tinham despedido, e três vezes reabraçado. Não me lembram agora uns
versos maviosos de Ovídio que ele fez em
conjunção análoga; mas toda a gente que teve namoro num terceiro andar — altura onde os suspiros exalados desde
a rua chegam em temperatura honesta —
sabe quantos adeus se repetem, quantos juramentos se renovam, até que a patrulha vem chegando com a Moral e
com a baioneta. Tomásia, quando ouviu
bradar o pai, encolheu-se como criança espavorida ao seio de Vasco e soluçou:
— Estou perdida! Não me deixes!
O lance era apertado — não havia
tempo a refletir. Se ele a amava cegamente, o expediente inquestionável era a fuga; se ele
a amava nos limites ordinários da
prudência, tinha de ser uma de duas coisas — infame ou cavalheiro. Ora ele era da geração dos Marramaques: tinha
brios.
— Vem comigo! — disse
fidalgamente, e deu-lhe o braço.
E ela sentia-se feliz e invejável
ao transpor a soleira da porta como se por ali se
evadisse ao desdouro. Aconchegava-se ao braço do amante com estremecimentos de
gratidão e vaidade. na sua
doce turvação nem sequer a imagem do pai lhe azedou com uma lágrima a
taça daquele haxixe das ébrias do
amor. Vasco parecia contente
do seu feito pundonoroso. A submissão amorosa da sua protegida para uma desonra
incondicional era-lhe agradável ao orgulho.
Como a paixão lhe não empoava já os olhos da alma, podia ver em si um homem extraordinário que, por simples
impulso de cavalheirismo, dava na sua
casa bizarra homenagem para uma rapariga da baixa condição de umas a quem a sociedade não costuma pedir contas...
Parece-me que estou a fazer
frases.
A falar verdade, se Vasco, em vez
de levar Tomásia, lhe fizesse um discurso admoestando-a a conservar-se na casa paterna,
e ela transigisse, perdendo ao mesmo tempo a
estima do pai, a estima
de si própria e o amor do amante, nós, os que temos em conta de infames aqueles
que o mundo chama finórios, havíamos de pôr
aquele opróbrio dos Marramaques
a tormento nestas páginas, cheias de cóleras sagradas, e
fustigá-lo a ele e aos seus parceiros com os alexandrinos tartarizados do Sr. Guerra
Junqueiro:
[.. ] Brutos sem B
maiúsculo, A consciência é um
ventre e o coração é um músculo!
Cantai, gozai, bebei até romper a
aurora!
Atirai o
pudor pelo janela
fora Como um
charuto mau que se apagou. Canalhas!
***
Macário não abriu a
botica naquele dia, nem consentiu que se abrissem as janelas.
— Faço de conta que ela
morreu. Está morta. Aconteceu o que eu esperava, mas doutro modo. Tanto choro eu por
ela assim como choraria se lhe
estivessem agora rezando os responsos na igreja.
E, dizendo, as lágrimas
rolavam-lhe a quatro pelas faces e pareciam sulcar-lhas como se dez anos de vida amargurada se
condensassem na tortura de algumas horas.
No fim de três dias,
o farmacêutico apareceu
vestido de luto carregado. Se alguém
proferia palavra a respeito do luto ou da filha, ele, apertando os beiços com o dedo polegar e o indicador, fazia um
gesto de silencio. E, em seguida, sumindo-se
na casa
traseira da botica,
ia chorar. Passados
oito dias, quem abriu
a botica foi um caixeiro que viera de longe.
Macário saiu de
Celorico de Basto e foi
administrar outra farmácia de uma
viúva,
dali quatro léguas, onde eu estudava latim. Ali o conheci. Teria cinquenta anos.
Foi o meu mestre
de gamão e damas. Durante onze meses nunca lhe ouvi falar de Tomásia. No fim do
ano, aliviou o luto; mas, como não
pudera despi-lo da alma, entrou a embriagar-se. E então falava da filha, fazia-me confidências, vociferava
palavras brutais e
tinha arrebatamentos de fúria
em que os olhos lhe ofegavam e rompiam das órbitas.
Estas crises terminavam dormindo.
Tomásia devia
conjeturar tamanhas dores que a
Providência lhe estava debitando no grande livro que um dia se abre
diante do devedor. Que livro esse quando
se abre!
Parece que as pessoas, as coisas,
as forças vivas e as impassibilidades mortas, tudo nos
pede contas, tudo
tem uma garra
invisível que nos arranca do coração
as mais pequenas parcelas!
***
Vasco Pereira Marramaque contava vinte e seis
anos quando a filha
de Macário, ao cabo
de dezoito meses de incauta alegria
na convivência do fidalgo,
lhe ouviu dizer:
— Esta vida não pode assim continuar. — E
prosseguiu enchendo o cachimbo. —
É preciso ter alguma
utilidade. Não hei de
ficar toda a vida metido em Agilde..
Tomásia escutava-o com dolorosa estranheza,
enquanto ele, com ares enfastiados, dizia que o viver das aldeias era
estúpido; que envelhecia naquele sequestro
de gente com quem falasse; que cortara
as suas relações com as casas de
Basto, para que o deixassem só, e que as não queria atar de novo. E concluiu:
— Arranja-se-me ocasião de poder
ser eleito deputado por Braga, e estou resolvido
a fazer todos os esforços para ir à Câmara.
— Tomara eu ver-te
fazer figura! — acudiu Tomásia com
este sincero plebeísmo; e
acrescentou carinhosa: — Eu vou contigo, sim?
— Para Lisboa?.. Ora essa! Nem os deputados casados levam as
mulheres.
— Isso que tem? — replicou ela
amorosamente. — Eu não te deixo ir sem mim...
— Demais a mais,
não vês que eu, se for
eleito, venho a ir daqui a
três meses? Para esse tempo...
— Ah! — atalhou Tomásia. — É
verdade... E tu nessa ocasião não hás de estar ao pé de mim.. e... do teu filhinho?! Serás capaz de me
deixar sozinha...
— Com as tuas criadas...
— Ora!. . Tomaram
as tuas criadas ver-me pelas costas... Têm-me
um ódio!...
— Imaginações tuas... Demais, eu
venho de Lisboa assim que for tempo, menina.
Está descansada, que eu hei de
ser sempre o mesmo para ti...
— Já não és o mesmo, Vasco... Acho-te tanta
diferença que.. desde que estou contigo, a primeira vez que tenho
vontade de chorar.., é agora.
E, proferida a
última palavra, as glândulas lagrimais golfaram como se obedecessem à pressão de uma mola.
— Porque choras? — interrogou Vasco asperamente. — Querias que eu ficasse
estagnado nesta aldeia?! Levas
a mal
que eu me eleve sobre esses fidalgos lorpas que ensinam bestas e passam as
noites a jogar à bisca?
— Quem te diz isso? Vai, vai para
Lisboa, que eu ficarei aqui, ou onde tu quiseres.
E engolia as lágrimas,
provando o primeiro trago amargo
do seu cálix de expiação.
Ele ergueu-se sacudindo o resíduo
do cachimbo, mandou pôr o selim no alazão e saiu sem olhar para a sacada onde ela
costumava ir dar-lhe o adeus saudoso.
Neste dia pensou Tomásia muito e
com tristeza no pai.
Ao anoitecer, Vasco voltou mais agraciado de rosto.
Ela pensou que era o pesar da
ter magoado, remorso
que se dilui em carícias quando o coração acusa; confundiu este sentimento, misto de
júbilo e dor, com o sentimento da compaixão.
O que ele sentia era dó — uma piedade preventiva que se condói da mulher destinada ao abandono, piedade que
não torna quando afinal soa a hora do
tédio e do desamparo.
O candidato vinha de conversar
com os influentes de dois concelhos. Revelou os
primeiros entusiasmos de homem público. Parecia
andar-se já ensaiando retoricamente.
Explicava o que eram
regeneradores, falou do herói de Almoster, desfez nos méritos do Sr. Ávila e João Elias, sarjou
fundamente as carnes dos cabralistas, gesticulando
e passeando, com as mãos no cós das calças como José Estêvão. Tomásia
escutava-o, seguia-o com os
olhos fascinados naquelas energias desconhecidas. Nunca lhe vira mímicas tão
veementes, tamanhos assomos de cólera
política, olhando às vezes fixamente para um ponto elevado. Tomásia não sabia que ele erguia os olhos para a
cadeira da presidência, e às vezes para a galeria
das senhoras, in
petto. Era uma vocação
que estoirara de
súbito, imprevista e fatal. Ele
mesmo, a sós com a sua transformação, espantava-se de ter tido na sua pessoa uma incubação surda e
tanto tempo apática.
Nos dias seguintes, poucas horas
passou em casa. Acompanhado dos homens notáveis
de Basto, foi conferenciar com as autoridades a Braga. Opuseram-se-lhe grandes obstáculos —
atritos, diziam os políticos
no seu calão. Vasco, beliscado no
orgulho, jurou ser eleito
à sua custa, comprando a
consciência aos eleitores.
Naquele tempo uma consciência de eleitor rural regulava entre dois pintos e quartinho, com jantar de cabrito
guisado e vinho à discrição.
O abade de Pedraça disse-lhe que
seguisse o conselho de Luís de Camões se queria
vencer o candidato realista,
o seu competidor; que o seguisse à
letra, principalmente no artigo
«regedores». E, como Vasco se risse do anacronismo de
Camões com regedores no
século XVI, o abade
tirou da estante Os Lusíadas
e no canto VI, estância LII, apontou-lhe os dois versos finais, que rezam assim:
Por manhas mais subtis e ardis
melhores, Com peitas adquirindo os regedores.
— Adquira-me os regedores
com peitas —
acrescentou o abade de Pedraça,
tocando-lhe com a lombada do poema no ombro.
— Estes versos são de
profética e perpétua serventia
em Portugal. Tão preparados
estamos hoje para o sistema representativo
como em tempo de Camões. Que anda a vossa
Excelência aí a desbaratar pérolas de eloquência por esses lameiros? Querer meter ideias sociais na cabeça destes
lavradores é querer furar o badalo daquele
sino com uma verruma (e apontava para a torre). Isto aqui são varas de porcos que se movem para onde os puxa o
instinto da bolota. Bolota, Sr. Vasco, bolota,
e nada de palavras! Pois a vossa
Excelência persuade-se que pode
haver um deputado escolhido pela inteligência dos eleitores que não têm um mestre-escola?
Nós, os
minhotos desta corda
de Basto, demos fé de
que não reinava D. Miguel quando os
frades despiram os hábitos e
os capitães-mores as fardas; porém, quando por aqui se alastraram os
executores da fazenda, dissemos aos realistas
que acendessem as luminárias, porque,
D. Miguel chegou à barra
Sua mãe deu-lhe a mão,
Anda cá, o meu querido filho,
Não queiras Constituição.
E cantarolava o folgazão abade de
Pedraça, batendo o compasso na capa d'Os Lusíadas.
***
Vasco Pereira Marramaque saiu
eleito... por novecentos mil-réis, trinta e nove cabritos e
duas e meia pipas de vinho verde —
vinho que devia ser um
exagerado castigo daquelas consciências
corrompidas dos cidadãos. Graças a Camões
e ao abade de Pedraça, o fidalgo de Agilde foi proclamado contra os protestos de duas mesas eleitorais que estavam
vendidas ao competidor.
Tomásia chorou em segredo para não aguar o contentamento do representante
do povo. Redobrou de afagos a Vasco, pedindo-lhe, em nome do filhinho, que a não esquecesse. Sentia-se
descaída e desnecessária na vida dele; fiava-se,
ainda assim, nos
maviosos enleios da
porvindoura criança. O egoísmo
não lhe dava lanço de recordar-se com angústia da causa que a fazia esperar tanto
do amor paternal: devia ser o grande
amor que o seu
pai lhe tivera, o insano mimo com
que ele a criara, acalentando-a nos braços, desde os quatro anos, em que ficara órfã
de mãe. Era cedo.
As disciplinas do remorso começam
a macerar quando a alma não tem evasiva por onde lhes fuja, nem alegria que lhes verta bálsamo nos
vergões.
Saiu Vasco Pereira
para cores, estadeando
um aparato condigno
dos seus apelidos.
Como não ia bem seguro na
transcendência dos seus discursos e na distinção exequível por esse meio, fez-se preceder de
cavalos e lacaio, escudeiro e jóquei preto.
Conhecia o Chiado e tinha sondado a índole de Lisboa. Conjeturou que dois cavalos o levariam mais depressa aos
sonoros átrios dos palácios do que dois
discursos a respeito das estradas concelhias de Gondiães e Painzela, para os quais levava apontamentos em que tencionava
encravar Aristides, e citar, a propósito de estradas
decretadas pelos Cabrais e Elias,
o Timeo Danaos et dona ferentes.
E, dizendo isto, tinha dito todo o latim que se sabia nas duas Câmaras
e no jornalismo, excetuada a
Revolução de Setembro, onde
o Sr. António
Rodrigues Sampaio motivava
latinamente invejas apopléticas
ao Sr. Conselheiro Viale.
Os fastos parlamentares deste
deputado provincial não nos são mais conhecidos que os discursos de Hermágoras,
retórico de Temnos. Ao entrar na sala
de S. Bento, cada
cabeça frisada dos
seus colegas foi para
ele uma cabeça de Medusa;
petrificaram-no.
Conhecia-se interiormente grávido
de patriotismo, cachoavam-lhe as ideias no cérebro; mas sentia-se sem gramática. Chegou,
no delírio da sua alucinação, a imaginar
que no Parlamento era necessário saber a língua portuguesa! Ouvia discursar alguns colegas, e não se convenceu
que eles estavam ali autorizados pelo
poema do abade Casti. Em casa repetia os dois sabidos discursos sobre estradas com ênfase e modulações um pouco
demosténicas e talvez imitadas do
Sr. Arrobas; porém, aberto a oportunidade
de pedir a palavra, não sabia por onde começar este peditório. Dir-se-ia que
o presidente era Perseu, que lhe
mostrava no fundo do seu chapéu a cabeça da Górgona; ou, para melhor o compararmos a
sabor cristão, o presidente
impunha-lhe silêncio como o conhecido frade do Buçaco que perfila o
dedo na ponta do nariz.
