domingo, 1 de setembro de 2013

Camilo Castelo Branco: "O Filho Natural"

O FILHO NATURAL

PRIMEIRA PARTE

Os fidalgos de terras de Basto vão-se acabando. Tenho pena e saudades. Aqui  há trinta anos, com os brasões e apelidos das famílias heráldicas dentre Vizela  e Tâmega recompunha-se a história lendária de Portugal. Quem soubesse ler a  simbólica  das  arrogantes armas encimadas nos portões das quintas podia  lecionar um curso de História Pátria com tanta filosofia como Fr. Bernardo de  Brito e o  Sr. João Félix  Pereira, o  das várias faculdades. Em redor daqueles  paços senhoriais pesava um silencio triste e torvo. Era o luto de Portugal de  D. João II e de D. Manuel.

Cada portal bojava os seus granitos folhados de acantos, entre dois ciprestes; as  legendas dos  escudos denegridos e  musgosos pareciam  inscrições  tumulares; por sobre os paquifes dos elmos desgrenhavam as suas madeixas  os chorões, escurentando as avenidas daqueles solares carrancudos, como se  por ali se entrasse para as catacumbas da Ordem Terceira de S. Francisco, na,  sobre todas, honrada e pia cidade do Porto.  

Não  era assim melancólico  o viver intestinal  daquelas  baleias de pedra  que  pareciam esmoer de papo acima as famílias em soporosa digestão. Se lá dentro  as  tradições  históricas apenas se conservavam em alguns pires  e jarras  esbeiçadas de louça, que um sétimo avô trouxera da Ásia, a Ideia Nova, que  esvoaça na atmosfera como os aromas de todas as flores e os eflúvios de todas  as podridões,  chegara  a  terras de Basto,  aninhara-se brincando nos  açafates  das meninas como as andorinhas alegres  nas cornijas  dos seus  palacetes  sombrios.  A Ideia  Nova,  que brincava  no  açafate da  costura  e no  bastidor,  eram as traduções da Biblioteca Económica, em que a velha virtude e a velha  linguagem portuguesa  soluçavam os  últimos  arrancos,  nos  braços do Feliz  Independente, do  padre Teodoro de Almeida.  O  romance deu aos corações  das senhoras  de  Basto feitios  e  jeitos  novos,  ensinando-lhes o que  diz a  aurora, o que segredam as transparências cetinosas do arrebol, o que se deve  pensar quando as fontes trépidas murmuram, e tudo o mais respetivo a flores,  brisas e pássaros.

Desde a fundação da monarquia até el-rei D. João VI, o Minho não florejara  poetisa  conhecida,  salvo  a  viscondessa  de  Balsemão,  D.  Catarina; porém,  desde 1848 a 1860. contam-se por dúzias as cantoras que pousaram gorjeando  nos periódicos  do  tempo  com grande riqueza  de charadas e muitíssimos  Suspiros  dignos  dos  círculos  mais  lagrimosos  do Dante.  O  amor,  que  até  então fora de frutos, fez-se de flores; a mulher entrou na idealização; obrigou o cavalheiro de Basto a ser psicológico e sujeitar-se nos seus desejos amorosos  um  pouco ao metro e à  rima.  Foi  ela,  pois,  quem refez  o homem,  descascando-o,  adelgaçando-o,  cepilhando-lhe as rudezas, obrigando-o a  cantar  a  xácara  dos  Dois  Renegados. Por  este tempo entrou em terras de  Basto a caixa de música, e logo depois o manicórdio. Faz agora vinte anos que  ali  se  inaugurou a  perfectibilidade lírica:  ouviu-se  um  piano-forte em  Cabeceiras e outro na Raposeira. Era o último ponto da craveira nos avanços  do progresso.  Como  Babilónia  e Cartago,  Basto,  refinando em  civilização,  começou a  desandar.  Não  houve  em Refojos nem em Mondim um  Catão  Censorino que se levantasse, como em Roma, contra a inoculação pestilencial  das belas-artes e letras. A poesia e o piano tinham corrompido a terra de Santa  Senhorinha.

A degeneração do fidalgo de Basto promoveu-a o sistema representativo. O  ato  eleitoral foi a  rampa  traiçoeira  por  onde aqueles partidários  do  trono  absoluto  escorregaram à  democracia. Verdade  é que o  sufrágio cedido  aos  seus  correligionários  era  um  sincero  sufrágio  pelos fiéis  defuntos.  Os seus  enviados ao Parlamento sentavam-se  venerabundos,  cheios  de Febo  Moniz,  com, ares de senadores  romanos  em frente das  zombarias daqueles Brenos,  que tinham as línguas de Cunha Sotomaior e José Estêvão, cortantes como as  achas galo-celtas.  Não pediam estradas,  nem abadias,  nem  campanário,  nem  comendas,  estavam  ali  com os ouvidos atentos à  espera  do que vinha  da Rússia.  Afinal,  o temperamento  sanguíneo dos  cavalheiros  de Basto  borbulhou em  comichões de novas ideias,  e todos eles se  coçaram mais ou  menos com  a  Carta  Constitucional.  A liberdade  vencera;  mas as  proeminências congênitas daquela  plêiade  de Bayards,  quase todos capitães-mores, desvaneceram-se nas brumas da epopeia, que nunca mais terá pessoa  em que pegue naquela  região,  onde  já  não  há  tradição da  velha  tirania  dos patíbulos, exceto o vinho; que ainda é de enforcado.

***

Um dos  mancebos mais  completos, por  patrimônio,  nascimento e gentileza,  no concelho de Celorico, era o fidalgo de Agilde, Vasco Pereira Marramaque,  vigésimo terceiro neto de Gonçalo Mendes, o Lidador. Se eu tivesse de ir, ao  arrepio, na peugada genealógica deste sujeito, encontrava-me com o macaco  de Darwin.  É família  muito  antiga a  dos Marramaques  —  são anteriores  à  história e talvez aos macacos. E, se me não falha a conta dos avôs apurados  nesta linhagem, o dilúvio universal está desmentido.

Vasco era um rapaz moderno então. Em 1846 tinha vinte e três anos e trocava  costaneiras genealógicas encadernadas em vitela por canastras de romances de  Arlincourt  e Eugéne  Sue.  Não era  caçador  nem potreiro:  era  um sonhador  trigueiro familiarizado com certas estrelas, hipocondríaco, olheiras, fastio, um  grande aborrecimento de tudo e principalmente do estilo dos parentes, que lhe  chamavam mágico.

Ele tinha dado à luz no Periódico dos Pobres uma poesia na qual declarava  que  era  um  anjo caldo em lodaçal de javardos.  Aludia  aos primos.  Isto fez  sensação em todo o Basto. Um poeta de Refojos mordeu-o com uma sátira  que começava assim:

Ó bardo de Celorico, Quem te deu tamanho bico?

Vasco Marramaque enviou-lhe o seu cartel por dois intrépidos ex-oficiais de  milícias de Braga. O outro, que era discípulo de Alceu e de Horácio no lirismo  e no  amor  do seu corpo, fugiu de Basto  como  o seu mestre  fugira  dos  legionários de Octávio.

Poetas, por via de regra, não querem nem devem morrer em batalhas: o seu  ofício é dar a imortalidade aos bravos, O de Refojos pensava assim; e O de  Celorico ia mais para os citaristas das cruzadas, que morriam como Raul de  Coucy entre duas rimas e três cutiladas.  

Este incidente deu ares heroicos a Vasco. Fizera fugir o versista de Refojos,  que satirizava as autoridades nas gazetas, assinando-se Juvenal em Cabeceiras.  As senhoras amaram-no quase furiosamente.

As mulheres das terras frias e regadas pelas torrentes das montanhas amam os  trovadores valentes. Querem que o poeta lhes diga:  

Para sentir-vos, braço às armas feito; Para cantar-vos, mente às musas dada.  