Desistiu de falar, reservando-se para as ocasiões imperiosas em que a Pátria necessitasse das explosões dos
seus Brutos —
aludia àquele Bruto I que estivera calado até ao momento em que Lucrécia
foi violada; e mais, o deputado
por Braga estava já tão apestado dos miasmas do Café Marrare que não acreditava
em Lucrécias.
Verdadeiramente corrompido — diga-se isto com a breve energia de Tácito nos
formidáveis lanços da história
—, Vasco Pereira Marramaque
estava irremediavelmente corrompido pela
convivência de uns leões que sacudiam as crinas ungidas das lágrimas das mulheres, nos
seus divãs do Hotel de Itália. O conde
da Taipa, o seu primo por Marramaques, Manuel Browne, José Vaz de Carvalho,
D. Francisco Belas, José
Estêvão, e outros que ainda vivem expiando o passado, eram
os seus íntimos.
Também era dos seus Almeida Garrett, que dourava o bordo do cálix por onde
se bebiam aqueles venenos diluídos nas
palestras de uns homens que se vingavam do tédio dos prazeres, desfolhando com sarcástica e gentilíssima
nonchalance — era o termo — as flores em cujas pétalas havia lágrimas.
O poeta das Folhas saldas relia
e comentava ali os seus madrigais
com umas facécias juvenis tão congeniais da sua
alma sempre criança
que os mais novos do grupo
lhe invejavam as reflorescências do estilo e as mulheres que
ele perpetuou até nós de parçaria com os
fluidos transmutativos. Pasmado das proezas destes homens, olhou para si e
achou-se miserável nos seus amores sertanejos para uma obscura filha de
boticário. Não tinha façanha que contar
quando lhe pediam casos da sua vida; via-se forçado a inventá-los para não ser ridículo, nem dar suspeitas que
passara do seminário de D. Fr. Caetano Brandão
para o Parlamento.
Relatava então raptos e
adultérios, pondo os maridos nas
cenas grotescas das tragédias e caricaturando as desgraças para não desafinar do tom dos seus
amigos.
Era um
tartufo de patifarias — o
que aí há de mais covarde e perverso no canalhismo das salas.
Entretanto, dava-se pressa em
adquirir a certeza prática de que tinha direitos a contar aventuras menos fantásticas.
Ser-lhe-ia mais custoso
ser honesto se ensaiasse a fábula
de Daniel na caverna dos leões, ali em Lisboa, onde mais tarde se
perdeu outro deputado de melhor casta —
aquele Calisto Elói
de Silos Benevides de Barbuda que
eu chorei n'A Queda de um Anjo.
Em breve prazo ombreou tom os mestres.
Não direi, todavia, que Vasco baldeasse
pelas trapeiras a desonra
ao seio das
famílias. Estavam já cheias disso.
Ele, no seio
dessas gentes, entrava
impercetível como um
regato no bojo do mar Morto, que
esconde as relíquias de Sodoma. Algumas, com tal hóspede ainda não carmeado inteiramente de lã
minhota, julgar-se-iam em via de
regeneração. Vasco, na sua panóplia amorosa, tinha coroas de baronesas e condessas;
mas Cunha Sotomaior dizia-lhe que os
tais troféus pareciam arranjados na Feira da Ladra, ou roubados ao
gabinete arqueológico do abade de
Castro, Deus lhe perdoe.
***
Nem tanto.
O
deputado escondia ao exame dos
seus amigos uma
luva branca de cinco pontos
e a medalha de um
retrato. Sagrava estes dois objetos um
amor incontaminado, uma paixão
que se urdira com duas fibras puras do coração de Vasco.
A menina amada era
ilustre, formosa, inviolada
na sua reputação e pobre. O seu pai era conde, representante de
condes que já o eram no reinado de D.
Manuel. Os seus irmãos eram dois fadistas, as melhores duas navalhas da
Travessa dos Fiéis
de Deus e arredores. Velaram as
armas no sótão da Severa e remedavam o conde de Vimioso nas
características farsolices do alto banzé. Mordia-os
uma aspiração ardente: queriam
ser boleeiros. Aquele grande batedor
José Mulato, em domingo de
tourada, jantava com eles no Penim ou no Colete Encarnado;
abraçavam-no, beijavam-no,
estudavam-lhe os trejeitos na bebedeira,
e atemperavam-se tanto às suas gingações que ainda no estado normal pareciam ébrios.
O conde resvalava vagarosamente à
sepultura, carregado com a ignominia dos dois filhos. Amparava-lhe a cabeça branca uma
filha. Era esta a mulher que Vasco
Pereira vira em Sexta-Feira de Paixão na capela do seu parente o conde de Redondo.
Aquela capela,
naquele tempo e na Semana
Santa, era o confluente das famílias de mais alta estirpe, que não
reconheciam a soberania de D. Maria II. Vasco
Pereira Marramaque, o representante dos castelões e ricos-homens de Lanhoso,
tinha ali parentes; e em
contacto com eles
sentia-se abalado pelas reações
da raça e entorpecido por um magnetismo miguelista.
Sobejavam-lhe predicados
agraciáveis, além da prosápia e fama de rico. Vestia com primoroso bom-tom. Era perfeito homem na
corporatura e naturalmente esbelto nas
atitudes. Trigueiro-pálido, bigode farto e negro, a cara sentimental dos romances.
O sorriso sincero,
sem os vincos labiais com que
alguns artífices de chalaças se
narcisavam ao espelho para se inculcarem medonhos frecheiros de sarcasmos. Era, enfim, a flor do
Minho e o querido da sua prima em grau
desconhecido, D. Leonor de Mascarenhas, filha do conde de Cabril.
O
ideal, que o preocupava antes de
se materializar nas lides
eleitorais e na sensaboria
das intimidades monótonas com Tomásia,
reapareceu-lhe na angélica beleza
de Leonor, na santidade do seu viver, na piedade filial com que lenimentava
as acerbas dores do conde. Respeitou-a
e adorou-a, como se a visse na candura dos dezoito anos, quando lia
O Menino na Selva. Retraia-se acanhado,
se lhe cumpria ser um agradável conversador. Parecia ter perdido no
comércio de amorios despejados
a moeda do fino ouro — a
frase sã, simples e afetiva de
que as almas singelas se contentam.
Leonor sabia que era amada; e o
conde, fiado na probidade da filha, consentia que o rico
e ilustre Vasco Pereira
a cortejasse, tirando a
partido que o casamento se
fizesse sem precedências de
cartas, rendez-vous e outras frivolidades que deterioram a gravidade de tal ato. Sistema antigo e bom. O
conde havia assim casado. Não constava
que na sua família, muito mais antiga que
a instrução primária, desde o seu trigésimo avô Leovigildo, rei visigodo na Lusitânia, alguém se matrimoniasse por cartas.
Nesta conjuntura
recebeu Vasco a notícia de que era
pai de um menino. Escrevera o
feitor a
carta que Tomásia ditara
e num P. S. acrescentara pelo seu punho:
Há treze dias que não me escreves!! Não te esqueças do leu filhinho.
O pai do menino achou exagerados
os três pontos de admiração e não pôde sofrear
a zanga que lhe fazia aquela espécie de violência. Com que direito se admirava a filha do boticário? Cuidaria ela
que era a baliza do destino de um Marramaque?
Talvez se persuadisse que o filho era o remate da sua felicidade! Imaginava certamente que ele, o esperançado
noivo de uma Mascarenhas, ia logo, a
jornadas forçadas, para casa,
doido das alegrias de progenitor,
acocorar-se ao pé do berço e babar-se de
risos paternalmente palermas!
Ele pensava isto pouco mais ou
menos; mas não respondeu assim.
Dizia que ficara muito jubiloso
com a notícia; arranjasse ama e mandasse criar fora o menino, porque a estação ia muito
agreste; mandava que recomendava à mãe
que se acautelasse do frio, que o batizasse em nome dela e lhe pusesse o nome que lhe agradasse; ordenava finalmente ao
feitor e à mulher que fossem padrinhos. Era
uma carta em que não ressumbrava sentimento
amoroso de pai nem de amante, salvo
a recomendação de que tivesse
cuidado com as constipações.
Tomásia leu a carta por entre
lágrimas e disse de si consigo:
«Está tudo acabado.» E,
descobrindo o rosto da criança que aquecia sobre os seios,
soluçou: «Quê será de nós?» Respondeu a
Vasco, dizia que o menino seria batizado sem nome de pai e com os
padrinhos indicados; quanto, porém, a mandá-lo criar, declarava
que a ama do seu filho havia de
ser ela; mas, se Vasco instasse pela criação fora, em tal caso
teria ela de sair com o filho. E acrescentava
com uma serenidade que a dor atabafada igualava para um raro heroísmo no infortúnio:
Recebo a tua carta na mesma hora
em que recebi a notícia da morte do meu pai.
***
A notícia enviara-lhe o
praticante e administrador da botica, perguntando se devia continuar a dirigir a farmácia da qual
ela era a herdeira. E mandava-lhe inclusa
uma recente carta de Macário Afonso em que aprovava as contas do caixeiro, agradecendo-lhe e louvando-o pela
probidade com que fiscalizara a sua
casa. Dizia mais que tinha tido ameaças de apoplexia, a que
o cirurgião chamava febre cerebral; e
concluía:
Se eu morrer de repente, o meu
testamento está feito. Aminha herdeira é essa filha que me matou. E herdeira da sua mãe,
porque essa casa e tudo o que está nela
era da minha defunta mulher Tudo lhe deixo; mas não posso perdoar-lhe a ingratidão com que me desamparou.
As angústias mais cerradas deixam
sempre clareira iluminada por uma réstia de esperança.
A alma opressa é engenhosa
em achar fenda por onde se desafogue.
Assim Tomásia, entre a
carta de Vasco e a do pai,
entre a desesperação
de amante e o remorso
de filha, amparava-se à
certeza de ter uma agência bastante à sua independência.
O fidalgo não desgostou da
expressão seca e altiva da resposta de Tomásia. Como receava lamúrias e queixumes que
complicassem o inevitável desenlace, foi-lhe
agradável supor que ela transigiria com a separação sem violência nem escândalo. Por outra parte, a sua vaidade
sentiu-se da sobranceria de Tomásia, da hombridade com que ela o
tratava como de igual para igual,
com a fácil transigência da mulher enfastiada.
Como quer que fosse,
Vasco, sacrificando o seu amor-próprio, antes queria ser aborrecido que importunado pelas lástimas.
Mas as lástimas
apareceram na carta do correio
imediato. Quebrantado o orgulho ferido e aplacado o despeito, afluíram
as lágrimas ternas e suplicantes. Tomásia, com
o filho no regaço,
e ainda no leito, escreveu com eloquente paixão
as suas saudades, as lembranças do que Vasco lhe dissera e lhe prometera naquelas noites em que ela, corajosa
como a culpa
sem pudor, descia ao quintal a
recebe-lo nos braços, e a lançar-lhe aos pés a sua honra, e a honra e vida do seu pai. Implorava-lhe que não
enjeitasse o seu filho, que o batizasse
no seu nome, que o fosse ver, se queria ficar preso às asas daquele pequenino anjo.
A dor era sincera nesta carta;
mas a leitura de novelas fornecera-lhe bastantes frases, não menos conhecidas do deputado.
Isto inquietou-o. Havia já pedido
a mão da sua prima Leonor. Devia recebê-la passados dois meses. Preocupavam-no os
presentes de noivado. Precisava ir a casa buscar as joias da
sua mãe para engastar
os diamantes em adereços de feitios modernos.
Queria vender para um brasileiro
uma quinta em Lanhoso e a outro brasileiro os seus foros de Felgueiras. Carecia de
arredondar uma dúzia dê contos para estabelecer-se na
corte com cocheira e
salão, com parelhas e amigos. Calculava,
feitas as vendas, oito contos
de renda, afora
umas presuntivas sucessões
em vínculos e prazos. O
futuro sorria-lhe como a todos os namorados e noivos com oito contos de renda; mas Tomásia
era-lhe um estorvo irritante.
Enquanto ela estivesse
em Agilde, Vasco, se ali
fosse, expunha-se a grandes
sensaborias.
Nesta urgência, acudiu-lhe ao pensamento o seu velho amigo e mestre de Lógica, o já conhecido abade de Pedraça.
Sentou-se e escreveu
compridamente.
***
Tomásia não recebera resposta à
carta das lágrimas humildes. Sentia-se outra vez em reação de orgulho. Punha todo o seu
coração nos lábios que beijavam a
criança e pensava, outra vez, no contentamento de ter uma casa a sua com uma farmácia acreditada.
Pesava já
sobre ela esta atmosfera crassa e brusca do positivismo moderno. Gostava de ter do seu. Não lhe metiam medo os
senhorios, nem a carestia dos comestíveis,
nem o desprezo sovina de parentes. Tinha seguro o pão do seu filho. Começava a
odiar o pai
dessa criança tão linda; mas
de súbito marejavam-lhe as lágrimas, lembrando-se do prazer que sentiria Vasco se sentisse nas mãos o seu filhinho...
Em um destes lances, anunciou-se
o abade de Pedraça, que queria falar à Sra. Tomazinha. Ela estremeceu. Aquele padre nunca lhe falara
nem a cumprimentara, tendo-a encontrado
de passagem quando procurava o fidalgo. Era um clérigo severo, egresso da
Ordem de S. Bento, liberal,
mas de costumes austeros, e
talvez acintemente exagerados para
demonstrar que liberdade não é licença
e que somente o clero estúpido é
desculpável de ser devasso.
Foi a trêmula Tomásia à sala,
onde o abade passeava com estrondosos passos e rijas pontuadas da bengala no tabuado.
— Viva, Sra.
Tomásia — disse
ele quando a viu erguer o reposteiro de baeta
escarlate com armas.
— Sr. Abade... — murmurou ela. —
Passou bem?
— Graças a Deus, bem; e como está
a menina?
— Muito agradecida...
— Com licença — e sentou-se. —
Faz favor de sentar-se, que temos que conversar.
Por aqui não está nenhuma curiosa
que nos escute? Veja lá. .
— Esteja a
vossa Senhoria descansado que não está ninguém.
— E foi fechar a porta por onde entrara, recomendando
para dentro que a chamassem se o menino
chorasse.
Esta recomendação sem rebuço
escandalizou algum tanto o padre, severizando-lhe o aspeito.
— Ora, senhora — disse ele — Já
que falou no menino, comecemos por aí. O
Sr. Vasco Pereira não pode reconhecê-lo no ato do batismo, isto é, não quer, porque, reconhecendo-o, prepara
complicações e dificuldades aos filhos legítimos,
se os tiver. E é natural que os tenha, porque o Sr. Vasco é rapaz, é rico, é fidalgo, e, mais hoje mais amanhã,
casa.
Rosou-se ligeiramente o rosto de
Tomásia, e sentiu uma forte e súbita opressão no respirar.
O
abade, que por falta
de vista não
dera tino da comoção,
agourou favoravelmente da apatia
de Tomásia e prosseguiu:
— Devo ser franco, senhora; com
meias palavras não fazemos nada: o Sr. Vasco
vai casar com uma a sua prima, filha do Sr. Conde de Cabril.
Tomásia ergueu-se soberanamente,
admiravelmente, e disse:
— Não tem mais nada que me dizer?
Dê-me licença, e queira esperar um pouco,
enquanto eu vou buscar as chaves das gavetas do Sr. Vasco para lhas entregar.
— A mim?
— Pois a quem? Eu vou sair desta
casa com o meu filho. O Sr. Abade vem despedir-me,
e por tanto há de ser testemunha de que eu saio desta casa como entrei...
— Eu não venho despedi-la,
senhora! — Volveu ele,
sentindo-se apoucado diante
daquele gentil e arrogante desprendimento. Faz favor de me ouvir. Sente-se..
Tomásia sentou-se,
com os olhos entumecidos de borbotões
de lágrimas, represadas pela
força da vontade.
— O Sr. Vasco Pereira —
continuou, pausando as palavras que proferia e acentuava com inflexões mais respeitosas —
quer que a senhora e o seu filho tenham
o necessário, e até mesmo o supérfluo à sua subsistência..
— Isso temos nós, Sr. Abade —
interrompeu ela. — Tenho a minha casa e a
minha botica.
— Não obstante, o Sr. Vasco
Pereira quer fazer à Sra. Tomazinha doação do casal de Paços, que anda arrendado por dez
carros de milho...
Levantou-se ela de golpe outra
vez e exclamou atropeladamente:
— Não dou direito
a vossa Senhoria nem
mesmo ao Sr. Vasco
a ofenderem-me. Eu não me aluguei
nem me vendi a esse senhor. Também não entrei
nesta casa como criada, e por isso não quero ordenado. Já lhe disse que tenho com que viver sem esmolas; e, se
precisasse delas, não as pediria ao Sr. Vasco. Enfim,
eu vou sair imediatamente daqui.
Se a vossa
Senhoria quer tomar conta dos objetos de valor que aí estão,
receba as chaves; se não quer, vou
entregar tudo com testemunhas ao feitor.
— A menina destempera! —
redarguiu o abade. — Ora venha cá, menina! Que
necessidade temos nós de
levantar aí por essas aldeias uma poeira escandalosa que vai dar pasto aos dentes da
calúnia? Lembre-se que tem um filho e
que esse menino pode ser que ainda venha a ser considerado pelo seu pai.
Não rejeite a doação, porque o casal de Paços é um bonito patrimônio para o seu filho, se o quiser ordenar; e, quer
ordene, quer não, é uma legitima que o
habilita a casar-se vantajosamente..
Pense, Sra. Tomásia, pense. .
— Tenho pensado, Sr. Abade.. Tenho pensado.. Vou sair..
Que sou eu aqui?... O meu Deus!
Quem me diria há dois anos!.. Como eu
vivi enganada. . Que ingratidão..
Estas palavras balbuciadas entre
soluços romperam a represa das lágrimas.
Tomou-se de uma
grande convulsão,
arquejando, debatendo-se como em ânsias de estrangulada. Rasgava o decote do
vestido, expedia gritos histéricos e resvalava da
cadeira ao pavimento quando o
abade a tomou nos braços, desmaiada,
álgida, e a recostou no espaldar de uma poltrona.
Acudiu aos brados uma criada com
a criança no colo. Tomásia cravara os olhos pávidos no
filho; mas parecia fitá-lo com o
íris imóvel como na amaurose. A criada chegava-lhe a criança ao rosto e com alto
choro perguntava se a senhora tinha morrido.
O
abade, que só
conhecia os ataques levemente nervosos de algumas confessadas, estava assustado, confuso e
compadecido.
— Mal hajam os vícios,
mal hajam as paixões! —
murmurava o egresso, tomando-lhe o pulso,
com o receio de ter sido o portador
da morte àquela pobre mulher que deixava orfanado um filho de
quinze dias.
A mulher do feitor, que tinha
sido criada da fidalga, mãe de Vasco, senhora histérica, disse que conhecia aquela doença
que atacava a sua ama, quando se-- afligia
com o fidalgo por causa das fêmeas.
(Em Basto — permitam o parênteses
—, as mulheres que motivam desmaios nas damas
casadas chamam-se
fêmeas. Parece que a intenção
é aviltá-las à baixa
condição das espécies em que há
machos.) — Vamos levá-la para a cama — disse ela —; é preciso desapertá-la e pôr-lhe a
cabeça bem alta. Janelas
todas abertas, e vinagre na testa com água fria, e sinapismos
bem fortes nos pés. Ajude-me a levá-la,
Sra. Rosa.
— E o menino? — disse a criada.
— Dê cá o menino — acudiu o
abade.
— Vossa Senhoria não o deixe cair
— recomendou a Rosa.
— Você é tola, mulher! Eu deixo
lá cair este passarico!
E, pegando nele
sem jeito nenhum, sentou-se, enquanto as duas mulheres conduziam a desfalecida.
— Que é do meu pequerrucho? —
dizia o abade com a criança
de barriguinha ao ar nas palmas
das mãos. O pequeno chorava franzindo a testa em refegos
escarlates. — Que queres tu,
o meu chorincas? Parece que tens mau gênio?
Psiu, psiu! Cala-te. Quem tem
um nené? — E
cantava-lhe um improviso, que o pequenito parecia patear
rabeando com pés e mãos. — Ora esta! a
minha missão acabou por ficar eu ama-seca do crianço do Sr. Vasco! Psiu,
olha, engrimanço, pataratinha!
Oh, oh, oh! — E
acalentava-o, embalando-o nas mãos de cima para baixo, como quem padeja uma
broa.
A criada veio buscar o pequeno e
disse alegremente que a senhora já falava e perguntara logo pelo filho.
— Pois leve-lhe, que já não é sem
tempo. Apre! Estou a suar! E — ouviu? —
diga-lhe que eu quero ser o padrinho dele; e que brevemente cá volto.
***
O
abade informou o fidalgo dos
sucessos ocorridos; e, depois, acrescentava que no mesmo dia, ao anoitecer, recebera um
molho de pequenas chaves de gavetas que
Tomásia lhe remetera, oferecendo-lhe a
humilde casa onde nascera
e agradecendo-lhe o favor de lhe batizar o filho.
Meu amigo [ajuntava o padre], a
vossa Senhoria não conhecia com certeza os elevados espíritos desta mulher. Este caso
prova que as ações excelentes não são privilégio
das castas fidalgas. Vi que
ela tinha alma
de mulher porque chorou;
porém, quando esmagava o coração
debaixo dos pés da sua dignidade,
era sublime! E porque o era, Sr. Vasco, ouso dizer-lhe que a vossa Excelência
foi cruel com esta malhes e
lá pela
vida fora, se não encontrar outra semelhante. há de recordar-se desta com
pesar.
Com que desplante os homens
atiram aos abismos da irreparável
desgraça umas criaturas que levam consigo os escondidos
tesouros de felicidade que lhes rejeitaram!
Quantos bens da vida íntima a
vossa Excelência gozaria ligado honestamente a esta mulher e a esta criancinha! Veja que
nobre coração! O que ela queria era que
não a julgassem mulher vendida. O casal de Paços, que a vossa Excelência lhe doava,
pareceu-lhe uma injúria
sobre a ingratidão. O
Sr. Vasco. Ou se enganou
com ela, ou me quis enganar a mim. Devia dizer-me que esta mulher do povo tem brios que não são comuns;
dissesse-mo, se o sabia, para eu me esquivar
a mensagem tão
alheia dos meus deveres de padre,
e até de amigo que fui, e desejo
continuar a ser, da vossa Excelência.
Mas, olhe, senhor
o meu, se o
mundo lhe não condena esta
ruim ação, condeno-lha eu, que sou da religião de Jesus, que santificou
Madalena. Escute o que lhe diz o eco da
divina justiça, que nos repercute na consciência. O que eu lhe assevero é que a justiça está da parte desta
infeliz mãe; e os que fazem iniquidades
não são decerto os bem-aventurados...
Prosseguia neste estilo, algum
tanto de sermonário, e concluía dizendo que ia ser
padrinho do menino: porque o tivera cinco
minutos nas mãos; e lhe parecia
que, se a mãe lho desse, o levaria consigo, aquecendo-o entre o seio e a
batina, debaixo da qual só é
permitido sentir pulsar no coração
a piedade que Jesus Cristo sentira pelas criancinhas.
***
Esta cana não comoveu profundamente Vasco Pereira. Estranhou que o abade de
Pedraça, nascido numa das mais
nobres casas do Minho, filho
de capitão-mor e
neto de um chanceler,
alvitrasse o casamento de um Marramaque
com a filha do farmacêutico Macário!
Os tópicos religiosos da epistola
pareceram-lhe jesuíticos e
incompatíveis com o espírito liberal do egresso, que fora o primeiro a abandonar o
Mosteiro de Tibães.
Aborreceu-me a hipocrisia
caturra do seu velho mestre de Filosofia
Moral, que em assuntos de
metafísica citava, sorrindo, uma frase de Protágoras: «A respeito de deuses, não sei se eles existem nem
se não existem.»
Quanto a Tomásia, sinto dizer, em desonra do meu sexo,
que o noivo de D. Leonor de Mascarenhas viu em
tudo aquilo que maravilhara o padre uma simples reminiscência
de certa Augusta —
personagem de um mau romance que então
se lia, chamado Onde Está
a Felicidade, e até lhe quis parecer que o abade de Pedraça se
metera nas romanescas veleidades
de imitar o outro personagem piegas que lá se chama
o poeta. Com esta interpretação das agonias de Tomásia e das
austeridades equivocas do egresso, Vasco
Pereira ficou satisfeito.
Escreveu entretanto ao abade
agradecendo-lhe os conselhos e admirando-lhe o
sentimentalismo — isto com uns períodos facetamente arredondados e umas agudezas de espírito fone
que deram em resultado passar a
carta feita pedaços das mãos do padre às asas do vento,
Mas, como o fidalgo dizia vir na próxima
semana a Basto, e ir por Pedraça receber as chaves, deu-se pressa o abade em avisá-lo que procurasse as chaves em
casa do seu reitor. As graçolas não
redarguiu. O egresso, como era de nobilíssima linhagem,
olhava sem preconceito para fidalgos,
e no de Agilde não achava ressalva
que o estremasse do comum dos
homens indignos da sua estima.
Do que ele curou foi de batizar o
filho de Tomásia. Deu-lhe o seu nome, o sobrenome
do seu avô boticário e o apelido da sua avô materna. Chamou-se o menino Álvaro Afonso da Granja.
A mãe assistiu à cerimônia, por
instâncias do compadre, que a levou a casa em companhia
da sua irmã,
madrinha do menino. Dizia esta
senhora que, enquanto se não demonstrasse que as mulheres
seduziam os homens, havia de ser
indulgente com as seduzidas. Tinha
amado, tinha chorado e encanecido
aos vinte e cinco anos. Cativou-se tanto
da resignada paixão de Tomásia que a visitava
a miúdo e a levava consigo para Pedraça.
***
O noivo queria as joias da mãe,
queria vender a quinta de Lanhoso e os foros de Felgueiras. Era forçoso ir.
Entrou por uma noite feia
em Agilde. Recebeu do reitor as chaves das cômodas e dos contadores. Encontrou o feitor
no patamar da larga escadaria com
uma lanterna de luz mortiça; parecia uni vulto
de granito a iluminar a porta
de um jazigo enorme. Quando
entrou na sala de espera
sentiu-se incomodamente
impressionado. Por aquela vasta quadra zuniam nos forros as correntes da ventania.
— Acendam velas! —
exclamou ele com
desabrimento. — Que é das
ciladas?
— A minha mulher está doente...
— E as outras?
— Quando a senhora se foi embora,
elas foram também — respondeu o feitor.
— Quem me há de servir?
— Se a
vossa Excelência mandasse dizer que vinha, eu teria
arranjado criadas; mas só
já de noite o Sr. Vigário
me mandou avisar. Amanhã se arranjará
tudo.
Passando de sala em sala, chegou
à saleta do seu quarto de dormir. A entrada, tropeçou num móvel.
— Que é isto? Alumie, António!
Era um
berço de mogno, suspenso em colunatas com dossel
e cortina de musselina. Este berço
enviara-o ele de Lisboa, logo que
ali chegara, prometendo ser o primeiro que embalasse o seu filho.
Deteve-se dois segundos a olhar
para o berço.
Recordava-se; mas não saberia dizer o que recordava; talvez estivesse escutando o sibilar do vento, que parecia um
concerto de gemidos.
Entrou no quarto, acendeu as
velas dos castiçais e fechou a porta. Atirou-se para
uma das camas. Sobre uma
banqueta próxima do leito; em que se reclinara, estava papel, tinteiro e duas
cartas abertas; uma era a última que ele escrevera a
Tomásia; e a outra carta
inclusa nas duas páginas era a
primeira que Vasco lhe escrevera,
jurando-lhe por alma da sua mãe ser ela o primeiro, o infinito amor
da sua vida.