Vasco provou a mão nos solaus, e dizia sempre que ia afinar o arrabil. Era o  instrumento de 1848, o arrabil. Mas, de vez em quando, no Eco Popular, do  Porto, aparecia uma pergunta anônima:

Ó bardo de Celorico, Quem te deu tamanho bico?  

***

Vasco Marramaque viveu do amor das castelãs dos seus solaus com exemplar  castidade por  espaço  de  seis  meses.  Os frutos  destas inocentes mancebias  eram umas  trovas em redondilha, quase  todas  aleijadas.  Procurava  uma  menina acomodada ao molde da sua imaginação; mas terras de Basto não lha  forneciam.  Ali  as meninas eram  cheias como  as  abóboras  —  abóboras- meninas. Ele queria a mulher vaporosa. Naquele tempo era moda o vapor nas  senhoras como encanto; hoje os poetas realistas malsinam-nas de anêmicas e  cloróticas. Nós, os rapazes que tínhamos alma e lira, queríamos que as nossas  amadas, por várias razões, se alimentassem do aroma das finas flores, como  Camões refere de certas famílias vizinhas do Ganges; ora os poetas da última  hora, com o zelo de corretores de restaurantes, arguem, acaudilhados pelo Sr.  R. Ortigão, as senhoras magras porque não digerem uns tantos quilos de boi  com mostarda, nem bebem cerveja preta, nem barram de manteiga  fresca o seu pão.  

Não  eram assim que o fidalgo de Agilde anelava  a  mulher que lhe preluzia  dentre a poeira de ouro das suas visões.  

Procurou-a  no  Jardim de S. Lázaro  do Porto.  Se vai no domingo anterior,  encontrava  cinco  meninas de  transparência  cristalina, bastante lidas  no  Telémaco,  sabendo de cor as passagens  mais sentimentais do  Eurico e a  Vivandeira, de Palmeirim.  

Eram as cinco joias  do Porto  em delicadeza  de espírito e  de cintura  —  tão  subtis  que  pareciam  almas deplorativas da  Divina  Comédia  envoltas em  tarlatanas.  Estas meninas,  de famílias diversas,  davam preocupação  aos pais;  porque, em matéria de matrimônio, diziam todas à uma que não achavam no  Jardim de S. Lázaro, nem na Filarmônica, nem na missa das onze, homens que  as compreendessem. Cada uma delas, portanto, devia ser a visão realizada de  Vasco Marramaque; infelizmente, porém, ele chegou oito dias tarde, porque as  cinco incomprises tinham casado naquela semana com cinco brasileiros.  

Percorreu o Pais,  farejando todos  os  centros,  todas as constelações  de  senhoras neste o nosso sistema planetário de terra a terra. Esteve em Sintra,  em Cascais, no Circo Laribau, nos gineceus doutos das Ex.mas Kruzes e nos  celebrados bailes dos Srs.  

Marqueses de Viana. Ouviu de perto o rugido das leoas e o metálico frescor  da  frase  sacudida das  damas aristocratas. Apertou  na  sua  mão fria  os dedos  febris  e opalizados  das filhas dos marqueses;  sentiu no rosto, em polcas  vertiginosas, as doces crispações dos boucles, que descobririam o galvanismo  no homem, se Galvani o não tivesse já achado nas rãs. Pois não sentiu nada!  Pela palavra nada! Quando saiu a barra de Lisboa, com o coração a disputar à  algibeira  primazias do vácuo,  conta-se  que,  pendido o rosto  para  o peito,   chorara copiosamente; e que, em frente das Berlengas, perguntara ao destino  surdo se a mulher dos seus sonhos estaria naqueles penedos.  