Esteve alguns minutos como absorvido na contemplação
da luz
da vela, com as duas
cartas entre os dedos. Parecia contrariado. Ergueu-se, fez um gesto de
repugnância, sacudindo com a mão o que
quer que era que lhe
fazia pressão na testa. Abriu as
gavetas de um contador preto com lavores metálicos. Tirou um
cofre de joias, cuja tampa de prata dourada
tinha brasão esculpido. No
côncavo dos relevos do escudo estavam dois anéis de diamantes miúdos, que
ele dera a Tomásia. Examinou-os um momento, abriu o cofre e juntou-os às outras
joias, que não examinou. Relançou
os olhos em redor. Pendentes de cabides de pau
estavam dois vestidos de Tomásia. O seu guarda-roupa era
modestíssimo. Como não pusera pé fora
daquela casa desde que entrara até que saíra para sempre, recusara-se a aceitar
atavios inúteis. Levara consigo os vestidos que o ajudante da botica lhe remetera quando o pai se retirou.
Perguntam-me se Vasco Pereira Marramaque já enxugou três, ou ao
menos duas lágrimas?
Quando chamou o escudeiro e lhe
perguntou se estava pronta a ceia, tinha os olhos
enxutos; mas isto nada prova
contra as suas qualidades sensitivas,
O querer cear também não
demonstra insensibilidade nem mingua de aflição. D. Fernando,
duque de Bragança, quando
passou do oratório para o cadafalso, pediu figos e vinho. Comer é
uma brutalidade fisiológica independente da alma. Deixar-se morrer de fome para extinguir
os elementos da dor moral é hoje
impossível. Só se morre de fome nas condições de Ugolino. A mitologia tem
muitos casos como o do marido de
Andrómeda; na história
da Roma imperial há muitos como o de Diocleciano e de
Júlia, mãe de Caracala, e na história lendária
alguns como Gabriela de
Vergy. Ora Vasco
era o nosso contemporâneo. Ceou,
dormiu, e ao outro dia mandou
avisar os brasileiros, com quem tratou os seus negócios, e,
realizadas as vendas, foi para a cone.
***
Nos salões do conde de Cabril
pesava desde 1833 o luto silencioso de
uma sociedade extinta. Os estofos de
damasco tinham desbotado debaixo das lonas apresilhadas de laços escarlates;
o ouro dos tremós João V
tinha a
cor esmaiada dos
velhos altares. O
conde fugia daquelas salas
onde se
lhe representavam à
pugentíssima saudade os fantasmas de tantas mulheres formosas que instantaneamente se sumiram na
obscuridade e envelheceram na pobreza; de tantos homens ilustres que,
num lance de desfortuna
política, resvalaram da
altura de sete séculos.
D. Leonor lembrava-se dever ali,
na cadeira de um
trono móvel, D. Miguel, e de brincar entre os braços das sereníssimas infantas que a beijavam.
Os filhos do velho camarista de
D. Carlota Joaquina, mais idosos que a
irmã, memoravam a ida de D. Miguel à sua cavalariça, e estar encostado ao ombro
do conde a ver marcar a ferro na anca um
cavalo de Alter; lembravam-se também de ver jogar a barra com uma alavanca em Salvaterra, segurar um touro pela
cauda, etc., e cheios de saudade do seu
rei, exclamavam: «Era um
grande pândego!» Contavam então
as brincadeiras prediletas daquele
senhor, e lá vinha o caso da sua Alteza Real em pequenino furar a barriga das galinhas com um
saca-rolhas, fato restabelecido e
autorizado pelo Sr. Dr. Bispo António Aires
de Gouveia, no seu livro da Reforma
das Prisões.
Destes casos e tempos
felizes parecia estarem-se carpindo na
vasta sala, eufonicamente chamada d'armas, os lugentes
retratos, todos autênticos, como o
de Leovigildo, primeiro
rei visigodo na Lusitânia. Fitavam
os seus olhos pávidos nos
guadalmecins esflorados e
puídos, onde a espaços
se viam os heróis do assédio de Troia, Príamo e Aquiles, e os mais, com os olhos furados e as bocas rasgadas até às orelhas
— recreações infantis dos meninos do conde, quando se exercitavam no jogo da
navalha.
Eis que, um
dia, abertas de par em par todas as janelas e
portas do vasto palácio,
o sol, o ar, a alegria, as decorações modernas, entraram naquelas salas, com grande faina de estucadores, de
estofadores e de marceneiros.
Dir-se-ia que tinha chegado à
Ajuda o Sr. D. Miguel I e que o conde de Cabril levantara do cofre da Fazenda — que os
liberais deixaram cheio, como era de esperar
— os primeiros cem contos por indemnizações, autorizando-se com os ilustres exemplos dos seus primos Terceira
e Saldanha.
A causa dessa
transformação não pertencia ao número
das calamidades sociais.
Tudo aquilo era obra do amor
conjugal e de doze contos de réis.
Vasco Pereira Marramaque estava em Sintra
com a sua
esposa, com o seu sogro
e com os seus cunhados, enquanto se preparava o palácio de Andaluz para os bailes de Inverno.
SEGUNDA PARTE
As aparências, que de ixavam
supor em Tomásia uma alma ou muito briosa ou muito
despegada, eram fingimentos que secretamente lhe custavam ásperas pelejas.
Enquanto a saudade não cedesse ao
ódio, qualquer ostentação de desprezo ou de submissa conformidade devia ser-lhe uma
frecha, tanto mais entranhada no coração quanto
a ofendida abafava
em si o desafogo dos
queixumes. Nas doenças de amor, a
peçonha do ciúme supurando pelas palavras desabridas deixa muitas vezes a alma curada.
Tomásia velava as noites à beira
do berço do filho. Aconchegava-se dele como se a criança lhe fosse alivio e defesa de uns
pavores que a estremeciam naquele quarto onde,
pela última vez, ouvira a
voz aflita do pai
que a
chamava. O administrador da farmácia, que dormia por
baixo, aplicava o ouvido e escutava soluços.
Erguia-se de pé sobre o leito e ajustava a orelha à parede, por onde se lhe coavam os rumores do pavimento.
Esta curiosidade tresnoitava
Dionísio José Braga.
Era um
sujeito entre trinta e
trinta e quatro anos. Praticava
na botica do hospital
de Braga
e tinha o curso farmacêutico
na escola do Polo.
Sabia a preceito a sua
arte e estava
inventando pastilhas para
moléstias incuráveis quando
foi despedido do Hospital
de S. Marcos por
ter desencaminhado a filha
da enfermeira, uma
rapariga de bons costumes, como
são todas as raparigas antes de
terem maus costumes. Foi ser ajudante de botica no Porto, em casa do Januário
da Rua Chã,
que o despediu porque ele lhe
seduzia epistolarmente uma a sua comadre e comensal. Passou para casa do
Eusébio da Rua de
Cedofeita, donde saiu por motivos igualmente eróticos. Era um
frágil; mas o seu vicio não procedia do
despotismo do temperamento, nem da materialidade
irreligiosa.
Era, pelo contrário, muito
espiritualista, constelava no azul as mulheres todas, e
conversava-as licita e misteriosamente com a
lua cheia por
medianeira. Construía uns ideais ratões, e tinha nas alamedas da Lapa e
Fontainhas, por noite morta, umas aparições alvas como a Dama Branca, de Walter
Scott. Até certa altura, este boticário, posto que não
fosse bonito, era um
anjo; mas decerto ponto para
diante degenerava para
homem trivial. Parece que as
mulheres dos seus
amores — quase todas formadas nas
indelicadezas da cozinha — faziam-lhe às asas de anjo o que faziam às
asas dos patos; e ele aí ficava o homem de Platão, «um animal implume que ri».
Quanto a rir, nem sempre. Passou
por desgostos sérios. As mulheres amadas e os
credores perseguiam-no. As farmácias
fechavam-se-lhe,
cortando-lhe a carreira da
ciência e o êxito de várias
pílulas inventadas. A mão gélida da pobreza amarrara-o ao caldo negro
de Esparta, que chamam verde no Minho, em casa
do seu pai, pequeno lavrador
de Vilar de Frades. Aí mesmo,
era sensível às noites perfumadas
e serenas, ao murmúrio dos ribeiros e a todas as provocações da rica natureza de Maio. Aquele
amor panteísta envolvia toda a criatura de merinaque de molas de aço, ou de saia
de estopa com barra escarlate.
As raparigas da sua
terra consultavam-lhe a
ciência médica; e ele, compondo-lhes o estômago,
desarranjava-lhes o coração.
Estas felicidades pagam-se caras. Chegou a levar pancada. O Sr.
Guerra Junqueiro deu cabo do último D.
João com um poema;
porem, os lavrador de Vilar de Frades começaram a obra com estadulho na pessoa de
Dionísio José Braga. Sistema muito pior
para os dom-joões.
Nesta conjuntura,
propiciou-lhe a sorte a
botica de Macário Afonso. Foi de ânimo feito a estrangular o ideal que lhe
infernara a existência, enforcando-o na costela que levava fraturada.
Dois anos e
meio de
exemplar comportamento
asseveravam uma reforma radical.
O arcanjo S. Miguel da balança
não era mais sério que ele com as freguesas. Dir-se-ia que Dionísio pisava no almofariz o
grão da mostarda e as próprias febras do
coração.
Nem uma chalaça, nem um beliscão em polpa de mulher!
Sentava-se na testada da botica num mocho, lendo e anotando
a lápis a Farmacopeia Geral, do IX. Agostinho
Albano. Se alguma rapariga o saudava
passando, ele respondia
sem erguer os olhos
do livro, como
se fosse o beato Pacômio a meditar os Santos Evangelhos. E nem por isso
granjeara grandes simpatias no sexo
feminino: é porque tinha ares de neutro.
— É um trombelas! — dizia a Rosa
do Cruzeiro.
— Não olha
direito para a gente,
o casmurro! — invetivava
a Josefa da Fonte.
— Aqui há tempos, a Maria do
Moleiro quis-lhe mostrar uma nascida que tinha num
joelho, e vai ele disse-lhe: «Menina,
vá ao cirurgião;
que eu avio remédios e não
vejo pernas.» — Credo!
O homem é tolo! Olha a
santantoninho, que lhe não fosse dar volta
o estômago! — acudiu
a Rosa, cruzando os
braços e balançando os seios sobre o largo
decote do colete amarelo. E
escarneciam-no com palavras desonestas e casquinadas de riso com
lardo de equívocos torpes.
E como é o mundo, em cima e em
baixo.
Vá de história. Havia em Roma dois santuários consagrados ao Pudor.
num dava-se culto ao «pudor das
senhoras» (pudicitia patricia); no
outro ao «pudor do mulherio» (pudicitia plebea). Não sei
qual dos dois pudores
era menos envergonhado.
Hoje é difícil
estremar duas coisas que não existem;
porquanto ponho os óculos, tomo
rapé e leio em Ovidío, e n'A Teogonia,
de Hesíodo, que a Pudicícia,
assim que viu lavrar o cancro da
corrupção no seio do gênero humano,
fugiu para o Céu com a sua irmã a Justiça. Que fosse para o Céu, duvido; não me parece que seja lá necessária;
mas em Celorico de Basto é que ela realmente
não estava, quando aquelas raparigas,
a meia voz, e
com estridentes gargalhadas, comentavam
o pudor do boticário, respetivamente ao joelho
da Maria do Moleiro.
***
Oito dias estivera Tomásia na sua
casa sem que Dionísio a visse.
Mandou-o chamar à
saleta e agradeceu-lhe a
probidade e zelo com
que administrara os seus
interesses. Pediu-lhe que a
desculpasse de tão tarde cumprir aquele dever e a não julgasse
grosseira.
Respondeu ele com a voz trémula
que muito se honrava em ter correspondido à
confiança que em si depositara
o finado Sr. Macário;
que sentia infinitamente os seus
dissabores..
E engasgou-se.
Tomásia tinha-o encarado fita e
penetrante como um tiro. A vaidade picou-se-lhe daquele ar de atrevida
compaixão. O aspeto de Dionísio tinha uns tons de ternura equivoca, nos olhos principalmente,
onde se transverberava a doçura de
uma alma
apaixonada. Esta expressão escandalizara
Tomásia, por duas causas: primeira, ser olhada daquele feitio
por um caixeiro de botica — ela que embalava
nos braços um filho de Vasco Marramaque e cerrava ao coração o perpétuo luto do único homem que
vingaria perdê-la! Por
isso, o sensitivo amador das famílias dos Januários e Eusébios
ficou entalado quando Tomásia, levantando
o rosto, avincou a testa
e lhe arremessou de flecha os olhos rutilantes.
Aquela mulher era então mais
linda que no tempo em que as graças lustram mais no pudor que na plástica. Dois anos antes
inspiraria Lamartine; dois anos depois teria o seu lugar de honra ou de desonra
entre as mulheres refeitas e perfeitas
dos poemas de Alfred de Musset. O boticário estava na compreensão das boas coisas e não era hóspede
na matéria sujeita. Cinco anos de pousio deram-lhe ao coração rebentos luxuriantes. O
molosso da natureza sacudiu a mordaça e
deu aqueles grandes latidos interiores que se chamam a paixão.
Tomásia evitava-o desde a
primeira e curta conversação em que ele, aturdido pela
arrogância daquele olhar, se
retirara tartamudeando algumas palavras insignificantes; Dionísio
José Braga, porém,
ia ofendido no sentimento generoso e virgem que lhe entrara no peito à
primeira vez que a vira. Pensara em
casar-se com ela, assentar de vez, e arranjar-se, dizia ele no lirismo das suas
meditações. Portanto ela
possuía a botica
bem afreguesada, posto que as drogas fossem revelhas e substitutas das que
não havia; possuía a casa e
o quintal, casa
envidraçada, e quintal
curioso com pomar, parreiral,
hortas, mirante com trepadeiras
de maracujá, bancos de cortiça numa gruta
de madressilva à maneira de
cubata As arcas estavam cheias de bragal, peças de linho e meadas antigas, tudo anterior à
invasão dos romances naquele recinto de
ignorância e bom
senso. Estas concomitâncias
cooperavam talvez no propósito honesto
do farmacêutico; mas, descascada a ideia, lá está dentro a cândida pevide como semente das ações nobres —
a bonita ideia de casar-se e reabilitar
aquela menina.
O
seu amor medrou nas surdas raivas
como as belas flores nos resíduos imundos.
Tomásia, todavia, não o estremava
do jornaleiro que granjeava o quintal. No fim do mês, mandava-lhe entregar o seu ordenado
e examinava a escrituração singela das
linhaças, dos citratos e das mostardas.
Dionísio denotava profundas
alterações orgânicas na parcimónia
dos alimentos. O seu
jantar voltava quase intato. Dizia
a criada à ama
que «o praticante estava escanifrado
como um étego e não comia tanto como isto»; e, dizendo,
mostrava a unha
gretada das ulcerações de um
panarício erisipelatoso.
Tomásia adivinhava-o, aborrecia-o
e quase que o odiava. Algumas vezes por entre
as cortinas da janela, quando contemplava cheia de lágrimas os sítios do quintal
mais prediletos de Vasco,
via o boticário reclinado
no escabelo da gruta,
com a face na palma
da mão e os olhos
na vidraça do seu
quarto. Retraia-se como se ele a visse e
dava um estalo tirado com a língua do céu da boca — a trivial expressão com que se
esconjura um estafador e se enxotam os
cães.
A criada velha, que conhecia o
ânimo da senhora, e sagazmente penetrara na causa do fastio de Dionísio, já quando o via
no pomar, ia dizer à ama:
— Lá está o estupor.
Esta mesma criada foi
inconscientemente a portadora de uma carta inclusa no rol mensal das drogas entradas e saldas.
— Que é isto? —
exclamou Tomásia, vendo a
carta fechada com
três obreiras amarelas,
simbólicas de desesperação. — Ele
deu-lhe esta carta?! E você recebeu-a?...
— Ó menina, mal haja eu, se sabia
que o diabo do homem...
E justificou-se plenamente.
Ao primeiro assomo de raiva, quis
rasgar a carta; depois, resolveu devolver-lha fechada e
despedi-lo; mas neste
conflito entrou o abade de Pedraça,
que ia convidar a comadre para assistir ao jantar de
anos da sua irmã.
A mãe de Álvaro,
enquanto o padrinho acariciava o
pequeno, referiu-lhe o caso.
O padre sorriu-se, deu pouco peso à calamidade e aconselhou que, em bons termos, devolvesse a carta fechada com as
seguintes palavras escritas no verso do
sobrescrito:
«Enquanto lhe servir o emprego que honradamente ocupa
na minha casa, peço-lhe que
me respeite.» E, motivando esta conceituosa
e lacônica intimação, o abade
alegou que Dionísio era um ótimo farmacêutico, o único que sabia
química e botânica naqueles sítios; que muita
gente o preferia ao medico
Ferreira — hoje famoso clinico do Porto e então médico de partido em Basto —, que as suas pastilhas das
lombrigas estavam acreditadas em toda a
província e que tinha curado as alporcas a várias pessoas. Disse mais o abade que sabia
que um cirurgião da Ponte
de Pé lhe oferecera duzentos mil-réis, cama, mesa e roupa lavada para lhe
administrar a botica paterna, e além disso o quinto nos
interesses, e metade nas invenções, obrigando-se o cirurgião
a propagá-las. Posto isto,
concluía que, se Dionísio, untado pelo desabrimento de Tomásia, se despedisse, a botica se devia
considerar perdida, por falta de tão
hábil farmacêutico.
— Não me dá outras razões mais
fortes, o meu compadre? — perguntou Tomásia.
— Ainda as quer mais
fortes?..
Ela então chamou a criada e
disse:
— Entregue esta carta a esse
homem e diga-lhe que eu o despeço.
— Que faz, comadre! — atalhou o
abade.
— Se eu não fizesse isto —
respondeu ela moderadamente, sem atitudes —, devia ter aceitado o casal de Paços que me
dava o pai do meu filho.
— Mas... —
respondeu o compadre — a senhora
tem a certeza
de que essa carta lhe faz alguma
afronta?
— Pois que é isto, senão uma
afronta? À mulher, na minha
posição, abandonada, com um
filho, que dirá a carta de um homem?
— Pode ser, e é talvez certo, que
ele queira ser o seu marido...
— Olha o estupor!
— interrompeu a criada
com o mais desdenhoso engulho.
O
abade, surpreendido pela exclamação, abriu uma risada
inoportuna, enquanto a criada
continuava:
— Que procure forma
do seu pé!. . Sempre é muito
asno! Um rapaz de botica atrever-se..
— Vá! —
ordenou Tomásia com
intimativa; e voltando-se para o compadre: —
Não lhe dê preocupação a minha sorte,
o meu amigo; mas peço-lhe
que tenha em vista o meu filho. Confesso-lhe que sou mais fraca do que eu pensava. Olhe...
Tenho chorado muito; passo aqui
noites tão cruéis, tão atormentadas,
que se não fosse esta criança...
eu conheço os
venenos.. tinha
descido à botica, e,
a troco de uma agonia
de poucos minutos, descansaria desta horrível batalha com que não
posso... Não posso mais... E o amor e o remorso a despedaçarem-me. Vejo o pai
deste infeliz, vejo a sombra do meu
velho pai..
E, afogada pelos soluços,
arquejava com o rosto apertado nas mãos.
***
O abade previra com juízo.
Dionísio José Braga,
recebido o recado pela criada,
que se excedeu — por estar
ofendida na insidiosa recovagem da
carta —, enfardelou
a sua roupa num caixão de
lata e exigiu uma declaração
abonatória da sua
honradez. Lavrou-a o abade e
Tomásia assinou-a.
Depois, o padre desceu à botica
e disse ao farmacêutico, por
entre coisas agradáveis, que ele devera ter respeitado o melindroso infortúnio de uma
senhora que inspirava mais compaixão que
amor.
E então Dionísio, numa explosão
de raiva irônica, perguntou ao abade:
— E que lhe inspira ela a vossa
Senhoria?
— A mim? Amizade e respeito: o
que pode inspirar para um sacerdote dos meus
anos.
— Conte-me lérias,
Sr. Abade —
retorquiu o outro com sarcástica brutalidade.
O
padrinho de Álvaro, que tinha cinquenta e sete anos
fortes e sangue turdetano nas veias, sentiu na espinha dorsal
um formigueiro extraordinário, e ainda
olhou para a mão do almofariz; porém, sotopondo o brio do fidalgo à paciência de padre cristão, disse-lhe com
violenta brandura:
— Vá com Deus; e... vá com Deus!
Dionísio, nos
lances apertados da sua vida
de amores perigosos, só levou pancada
quando não pôde esquivar-se pela
porta da prudência,
e até pela janela, conforme a
necessidade. O rosto do clérigo e o
trejeito diagonal dos olhos ao almofariz
tocaram-lhe na costela fraturada em Vilar de Frades; pelo que, abafando as cóleras, prometeu esvurmá-las
com ressalva das costelas sãs. Nesse
mesmo dia funcionou na farmácia da Ponte de Pé e divulgou que saíra de Agilde em consequência dos ciúmes do abade
de Pedraça. Os cavalheiros da
localidade, sequiosos de escândalos, propalaram a calúnia e confirmaram o boato de que ele, o hipócrita, já havia
mandado para o Brasil um filho, que lá na
Residência era conhecido pelo «Álvaro Enjeitado».
— Que eu conheço
perfeitamente — disse um
cavalheiro do Arco. — Esse rapazola
esteve em Pedraça no ano passado,
e ouvi dizer que casara muito rico no Rio de Janeiro; mas lá diziam
que o padre era padrinho.
— E pai — confirmaram todos.
E cada qual fez o seu relatório
de devassidões de padres. Um dos relatores era o já
celebrado poeta de Refojos, que,
na ausência de Vasco
Pereira, pudera repatriar-se e reassumir as funções de Juvenal
em Cabeceiras. Ele esfregava as mãos, arregaçava
um sorriso cheio de ameaças e dentes cariados e dizia, trincando o charuto, que ia escrever uni
romance fulminante contra os padres. Foi muito aplaudido e arranjou logo
cinquenta assinaturas. Tecendo o enredo, explicou que o ex-frade de Pedraça seria
protagonista e Tomásia a heroína.
Se os padres
escrevessem romances contra
os novelistas, quantas obras de execução prima
e de primeira
verdade nos não dariam! Faça-se
o clero romancista e descreva os
padres levados à desmoralização pelo exemplo das altas capacidades seculares que
os arguem de ignorância. Quando vierem a medir-se nesse torneio de armas iguais,
então saberemos quantos
devassos verosímeis e não tonsurados correspondem
para um PADRE AMARO
que prende o filho para uma pedra
e o afoga com as suas mãos. Enquanto, porém, o romance urdir crimes descomunais,
sendo tantíssimos os vulgares, não se receia que a literatura amena faça grandes
males.
***
Tomásia fechou a
farmácia, enquanto o abade contratava no Porto quem a dirigisse, O boticário que veio não tinha mais
habilitações que o comum dos praticantes analfabetos.
A farmácia administrada por
Dionísio era nova, fornecera-se de remédios franceses,
tinha fundas de camurça,
seringas de bomba e frascos variegados na
vitrina de pau-óleo. Os facultativos recomendavam-na. A botica de
Agilde restavam só os fregueses da mostarda, das malvas e da flor de sabugueiro.
O
praticante era imberbe e lorpa;
e, como tinha tempo, fazia
gaiolas para grilos, e
também fazia ratoeiras, por não saber fazer colheres. A
receita não dava para o ordenado do caixeiro...
Aconselhou o abade à
comadre que trespassasse a
botica, alugasse a casa e
fosse
para Pedraça. Anunciou-se
o negócio nas gazetas do Porto.
Dionísio dava gargalhadas na
farmácia da Ponte de Pé, quando leu o anúncio, e disse que não queria
a botica pelo
carreto, asseverando que as
drogas eram anteriores à invasão dos Franceses. Não
mentiria muito.
O abade já sabia que o caluniavam
e difamavam a pobre mulher à conta dele.
Queria socorrê-la,
mas com delicadeza e cautela. Não sabia,
porém, como tirar-se desta dificuldade.
Um dia, Tomásia
resolveu-se: foi à Vila do Arco,
onde tinha um parente. Alugou uma casinha e anunciou-se mestra de
meninas. Quando o compadre o soube, já
ela estava instalada e exercia o professorado com seis educandas. O abade,
com os olhos úmidos de lágrimas, disse-lhe que ela era uma alma rara e que tinha
virtudes tamanhas que
até a sua fragilidade parecia um ato
meritório, porque da queda procediam tão
nobres procedimentos. O que ele fez,
melhorando-lhe a vida, foi conseguir-lhe a nomeação de mestra régia.
Tinha muitas prendas de bastidor a filha
de Macário, escrevia bem e ortograficamente, aprendera
história nos compêndios de
Vasco e nos romances. Deu-se zelosamente ao magistério, e
chegou a tocar o sumo bem de uma vida conformada e serena. As
famílias do Arco estimavam-na, recebiam-na e presenteavam-na liberalmente.
A mancha estava delida. Álvaro, o
pequenino anjo, parecia pedir indulgência para
a mãe. A calúnia
de Dionísio sumiu-se na obscuridade das grandes infâmias. A miúdo, o abade e a irmã visitavam
a comadre e a levavam consigo nas férias
para Pedraça.
***
Neste tempo, Vasco Pereira
Marramaque visitou com a esposa as quintas do Minho. Traziam consigo a primeira
filha de poucos
meses. O fidalgo soube em Agilde que Tomásia fechara a botica e,
obrigada pela necessidade, abrira escola
no Arco. Teve pena e más recordações. Lembrou-se da inocente alegria daquela
rapariga; do bom
Macário Afonso, que o
recebia na sua
casa e consentia que a filha lhe desse às mais raras
flores; da docilidade e abnegação com
que ela o amara; do júbilo com que lhe falava do filho; a morte do velho longe da
filha e do seu leito,
desterrado voluntariamente; o desinteresse da mulher
sem reputação nem bens de fortuna;
enfim, estas imaginações ali, naquela
casa, onde Tomásia estivera, não lhe seriam muito aflitivas, mas eram incômodas. E, conquanto estivessem cortadas as
relações com o abade, não se dedignou de
lhe escrever, pedindo-lhe
que convencesse Tomásia
a receber uma
mesada bastante à sua
independência. E, feito
isto, ficou contente consigo,
como quem diz:
«Sempre sou um Marramaque!
Dou-lhe alguns pintos que me não
fazem falta, e honro o meu nome.» O ser fidalgo tem Isto de bom: quando a consciência não obriga,
obriga o apelido. Pior é quando não há
apelido nem consciência.
O
abade respondeu com três
palavras: «Tomásia está
independente.» Casualmente
encontrou Vasco o primo Abreu de S. Gens. Falou-se
de mulheres conquistadas na
mocidade de ambos.
— E a boticária? — perguntou o
bacharel de Refojos. — Já sabes que está abadessa?
— Abadessa!
— Sim; passou da botica
para a igreja,
mas em melhores condições que muitas,
que vão da botica para a cova.
— Não te entendo — respondeu o de
Agilde.
— «Monsieur, ce n'est pas ma faute», dizia o Boileau a quem o não percebia. Então não sabes que a Tomásia é
mestra de meninas e é menina do abade de
Pedraça?
— Isso é calúnia! — acudiu Vasco.
— Olha o
vaidoso!... Repugna-te querer
que na herança de uma mulher educada
pelo teu amor gentilíssimo
sucedesse o velho frade de Tibães!... Pergunta por essa história ao boticário da
Ponte de Pé...
E contou-lhe o que sabia,
convencendo-o. Vasco riu-se muito, daquele rir que está todo no maquinismo dos queixos e da
laringe. Lá por dentro mordia-o o despeito
de ver que um homem de cãs e barriga proeminente vingara estancar as lágrimas de Tomásia, que não podia
consolar-se do apartamento de Vasco.
— Fortes asnos somos nós, afinal!
— dizia ele ao primo
Abreu. — A gente a
pensar que tem grande responsabilidade porque faz voar
estas andorinhas de um telhado para o
outro!. .