Voltou pára  a sua  casa  de Agilde,  aprendeu a  jogar o gamão  com o  farmacêutico  Macário Afonso e enfronhou-se  em política  com o juiz  ordinário.  Este magistrado,  galopim condecorado com o hábito  de Cristo,  incitava-o a ir ao Parlamento, assegurava-lhe a uma, contando-lhe os rombos  que fizera nela sempre que foi preciso fazer triunfar a justiça.  

Entretanto,  Vasco,  enquanto o boticário  manipulava  os seus  basilicões,  namorava-lhe a filha, com uns jeitos cínicos de quem vinha de Lisboa. Era ela  uma rapariga fresca e perfumosa como o rosmaninho e sécia de alegres cores  como a flor da hortênsia.  

Chamava-se a  Tomazinha  da  botica. Lia  novelas,  que o fidalgo  lhe  emprestava, traduzidas do francês. A Salamandra, de E. Sue, fez-lhe estranhos  abalos no organismo.

Aquele personagem chamado Saffie, por quem as mulheres morriam de amor,  enxertou-o  em Vasco.  Assimilava  capítulos  como quem ingere cabeças  de  fósforos.  O  pai gostava  da  ouvir  declamar os diálogos dos romances;  e,  moralizando aquelas histórias com bastante juízo, dizia:  

— Tomásia, isso parecem-me petas!...  

E, a respeito do Saffie, acrescentava:  

— Dá-me vontade de dar dois pontapés nesse safio!  

Ele bem via que a filha desatremava no governo da casa; não pegava em meia  nem fazia  peruas de  missanga;  dava-lhe  as  peúgas  esburacadas  e as ceroulas  sem nastros. Trauteava as xácaras da Moura e do Pajem de Aljubarrota com o  lacerante  sentimento  das enormes  desgraças.  Às vezes chorava  sem saber  porquê. Punha a mão na testa, afastava com frenesi os cabelos e murmurava:  «Anátema!», como Cláudio Frolo.  

E o pai dava-lhe chás de tília e de valeriana para o nervoso e óleo de mamona  de quinze em quinze dias para o flato.  

Tomásia,  medicada  com diluentes  enérgicos,  esmaiou-se e desmedrou;  mas  alindava-se com a palidez doentia do sangue empobrecido, afilaram-se-lhe os  dedos,  desceu a  cinta  dos vestidos  quando  os  quadris abaixaram, tinha  um  languir, um desfalecer tão senhoril, que o pai, ao vê-la morbidamente reclinar-se no escabelo, dizia sorrindo sobre posse:

— Pareces-me a Inês de Castro que eu vi representar em Amarante!  

Este bom homem, noite alta, folheava a sua livraria, copiosa em veterinária;  erguia-se  para  escutar  a  respiração da  filha  e correr-lhe  a  vidraça  nas noites  quentes; porque ela, quando a aurora de alvava a curva do horizonte, estava  ainda na janela a ouvir os últimos gorjeios dos rouxinóis.  

Contemplai uma vitima dos romances, é pais e mães de famílias!   

***

Por uma noite de calma, o boticário acordou estrouvinhado com um áspero  choque de raspão na face esquerda. Sentou-se espavorido no leito e viu dois  morcegos a esvoaçarem-se contra a vidraça com fortes pancadas e voltearem  pelo ar uns voos estridentes que faziam oscilar a luz da lamparina. Pareceu-lhe  agouro; mas a reflexão levou-o a meditar no modo como os morcegos se lhe  meteram no quarto,  estando a  janela  fechada.  Conjeturou  que a  invasão se  fizera  pela  janela  de  Tomásia,  ou pela  porta  do quintal,  e  afligiu-se na  suposição de que a pequena adormecera exposta ao relento. Foi de mansinho,  envolto no lençol, pelo corredor, com um rolo aceso; parou à porta da alcova,  que estava aberta; ergueu a luz para projetar a claridade sobre a janela, e viu-a fechada. Fez com a mão direita um abat-jour, a fim de não despertar a filha  com  o clarão,  e manteve  quieto a  ouvi-la ressonar.  Nem o leve ciciar das  expirações lhe ouvia.

Assustou-se;  e,  roçagando o lençol  como  os  espectros  dos  Mistérios  de  Udolfo, transpôs o limiar do quarto. A cama estava feita; a dobra do lençol  alvejava na colcha escarlate.

— Tomásia!  —  exclamou o  pai,  como  se  ela  pudesse estar naquele  pequeno recinto.  

— Minha filha!  

Assalteou-o uma  suspeita  angustiosa.  Desandou,  desceu  à  cozinha  precipitadamente e viu aberta a porta do quintal. Neste lance assomou à porta  do seu quarto a criada, que despertara com õ rumor dos passos; mas, vendo o  amo vestido tão  insuficientemente como o poderia  estar  o nosso primeiro  avó, se fugisse do Paraíso depois de inventar o lençol, recuou trespassada de  pudor.  

— Onde está a menina?! — perguntou o atribulado pai.  

— Onde está a menina?! — repetiu a criada com as costas voltadas para o  escândalo.  

— Sim... Onde está?  

— Onde há de estar? Na cama.  

— Não está! — bradou ele.  

— Vossemecê está a sonhar..  Faça favor de sair daí, que eu vou procurá-la. . Estará no quintal.  

Nisto deu três horas o relógio da botica.  

— No quintal às três horas? — observou ele menos alvoroçado.  

 — Pois então?  Era  a  primeira vez!..   Faz favor  de sair daí,  Sr.  Macário?  Olha que feitio de homem! Que preparo! Quero sair.  

Foi então que o boticário, reparando em si, viu que estava quase indecoroso.  

Voltou aceleradamente ao seu quarto e vestiu-se, enquanto a criada chamava  Tomazinha do patamar da  escada; e,  como  lhe não respondeu, correu ela o  quintal  com uma  luz  e,  vendo aberta  uma  porta que entestava  com a  rua,  levantou um grande choro, chamando as almas benditas.  

O  amo estava  já  encostado ao beiral do poço,  porque não podia  mover-se  nem falar desde que ouviu o chorar da criada. Aquela dor nunca o ameaçara  nos seus sobressaltos de pai. Atormentara-o o susto da perder; mas nunca se  lhe antolhava a filha desonrada; morta é que ele a chorara e preferira.  

— Eu estou acordado?! — dizia ele entre si. E friccionava com a mão o  rebordo do poço, para se afirmar na consciência da vigília.  

Nas  árvores  do quintal começaram  a  chiar  os  pássaros;  ao longe soaram as  nove  badaladas das ave-marias; na rua  passavam ranchos  de jovens  que iam  para  as segadas  cantando o  S.  João com  acompanhamento  de viola.  Que  formosa aurora de um dia de Julho!  

***

Ilustremos o sucesso. Quando Macário chamou de rijo a filha na alcova vazia,  estava ela com Vasco no quintal, e já três vezes se  tinham despedido, e três  vezes reabraçado. Não me lembram agora uns versos maviosos de Ovídio que  ele fez em conjunção análoga; mas toda a gente que teve namoro num terceiro  andar — altura onde os suspiros exalados desde a rua chegam em temperatura  honesta — sabe quantos adeus se repetem, quantos juramentos se renovam,  até que a patrulha vem chegando com a Moral e com a baioneta.  Tomásia, quando ouviu bradar o pai, encolheu-se como criança espavorida ao  seio de Vasco e soluçou:  

— Estou perdida! Não me deixes!  

O lance era apertado — não havia tempo a refletir. Se ele a amava cegamente,  o expediente inquestionável era a fuga; se ele a amava nos limites ordinários  da prudência, tinha de ser uma de duas coisas — infame ou cavalheiro. Ora  ele era da geração dos Marramaques: tinha brios.  

— Vem comigo! — disse fidalgamente, e deu-lhe o braço.  