— Ainda aí estás!... Eu é
que me considero sempre o seduzido e me lastimo
sinceramente porque ando a fazer saltar da cama
as lebres que os outros abocam.
E, discorrendo largamente neste
estilo metaforicamente venatório, concluíram que Tomásia, em remate de cantiga, era a filha
do boticário pur sang.
***
A mestra régia
ensinava o filho; e, à custa do esforço que faz prodígios, aprendeu
quanto ignorava e Álvaro
devia saber. Quanto à
carreira do educando, estava destinada.
O padrinho deliberou enviá-lo
para um afilhado que tinha rico no Brasil.
— Foi um enjeitado
— contou o abade
— que aqui me trouxe Maria Moisés
para eu
batizar. Com aquela lábia
que ela tem, foi-mo metendo em casa, e cá ficou o rapazinho. Foi à escola,
tinha muita habilidade, e queria ser doutor,
o meu enjeitado.
Mandei-o para o Rio. O rapaz saiu
tão honrado, que parecia querer começar em
si briosamente a sua geração, visto que não tinha antepassados. O patrão deu-lhe a filha e grande dote. Infelizmente,
morreu-lhe a esposa e um filho. Está
rico, mas vive triste.
Queria que eu fosse para o Rio,
e eu quero que ele venha
para a minha companhia. A isto responde que tem medo à
ociosidade; que precisa trabalhar e
fatigar-se para dormir
e esquecer-se. O meu Álvaro
irá para o outro que também é Álvaro; eu direi a ambos
que se amem como irmãos.
Tomásia escutava-o lagrimosa; mas
não contrariava o alvitre do abade. Álvaro era
pobre. A casa de
Agilde nem inquilino tinha.
A botica era um
foco de cheiros maus e aziumados a vaporarem dos
velhos frascos de louça amarela desvidrada. Nos
gavetões medicavam-se impunemente os ratos roendo as ervas e olhando com o maior cinismo para o
frasco do arsénico. O arcanjo S. Miguel,
com as cores perdidas, envolvia-se em filigranas da teia de uma aranha de barriga preta, que prendia uma das orlas da
telilha nas pontas do Diabo e a outra no capacete do anjo. Nos pratos
da balança tinham-se
passado fenômenos execráveis. As
aranhas fêmeas, depois de acariciadas, comiam ali os maridos, consoante o seu mau costume:
viam-se nas conchas de latão os restos
mortais dos aranhões. A botica
esquecera, exceto aos
garotos que enfiavam calhaus por
uma fresta, e regalavam-se de ouvir lá dentro o tinir das pedras no bojo das garrafas.
Portanto, o filho de Vasco
Pereira Marramaque era um menino pobríssimo, que o
amor maternal não devia esquivar ao trabalho e ao destino que o padrinho lhe talhara.
Aos doze anos, o pequeno
abraçava-se na mãe e pedia-lhe que não o deixasse ir para o Brasil. Dizia ele que ia morrer,
porque era muito fraco. Na verdade, aquela
criança bebera no leite da mãe as lágrimas que ela represara. Crescera tolhiço, magrinho e pálido, como os filhos das
casas opulentas e velhas raças. Fatigavam-no
os estudos, tinha escuridões súbitas de entendimento, e caia em sonolentas abstrações. Dizia então a mãe ao
compadre:
— Este menino vai morrer.
O abade não fazia cabedal destas
profecias, mas profetizava também:
— Álvaro, dentro em poucos anos,
virá rico para a Pátria.
— Rico! Para
quê?.. Trouxesse ele o bastante
para a sua subsistência. . Com tão pouco se vive! E se lhe déssemos um
ofício?
— Sapateiro? É natural que fosse
o primeiro na geração dos Marramaques, posto que dizia
o meu avô que conhecera a
trisavó deste senhor de Agilde palmilhando
chinelas em Lanhoso. Ainda
assim, não se renove a
vergôntea dos sapateiros neste
ilustríssimo tronco. Bem bastam os
que hão de vir quando
os vínculos forem abolidos...
O abade de Pedraça, sobre ser
genealógico de farpada língua, era
discursivo em coisas sociais quando a
comadre se mostrava complacente
em ouvi-lo; mas, neste caso, a
sua manha era distraí-la das lástimas e ir contemporizando com o amor de mãe.
Escrevera ele ao afilhado do Rio prevenindo-o de que
estava educando um outro
Álvaro para lho entregar, e contava-lhe sentimentalmente a história desta criança sem pai. O brasileiro não
respondeu; veio pessoalmente buscar o seu prometido filho. «Sê tu pai dele»,
dissera-lhe o padrinho.
Tomásia ganhou ânimo quando viu o
protetor do seu Álvaro. Era um homem de vinte e
seis anos, com o rosto carregado das sombras de uma tristeza maviosa, dulcificando as palavras amargas com
o sorriso da resignação.
— Sou muito doente
— dizia ele —, mas,
se eu morrer, o seu filho,
a minha senhora, voltará para a sua mãe com bastantes recursos. Pode
confiar-mo; amá-lo-emos todos três.
Imagine que eu, magoado com a
abnegação do meu padrinho — que nunca me
permitiu dar-lhe meio por mil dos meu
haveres — quero vingar-me em beneficiar este o seu afilhado. Eu tenho no
coração muito amor sem destino. Não amei
pai nem mãe. Tive esposa e filho. Todo o amor que lhes consagrei está para
ser dado para um
ente que não seja esposa
ou filho, porque essa felicidade não se repete.
***
Álvaro Afonso da Granja saiu do
Arco para o Rio de Janeiro em 1863. Ia nos doze anos.
O
brasileiro tinha propensões desacostumadas nos homens grávidos e pesados de dinheiro. Procurava atar os elos da
realidade às comoções da vida idealizada nas
novelas. Em Lisboa, quis
ir ao Parlamento para ver o recentíssimo
visconde de Agilde, o pai
do seu pupilo. Entrou na galeria
do povo com o menino. Perguntou
para um vizinho:
— Faz favor de me dizer qual
destes deputados é o visconde de Agilde?
— É aquela besta que acolá está
falando com outra besta...
E citou o nome da outra, que eu
delicadamente não repito, se bem que não receio que ela me leia.
Álvaro não tinha de
memória a classificação zoológica daquelas espécies parlamentares. Veio, porém, a saber que o
visconde de Agilde era um sujeito de
bigode encerado, luneta de um vidro, calvo, de feições duras, trigueiras e descarnadas.
— Ele pediu a palavra
— notou o informador, e continuou:
—Quanto quer o senhor apostar que
o visconde diz três asneiras em duas palavras?
— Não aposto, porque já ouvi
dizer quatro — respondeu Álvaro.
— Então o senhor, por mais que me
digam, é do Porto, e conversa com os janotas
do Suíço? Espere, lá vai o javardo grunhir.
O visconde, desta feita, deixou
desairado o crítico, que era da oposição. Ora este critico era o poeta de Refojos, que
conseguira ser correspondente político de
um jornal portuense.
O
visconde pedia estradas no
Minho. Disse com sofrível pronúncia
inglesa que Braga
era um dos nossos
rotten-boroughs (burgos
pobres) dos quais
o Governo não
fazia caso. Disse
que Basto estava encravado entre
serras intransitáveis. Perguntou ao
presidente se estávamos na Idade Média.
— Vê o asneirão? — observou o de
Refojos. — Pergunta se estamos na Idade
Média.
— Deixe ouvir, se faz favor.
O orador observou que nas trevas
da Idade Média o rico-homem dispensava estradas,
porque vivia circunscrito no seu solar torreado, sem fazer parte do sistema arterioso da Nação.
— Que burro! —
observou o correspondente do Nacional,
tomando notas. — Que dois burros
é aquele homem!
O
discurso acabou de repente,
quando começava a ter graça.
O orador, perorando,
repetiu que o Minho sem
estradas era o melhor membro da Nação, mas gangrenado, pútrido, paraplégico.
— Onde mora o visconde, sabe
dizer-me? — perguntou Álvaro.
— Em Andaluz, no palácio do conde
de Cabril. O senhor é pretendente?
— Nada. Sou brasileiro.
— Ah! Quis-mo parecer no
sotaque. Provavelmente é do Minho,
e quer comprar ao visconde algumas das quintas que
lhe restam... Se é isso, vá, que eu sei
que ele perdeu em casa do marquês de Nisa quinhentas libras a noite passada. . Está ali, está sem nada.
Teve oito contos de renda há dez
anos; hoje não tem três e tem seis filhos.
No dia seguinte, os dois Álvaros
passeavam no Largo de Andaluz; e, quando viram sair de uma cocheira o cupé, que entrou
no, vasto pórtico do conde de Cabril,
avizinharam-se do pátio.
O
filho, de Tomásia era de todo
estranho às excentricidades do
seu amigo, quando este lhe disse:
— Vais ver teu pai...
— O Sr. Vasco de Agilde? —
perguntou o menino.
— Sim, o visconde...
— Ele não é visconde — emendou
Álvaro.
— É visconde desde antes de
ontem.
Entraram, quando o deputado
reeleito descia a escada com um pretendente de cada lado e dois no coice. Ele vinha coberto,
com o paletó alvadio no braço e um
charuto apertado entre os quatro dentes incisivos. Parecia vesgo por causa da luneta
pênsil de um só
vidro sem aro que v obrigava a
convergir estrabicamente o olho
esquerdo.
Resmoneava uns monossílabos e
dava aos ombros, escutando com fastio um dos importunos.
Quando viu o desconhecido ao lado
da carruagem, perguntou, gesticulando de modo que os pretendentes saíram:
— Que pretende o senhor?
— Cumprimentar a vossa Excelência
pela energia do discurso que ontem tive
a fortuna de escutar, pois que, tendo eu sido criado em Basto, muito me congratulo com os meus conterrâneos tão
distintamente representados.
— Obrigado.. Faço o meu dever — respondeu o visconde com
agraciado aspeito.
— E ao mesmo tempo, Exmo. Senhor,
na minha passagem para o Rio de Janeiro,
onde resido, tenho a honra de deixar o meu nome lembrado a vossa Excelência, para que,
se um dia se
abrirem estradas em Basto, a vossa Excelência me considere tributário de doze
contos de réis para esse grande impulso civilizador.
— Oh! —
exclamou o deputado. — E muito louvável patriotismo!
Aperto-lhe a
mão de patrício, e lamento que Portugal esteja tão
escasso de homens da sua têmpera.
Donde é?
— Fui criado em Pedraça, Sr.
Visconde, sou afilhado do Sr. Frei Álvaro.
— Ah!. . do abade... Como passa
ele?
— Robusto ainda com os
seus sessenta e quatro.
Recordo-me de ver a vossa
Excelência, quando em menino estudava Lógica com o meu padrinho.
— Sim?
— Perfeitamente me recordo; e a
vossa Excelência talvez se lembre de um rapazito
que lá chamavam o Enjeitado...
— Tenho uma ideia de um pequeno
que subia às cerdeiras e nos deitava cerejas...
— Era eu.
— O senhor?...
Então enriqueceu? Muito
folgo.. E este menino é o seu filho?
— Não, senhor — respondeu Álvaro
a meia voz. — Este menino é filho da
vossa Excelência.
O visconde fez dois gestos
indecisos entre a surpresa desagradável e o receio de que os lacaios escutassem.
— Vai comigo para o Rio —
prosseguiu o brasileiro — e, como a morte por lá é mais frequente, não quis eu que ele,
tendo de morrer na flor dos anos, fosse deste mundo sem conhecer
o seu pai. Eu aprecio muito este
lance, porque fui enjeitado.
O menino fitava como assustado o
rosto do visconde, que também o encarava atentamente.
Neste ponto, vinha descendo a
viscondessa com três meninas, clamando com vozes argentinas que retiniam na amplidão do
pátio:
— Ainda aí estás, Vasco? Leva-nos
contigo até ao Chiado.
— Sim, filha —
disse o marido; e, voltando-se para o brasileiro:
— Procure-me em ocasião mais
oportuna.
— Sr. Visconde,
recebo as suas ordens agora
— disse Álvaro, recuando com o menino pela mão. — Amanhã salmos no
paquete, e não há razão para que torne,
visto que o meu intento era
simplesmente cumprimentar a vossa Excelência.
A viscondessa estava já ao lado
do marido, olhando para o pequeno, quando Álvaro se despediu cortejando-a.
— Quem é? — perguntou ela.
— Um brasileiro de Basto.
— O pequeno é galante. Parece-se
com o nosso Heitor. Não achas?
— Não reparei.
Daí a minutos, dizia-lhe Leonor:
— Vais tão calado e triste! Que
tens tu, Vasco?
— Que hei de eu ter, filha?... É
o demónio da política...
— Estavas tio alegre ao almoço...
Ah!, uma coisa. . Dá-se baile nos anos da Piedade?
— Responderei à tarde. Ainda não
sei se o Banco de Portugal me reforma a
letra dos cinco contos. .
— Mas eu já escolhi o meu vestido
e os das pequenas.
— Se escolheste os vestidos, nem
por isso é obrigatório o baile.
— Sim... — redarguiu a
viscondessa com disfarçado despeito. — Em todo o caso, não digo nada, por
enquanto, à prima Penafiel, nem
à prima Ponte, que mandaram saber...
— Sim, não digas nada.
— Mas é esquisito...
— O que é esquisito, Leonor?
— Que se falasse nisto na soirée
do primo Caraira. .
— Quem falou não fui eu.
— Consultei-te primeiro.
— Em suma, Leonor — concluiu o
visconde com desabrimento —, pela vigésima
vez te anuncio que estou mal de fortuna, que, em vendendo cinco quintas que me restam, a casa do teu pai volte
à miséria antiga.
— À miséria! Essa é
boa! Eu nunca soube
o que era miséria. . Que delicadeza
tão provinciana!... Pára! — bradou ela ao trintanário, à entrada da Rua do Ouro, e saltou do cupé com as filhas.
A mais velha, Maria da Piedade,
perguntava baixinho à mãe:
— Ó mamã, o papá disse que nós
estávamos na miséria?
— Não, tola.
***
Quem vira Leonor de Mascarenhas,
no solitário e caduco palácio de Andaluz, dez anos antes, modesta, paciente, sem
invejas, escusando-se com os achaques do
pai quando a convidavam para a sala ou para o camarote; disfarçando com o amor filial a míngua do vestido, do chapéu e
dos somenos atavios que as filhas das
criadas do seus
avós esperdiçavam — quem
prediria então que aquele
anjo meigo do lar, assim que respirasse
o esbraseado ambiente
das salas, queimaria as asas, e
em vez delas se faria uns voadouros de brilhantes farrapos para esvoaçar-se ao ponto culminante
da elegância, do fino gosto, da bela
extravagância, do renome de figurino?
Nos primeiros anos era o marido
que a instigava, envaidecido da primazia que os localistas lhe decretavam, especialmente o
Agapito; depois eram as amigas invejosas
que a rivalizavam, apanhando de salto o segredo das modistas mais a ponto informadas do último baile do Louvre;
por fim, quando Vasco Pereira, cheio de
melindres, lhe disse a medo que
os filhos eram já muitos e os rendimentos desfalcados com a exorbitância
do luxo, Leonor já não podia entregar-se
vencida às suas competidoras e
consentir que a modéstia divulgasse
que a rainha
dos bailes abdicara por falta
de quatrocentas libras anuais, em que o seu reino estava tributado no
balcão da suserana Lavaillant. No
transcurso de dez anos, a grande casa dos Marramaques adelgaçara-se por maneira que não rendia o lucro dos capitais
levantados no Banco de Portugal e
no Hipotecário. Os
dois irmãos de Leonor exercitavam o comunismo em família e o conde de Cabril presenteava o
príncipe proscrito com os dinheiros do
genro, consentindo todavia
que no palácio de Andaluz se pensasse liberrimamente em política. Os filhos tresandavam a
cocheira e república, prometendo
esfaquearem os burgueses com veemência
tal de palavras iracundas que
pareciam os dois Gracos; o genro bamboava-se na redouça de todas
as seitas liberais à espera
de cair uma vez sobre a pasta
da Marinha; quanto
ao conde, a Rússia
movia-se, e não
dizia mais nada. Estava
idiota e fazia a corte às amas de
leite dos netos.
O dinheiro de Vasco Pereira
cicatrizara umas úlceras e fizera repercutir outras piores.
Ele, pela sua
parte, lançou-se no jogo como
financeiro. Estreou-se com
felicidade naquele sistema
de suprimentos à quebra das rendas.
Teve noites cheias na
banca do conde de Farrobo, posto que lhe repugnasse concorrer àquela tavolagem com
merceeiros e cómicos, como
se no
estalão das paixões infames não
fossem iguais todos os homens. Depois, atraiçoado pela fortuna, passou a emparceirar-se com o
marques de Nisa, que esvaziava o estanque
das torrentes de ouro que confluíram
para ele, através
de quatro séculos,
desde Vasco da Gama,
e, navegador audaz do revolto oceano dos vícios,
afrontava o cabo da
desesperação como o seu ínclito avô o cabo da Boa Esperança.
Releve-se o gongorismo para uma
justa indignação!
***
O
visconde de Agilde não melhorou com o falecimento do sogro em
1868, nem tom o estabelecimento dos cunhados em
alquilarias e carros de transporte.
Naquele ano, o Banco Hipotecário
absorveu-lhe três quintas nas margens do Tâmega e reduziu-o a pouco mais de
um conto de renda. Agilde era já
propriedade de um brasileiro.
Ele mesmo gelou de espanto quando assim, aos quarenta e quatro anos de idade, se
viu desvalido com seis filhos, com a importância política perdida,
desacreditado em todos os grupos, porque a nenhum era útil nem temível. Os seus
constituintes provincianos preferiram-no — ah!, crê-lo-eis, Pisões? —,
preferiram-no àquele Juvenal de Cabeceiras, ao correspondente do Nacional, ao mordacíssimo
informador de Álvaro, em suma, ao
versista que começara
a popularidade de Vasco por
aqueles dois versos:
Ó bardo de Celorico, Quem te deu
tamanho bico?
A viscondessa, à volta dos
quarenta anos, caiu em si e praticou o heroísmo de vender
as suas joias para
pagar dividas ignoradas do marido. Dois filhos do visconde, Heitor e Rui, eram guardas-marinhas,
devassos e caloteiros; o mais novo era
pensionista no Colégio Militar. Havia três meninas: Maria da Piedade era a primogénita e orçava por dezasseis anos,
quando o visconde deliberou transferir-se
para uma quinta nos arrabaldes de Braga.
E partiram.
D. Leonor de Mascarenhas
estremeceu quando por entre um carvalhal sem folha, numa tarde de vento glacial, em
Novembro, viu a casa expiatória onde ia amarrá-la
a corrente da pobreza.
Era uma renque de quinze janelas de sacada
com portadas vermelhas, peitoril de pau e caixilhos de vidraças empenados
pelo sol e podres da
chuva. Por sobre
o telhado erguia as suas ameias
escuras um simulacro de torre
de menagem varada por duas
janelas sem portas, mas tapadas por dois
molhos de palha pança, que, vistos de longe, pareciam homens de borco a precipitarem-se da
torre.
Estava aberto um postigo do
portão de carvalho; o vento sacudia-o contra o batente
e fazia uma
compassada e aspérrima toada de matraca.
No grande terreiro interior corriam
espirrando duas cabras espavoridas
e estacavam às vezes voltando de
esconso para os desconhecidos
adventícios as narinas fumegantes. Por
uma cancela tosca
de passagem para
a quinta entrava o caseiro
carregado de erva; e, vendo os patrões, atirou o molho sobre um carro com o cabeçalho ao alto, desbarretou-se,
coçou-se e disse:
— Isto por aqui é novidade!
O visconde, para não desdizer da
desordem dos seus hábitos, nem avisou o caseiro,
nem perguntou se a casa da quinta ainda estava de pé.
Entraram na sala de espera. E
como quem entrava na casa da neve das Rodas do
Marão. O coração
tremia de frio. As três
meninas olhavam espavoridas para a mãe, aconchegando os capuzes das capas
ao rosto. O vento assobiava mugidos
nas cavernas dos
forros; dois enormes
ratos atravessaram a vasta quadra, velozes
e de focinho baixo,
como dois vadios de boa família
que passaram a noite em
orgia, e foram surpreendidos pelo
sol alto. Leonor sentou-se num escano de espaldar brasonado e
não pôde ter as lágrimas. O marido,
esquivando-se àquele
espetáculo, passou para o interior da
casa, ao passo que o caseiro ia abrindo as janelas.
Pouco depois,
chegaram alguns carros de baús e mobília, com criados, que ajuizavam
assim dos domínios senhoriais do patrão:
— Que diabo de casa é esta? Aqui
há lobos!
O
escudeiro dizia que não matara
ninguém para se sujeitar a tal
degredo. A cozinheira, vendo a primeira sala, exclamou:
— O que não será a cozinha!
Esta crise foi-se modificando a
pouco e pouco. Parte da casa foi
reparada e confortavelmente trastejada.
Uma das salas tinha um fogão antigo com colunas de bronze, mandado vir de Itália por D.
José de Meneses, arcebispo de
Braga. A
viscondessa e as filhas passaram
ali quatro meses chorando sempre as lágrimas azedas que o fumo da
lenha lhes estilava dos
olhos. O visconde passava
os dias na cama, lendo
os jornais da oposição e fumando charutos
de vintém com magnânima
coragem. Seis meses depois embranquecera-lhe o bigode,
refegaram-se-lhe as
pálpebras, espamparam-se-lhe os músculos
faciais.
Maria da Piedade era a sua filha
adorada que o acariciava e de mãos postas lhe pedia que tivesse paciência. Imaginando que o
pai envelhecia e definhava na soledade do seu quarto, pediu-lhe licença para
lhe comprar, com o
produto das suas poucas joias, um cavalo
que o levasse a passeios.
— De que me servem estas pulseiras
e estes broches que me deu a madrinha Lavradio! — dizia ela. — Mande-os
vender, o meu papá, e compre um cavalo.
Depois, se tornar a ser rico, dê-me outras joias, sim?
Ele estreitava-a febrilmente ao
coração e murmurava:
— Como eu vos desgracei, os meus
queridos filhos!
Maria da Piedade ameigava-o com
pueris carinhos e dizia-lhe:
— Não tenha pena de nós, que
ainda podemos ser muito ricos.
— De quem esperas tu a riqueza?
— A riqueza é não precisar dela,
o meu papá; não sei onde li isto...
***
No ano seguinte, o visconde
de Agilde foi a Basto a
fim de demandar uns foreiros
remissos de Chaves e terras de Barroso. Raposa aos grilos.
Hospedou-se na
vila do Arco e lembrou-se que devia estar aí Tomásia, a mestra
de meninas. Perguntou por ela ao seu procurador.
— Há seis anos que essa pessoa
saiu de cá — esclareceu o procurador. — Não
sei se a vossa Excelência sabe que ela mandou o filho para o Brasil. .
— Sei.
— Levou-lho o Álvaro Enjeitado,
um capitalista que...
— Bem sei.
— Depois, quando o abade de
Pedraça morreu, a Tomásia, que era para ele
como se fosse filha, apesar do que dizia o patife do boticário da Ponte de Pé — que já o levou o Diabo com um tiro que
lhe deu o irmão da Ruça de Gandarela,
uma linda rapariga que o malandro seduziu...
Como lhe faltasse a respiração e
a gramática, o procurador tomou fôlego, e, começando oração nova, continuou:
— A Tomásia caiu doente, esteve a
tocarem tísica, veio cá o filho, levou-a consigo para o
Brasil e para lá
foi, vai em seis
anos. Já depois que lá está, mandou
uma doação da casa de Agilde para uma criada velha e tem mandado esmolas a várias pessoas. Ouço dizer que o
filho também está rico como um porco,
porque é sécio do outro. É o que consta.
***
Temos que acrescentar a estas informações que Álvaro
Ribeiro, sócio de Álvaro Afonso da
Granja, faleceu em 1869. Um dos
seus legatários e testamenteiros foi o filho de Tomásia.
Liquidada a parte do sócio, que avultou a
duzentos contos — cifra que ninguém hoje em dia reputa riqueza —, Álvaro Afonso começou a sentir a infinita tristeza da
doença que fere todas as fibras e as vai
matando uma para uma, minuto por minuto. Não tinha ainda vinte e dois anos. A mie perguntava
a Deus se do fundo do seu cálix
de expiação havia de beber ainda
a última lágrima do filho moribundo.
A medicina mandou o enfermo a ares
pátrios. Era uma esperança,
que se afigurou à pobre mãe remédio seguro. Em Março
de 1870 desembarcaram em Lisboa. Era Primavera,
não a dos poetas, mas a Primavera em Portugal, fria e nublosa. Álvaro Afonso tiritava e aquecia o
rosto com as palmas ardentes das mãos.
Alugou e mobilou casa em Lisboa.
Tomásia não mostrava desejo de voltar ao Minho. Passeavam em carruagem. A mãe
gostava do arvoredo do Campo Grande.
Lembrava-lhe Agilde, os
castanheiros seculares da
quinta de Vasco,
as avenidas fechadas de álamos.
Também o via a ele, no rosto do filho, quanto pode
semelhar-se um rapaz alegre e saudável a outro de olhos mortiços orlados
de manchas azuis que davam
relevo aos ossos. E afastava-se de Álvaro,
a fim de embeber as lágrimas.
Um dia desceram a pé a Travessa
dos Carros. Álvaro, no Largo de Andaluz, parou em frente de um palácio. Reconhecera o
pátio da casa em que vira o pai. Lá
estava um cupé à porta, domo onze anos antes. Estremeceu.
Ia ver, segunda vez, o pai.
Passados minutos, viu entrar no trem um homem baixo, sobre o redondo, com óculos de
ouro e duas grossas cadeias
no colete de veludo azul-ferrete. A mãe sentara-se num
banco assombrado por uma árvore enfezada
que a flora fantasiosa dos Lisboetas chama o Jardim de Andaluz.
«Não morará ele aqui já?», pensou
Álvaro Afonso.
O sujeito dos óculos disse ao
cocheiro:
— Vamos em casa do Sr. Visconde
de Gandarinha, hem? E passe você no Chiado,
onde comprei o guarda-lama e pede ele, hem?
Era língua de brasileiro, sem
dúvida nenhuma.
Ficou à porta o guarda-portão em
mangas de camisa e colete de listas amarelas e escarlates. Álvaro perguntou-lhe:
— Quem mora nesta casa?
— E o Sr. Comendador Barcelos.
— É dele o palácio?
— É muito dele: comprou-o ao
visconde.., visconde não sei de quê...
— De Agilde?
— Isso.
— Onde está esse visconde, sabe?
— O boleeiro que ali vai no nosso
cupé foi dele. Acho que o visconde está lá
para o Minho. Esta casa foi-lhe penhorada e vendida em praça. Deu cabo de três milhões, o tal banabóia.
— Obrigado —
disse Álvaro. Chamou a sege e foi buscar a mãe
pelo braço.
— Que estavas tu a conversar com
aquele criado? Pareces-me mais pálido!
— Não, a minha mãe; como me
pareceu conhecer o homem que entrou no
cupé, fui perguntar-lhe quem era.
Até aos dez anos,
Álvaro lembrava-se de ter
ouvido a sua mãe falar-lhe
de Vasco, em conversação com o
abade; mas nem no Brasil nem em Lisboa lhe ouvira proferir tal nome, nem lhe ocasionava
modo a que ele satisfizesse uma dolorosa
curiosidade.
Tomásia lia o Jornal do Comércio
e sob a epígrafe «Má estrela» viu a notícia da prisão de D. Telo Mascarenhas, por ter
anavalhado um fadista na taberna do
Dafundo. O localista acrescentava:
Há fatalidades
inexplicáveis. O conde de Cabril, egrégio fidalgo dos arraiais legitimistas, teve três filhos. Um, D. Nuno,
morreu há dois anos da marrada de
um touro no Cartaxo;
a filha, D. Leonor,
que reinou nos salões do seu tempo, casou com um provinciano perdulário que
esbanjou o seu e o alheio: escusamos nomeá-lo.
O terceiro entrou hoje no Limoeiro,
e ali esperará monção
de passar à África
entre matadores da
sua têmpera. Os
avós de D. Telo também iam para a África, mas na
qualidade de governadores, como D. Fernão de Mascarenhas em 1480,
D. Jorge Mascarenhas em 1562 e
D. Fernando Mascarenhas em 1628.
Tomásia relia a notícia, com o
rosto coberto de lágrimas.
— Que é, a minha mãe? — perguntou
Álvaro, curvando-se sobre o ombro dela.
— Aí tens, lê!.. Deus é severo com todos os culpados... Aí
verás o que o mundo pensa. . do teu pai.
E, levantando-se, foi a soluçar
para o seu quarto.
Passados instantes,
Álvaro entrou serenamente na alcova,
pôs a mão amoravelmente no ombro da mãe e disse-lhe:
— Se houvesse um meio delicado de
eu socorrer... O meu pai!
Ela apertou-o ao seio, beijou-lhe
com arrebatamento as faces e balbuciou:
— Abençoado sejas tu, o meu anjo,
o meu adorado filho!... Vinga, vinga a tua
mãe.
***
Era Abril.
O
visconde de Agilde assistia aos trabalhos de jardinagem da
sua filha Piedade. A viscondessa, sempre a tremer de
frio com as mãos forradas num regalo
velho e esfumado, não sala do fogão. As outras meninas polcavam de chinelos
numa grande sala,
cantarolando a música, muito
esbofadas e vermelhas. Paravam às vezes abraçadas e
achavam-se ridículas.
O
visconde e a filha viram apear de um garrano, ria
testada do portão,
um sujeito mal entrajado.
— Quem é aquele homem? —
perguntou Piedade.
O pai entalou a luneta no olho
direito e disse:
— Algum foreiro dos executados
que vem pedir espera, talvez.
Aproximava-se o adventício com o
velho chapéu de feltro na mão.
— Jesus! — exclamou Piedade. —
Que parecenças ele tem com o mano
Heitor!
— Quer alguma coisa? — perguntou
Vasco Marramaque no tom usual e impertinente destes interrogatórios.
— Alguns minutos de atenção, se a
vossa Excelência mos concede.
— É sobre negócios de foros?
— Não Sr. Visconde.
— Suba. Ficas, Piedade?, —
Fico, papá — e
não desfitava os olhos do rapaz que tinha o rosto e o timbre de voz do
mano Heitor.
O
visconde subiu as escadas que levava à saia de espera. Álvaro seguia-o. Passou o fidalgo para uma segunda
sala e, entrando primeiro, disse:
— Entre.
Quando entrou, já
Piedade, pé ante pé,
atravessava o salão e cingia-se escutando.
— Escutar! Porquê?
— pergunta a
discreta e positiva leitora.
— Pressentimento misterioso?
— Não, a
minha senhora; simplesmente curiosidade, e curiosidade na aldeia que é capaz de nos
fazer andar, para encher tempo, a escutar por portas o que dizem os vizinhos.
Eis o que ela escutou:
— Devo dizer a vossa Excelência o
meu nome: chamo-me Álvaro Afonso da
Granja; sou filho de Tomásia Afonso, de Agilde.
O visconde não se descompôs, não
esbugalhou os olhos, nem expeliu os ahs aspirados
dos grandes espantos.
— Bem... — disse ele. — E um
pequeno que foi para o Brasil. .
— Há onze anos.
Tive então a
honra de ser
apresentado a vossa Excelência por Álvaro Ribeiro...
— Recordo-me.
— Fui infeliz. Uma doença
pertinaz, resultante da constituição fraca, não me
deixou trabalhar. Voltei pobre e
doentíssimo. Disseram-me os médicos que talvez ares pátrios me restaurassem. Estou
na Pátria, mas careço de meios com que
possa tratar-me.
Venho, pois, pedir um favor a...
O meu pai... Não sei se a vossa Excelência consente que eu lhe dê este nome...
— Não nego que sou
o seu pai —
respondeu o visconde com
fina e plácida naturalidade. — Que posso eu fazer no
seu beneficio?
— Permitir-me que eu convalesça
ou morra na sua
companhia — respondeu
Álvaro sofreando o transporte de
contentamento. — na
minha companhia é impossível.
Creio que sabe que sou casado e tenho filhos.
— Sei.
— Nesta casa não há a felicidade
que chamam fortuna, nem sequer a outra que
chamam paz. Sou infeliz, ter-lho-ão
dito; infeliz em todos os
sentidos. Desejo, porém, concorrer para o seu restabelecimento com os
meios escassos de que disponho. Está em
Braga?
— No Bom Jesus.
— Em hospedaria?
— Sim, senhor.
— Lembro-me que no Hospital de S.
Marcos há quartos particulares com excelentes
médicos e ótimo tratamento. Eu escrevo ao meu primo Magalhães, que é o provedor da Misericórdia, e
responsabilizo-me pelo pagamento.
— Obrigado a vossa
Excelência, mas não venço a repugnância que me
fazem hospitais.
— Pois então, conserve-se onde
está — respondeu secamente o visconde.
—
Em todo o caso, se eu
fizer pouco no seu auxílio, creia
que não posso fazer mais.
Álvaro não sentia os raptos que
nos dramas desenlaçam situações análogas. A verdade é pouco dramática. Ele queria
desfigurar-se subitamente, manifestar-se rico, sem frases arredondadas de
antemão.
Premeditara o que quer que fosse na hipótese de ser bem ou mal recebido; mas
o gélido sossego com que o pai lhe falava impunha-lhe
moderação no artificio dos
arrebatamentos filiais. De mais a mais enganara-se, pensando que o sangue dos filhos, na presença dos pais,
golfava aquelas tempestades que os dramaturgos
levantam nas cenas do reconhecimento. Sentia-se
a falar com aquele
pai como com qualquer outro visconde. Se Álvaro fosse crendeiro até à parvoíce, duvidaria se com efeito Vasco
Pereira era o seu progenitor, visto que a
natureza não gritava.
O
visconde, proferidas as últimas palavras, dera tento que era
escutado. Suspeitou da
viscondessa. Ergueu-se de
ímpeto e foi à
porta. Viu Maria da Piedade.
— Escutei, escutei, papá;
peço-lhe perdão — disse ela, entrando. — o meu papá disse ainda agora que era infeliz em
todos os sentidos. Não me queixo; mas
esqueceu-se de mim.. Já me tem dito que
eu sou a sua consciência e a sua vontade... Pois
então, se eu sou a sua
vontade, deixe ficar o seu
filho nesta casa...
— É impossível. Não conheces o gênio
da tua mãe?
— Não se diz à mãe quem este
senhor é; diga-lhe que é filho de um o seu caseiro da
quinta de Arnosa.
Conhece-se que está muito doente
— dizia Piedade olhando compadecidamente para o irmão.
— Quando o mano Heitor veio do Cruzeiro,
vinha assim. Precisa
de ser tratado com desvelo.
Eu encarrego-me disso, que sou
sempre a enfermeira nesta casa.
Estas palavras comoveram Álvaro.
Sentia agora o
coração que estivera atrofiado face
a face do pai. Não
era a irmã:
era a mulher formosa. Nestes conflitos
é que a natureza costuma
fazer prodígios. Borbulharam-lhe as lágrimas,
e disse balbuciando:
— A minha senhora, a sua
compaixão e a compaixão da minha mãe ser-me-iam um divino amparo, se eu pudesse
viver.
— Tem mãe? — perguntou Maria da
Piedade.
— Sim, tenho, a minha senhora.
— Ah!, tem?! — e olhou para o
pai, como a interrogar-lhe mudamente o coração.
— E não pode estar com ela... porque são pobres?
Álvaro, abaixando os olhos, fez
um gesto afirmativo.
— Deixe estar.. — disse ela —, tudo se há de remediar... Está
no Senhor do Monte, não está?
— Sim, a minha senhora.
— Deixa-me lá ir amanhã, papá? É
um passeio... Vou visitar o meu mano Álvaro...
— E estendeu-lhe a mão, que ele
levou aos lábios. — Tem febre!.. Que mão tão quente!
Amanhã conversamos, sim?
— Mas que vais tu fazer ao Bom
Jesus? — interveio o visconde. — Eu sei o
que é; mas podes cumprir o teu desejo sem lá ir.
— Posso; mas se o papá consente,
quero lá ir...
— Vai.
— Que caminho segue a vossa
Excelência? — perguntou Álvaro Afonso.
— Ora a vossa excelência? «Que
caminho segue a mana Piedade?» é como deve
dizer. Vou daqui às primeiras capelas a cavalo na burrinha do caseiro; se me parece, dou a volta a cavalo; senão, subo
as escadas.
— Eu virei esperá-la às primeiras
capelas — disse Álvaro.
— Pois sim; mas veja lá que se
não fatigue.
Ouviu-se então no interior da
casa uma voz áspera, gritando:
— Não se almoça hoje nesta casa?
Onde está metido o Sr. Visconde e a Piedade?
— Lá vamos, mamã! — respondeu
Maria.
Álvaro, apertando a mão do pai,
beijou-lha e disse-lhe:
— O ouro já não pode dar a
felicidade a vossa Excelência. Quem tem esta filha perdeu o direito a esperar outra
riqueza.
***
Quando Maria da Piedade avistou o
pórtico do Santuário, viu parado um cupé com dois
criados na almofada. Perguntou
ao escudeiro se conhecia aquele trem.
— É de um brasileiro que está no
Bom Jesus há oito dias. Ainda ontem à tarde
o vi neste carro na Senhora à Branca. Parece-se muito com o mano da vossa
Excelência.
— Com o mano Heitor?!
— Sim, a
minha senhora,
principalmente quando veio de
África, há seis anos.
Maria, insensivelmente, sofreou
as rédeas do jumento, que dou se a olhar para o escudeiro e a dizer pausadamente:
— Parece-se com o mano Heitor?
— E como um retrato. Há casos
assim, a minha senhora.
Ia perturbada.
A pouca distância
do cupé, viu abrir-se a
portinhola por dentro e descer Álvaro.
Soltou uma exclamação e
retraiu-se dos braços que lhe ofereciam amparo para apear-se.
— Vejo que
a minha irmã somente aceita de bom
rosto a mão dos seus irmãos
pobremente vestidos! — dizia ele sorrindo. — Tem a
bondade de continuar o seu
passeio na minha sege?
Piedade desceu, aceitou-lhe o
braço e entrou na carruagem. Na perturbação com que
entrara, deixou cair no tapete de zibelinas um
lenço branco que continha cuidadosamente atado pelas pontas um
voluminho pesado.
Álvaro levantou-o, e,
como ela se desse
pressa no receber, negou-se
a entregar-lho.
— Que é isto? Saibamos, mana
Piedade; o que aqui está parece-me que é a prova real do seu sobrenome — é a piedade
fraternal; é uma esmola que vai aqui
para um irmão doente e pobre, não é?..
— Eu pensei que... — balbuciou
Maria.
— Pensou que já se não faziam
romances, principalmente de homens ricos a
fingirem-se pobres? Tem
razão, mana Piedade, eu sou um desmentido a todos os
costumes. Agora, dê-me licença
que eu examine todas estas coisas que são as minhas — e desatava as pontas do
lenço.
— Não veja — acudiu ela —, não,
veja.., peço-lhe..
— Não verei, mas guardo-as: isto
é o meu, Se tenho alguma riqueza que me
enche a alma, é isto. Olhe, Piedade, olhe para mim... Não lhe parece que estou melhor? Veja o que é a felicidade! Não
me dói o peito, não tenho febre, e até sinto — desculpe-me a prosaica franqueza
—, sinto vontade de jantar.. Tenho
saúde! Quer que eu lhe diga tudo o
que se vai formando na
minha inteligência, na minha consciência
e no meu coração?
Entrei aqui há oito
dias sem fé, achava tudo isto uma
irrisão da desgraça. Sinto-me
agora religioso. Preciso de
orar.. Hei de ir
ajoelhar-me diante da imagem de Jesus Cristo, há de ir comigo, sim?
Peço-lhe que me dê saúde, que me deixe
viver para poder
amá-la, a minha
querida irmã; peça-lho
a chorar, como eu estou chorando...
E, soluçando,
abafava o rosto no
lenço que continha as joias
de Maria da Piedade.
Quando apearam no terraço do Hotel
da Boa Vista, uma senhora gravemente vestida
de seda escura avizinhou-se da carruagem.
— É a minha mãe — disse Álvaro;
e, descendo, beijou-lhe a mão.
***
As lágrimas da fé, se Deus não
existisse, fariam comover o Nada.
Maria da
Piedade e a mãe de Álvaro
choraram prostradas à cruz de
Jesus Cristo.
Pediram a saúde do filho e do
irmão, abraçadas aos pés do Redentor.
Álvaro restabeleceu-se.
Foi a felicidade que o salvou?
Foi aquele amor de irmão, amor indefinível e santíssimo, que o distraiu da morte e o encheu
das forças vitais que a ciência nega ao milagre e concede ao mistério?
Eu, espírito apoucado,
tenho a audácia de me
erguer até Deus, e não faço grande conta
das ciências médicas quando me não dizem
porque processo fisiológico se
salvou o enfermo que elas me asseveraram moribundo.
Álvaro Afonso da Granja deu pelas
joias de Maria da Piedade as quintas do visconde
de Agilde penhoradas pelo Banco Hipotecário. Piedade fez presente das quintas ao seu pai, com a condição da
deixar viver seis meses de cada ano em
Lisboa com o seu mano Álvaro. Tomásia
chama-lhe a sua filha;
e D. Leonor de Mascarenhas, quando fala
de Álvaro, chama-lhe o
bastardo. O visconde de Agilde nunca mais viu a filha do
boticário; mas, se um dia puder furtar-se
à vigilância da esposa, há de ir ajoelhar-se-lhe aos pés, a confessar a saudade e aliviar o peso da vergonha e do
remorso.
S. Miguel de Seide, 25 de
Setembro de 1876.
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Nota:Camilo Castelo Branco "Novelas do Minho" (1875-1877)
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Nota:Camilo Castelo Branco "Novelas do Minho" (1875-1877)
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