E ela sentia-se feliz e invejável ao transpor a soleira da porta como se por ali  se  evadisse  ao desdouro.  Aconchegava-se  ao braço do amante com  estremecimentos  de  gratidão e vaidade.  na  sua  doce  turvação  nem sequer a  imagem do pai lhe azedou com uma lágrima a taça daquele haxixe das ébrias  do amor.  Vasco parecia  contente  do seu feito  pundonoroso.  A submissão  amorosa da sua protegida para uma desonra incondicional era-lhe agradável ao  orgulho. Como a paixão lhe não empoava já os olhos da alma, podia ver em si  um homem extraordinário que, por simples impulso de cavalheirismo, dava na  sua casa bizarra homenagem para uma rapariga da baixa condição de umas a  quem a sociedade não costuma pedir contas...  

Parece-me que estou a fazer frases.  

A falar verdade, se Vasco, em vez de levar Tomásia, lhe fizesse um discurso  admoestando-a a conservar-se na casa paterna, e ela transigisse, perdendo ao  mesmo  tempo a  estima do pai,  a  estima  de si própria  e o amor  do amante,  nós, os que temos em conta de infames aqueles que o mundo chama finórios,  havíamos  de pôr  aquele opróbrio  dos  Marramaques  a  tormento  nestas  páginas, cheias de cóleras sagradas, e fustigá-lo a ele e aos seus parceiros com  os alexandrinos tartarizados do Sr. Guerra Junqueiro:

[.. ] Brutos sem B maiúsculo,  A consciência  é um  ventre e o coração é um  músculo!

Cantai, gozai, bebei até romper a aurora!  

Atirai  o  pudor  pelo  janela  fora  Como  um  charuto  mau  que se apagou.   Canalhas!

***

Macário  não abriu a  botica  naquele dia,  nem consentiu que se  abrissem as  janelas.

— Faço de conta  que ela  morreu. Está  morta.  Aconteceu o que eu  esperava, mas doutro modo. Tanto choro eu por ela assim como choraria se  lhe estivessem agora rezando os responsos na igreja.  

E, dizendo, as lágrimas rolavam-lhe a quatro pelas faces e pareciam sulcar-lhas  como se dez anos de vida amargurada se condensassem na tortura de algumas horas.

No fim  de três dias,  o farmacêutico  apareceu vestido  de luto carregado.  Se  alguém proferia palavra a respeito do luto ou da filha, ele, apertando os beiços  com o dedo polegar e o indicador, fazia um gesto de silencio. E, em seguida,  sumindo-se na  casa  traseira  da  botica,  ia  chorar.  Passados  oito  dias,  quem  abriu a botica foi um caixeiro que viera de longe.

Macário  saiu de  Celorico  de Basto  e foi  administrar outra  farmácia  de  uma  viúva,  dali  quatro léguas,  onde eu estudava  latim. Ali o conheci.  Teria  cinquenta  anos.  Foi  o  meu mestre  de gamão e damas.  Durante  onze meses  nunca lhe ouvi falar de Tomásia. No fim do ano, aliviou o luto; mas, como  não pudera despi-lo da alma, entrou a embriagar-se. E então falava da filha,  fazia-me confidências,  vociferava  palavras  brutais  e  tinha  arrebatamentos de  fúria  em que os  olhos  lhe ofegavam e rompiam das órbitas. Estas  crises  terminavam dormindo.

Tomásia  devia  conjeturar  tamanhas  dores que a  Providência  lhe estava  debitando no grande livro que um dia se abre diante do devedor. Que livro  esse quando se abre!

Parece que as pessoas, as coisas, as forças vivas e as impassibilidades mortas,  tudo nos  pede  contas,  tudo  tem  uma  garra  invisível  que nos arranca  do  coração as mais pequenas parcelas!

***  

Vasco Pereira  Marramaque contava vinte  e seis  anos quando  a  filha  de  Macário,  ao cabo  de  dezoito meses de incauta  alegria  na  convivência  do  fidalgo, lhe ouviu dizer:

— Esta vida não pode  assim continuar.  —  E prosseguiu enchendo o  cachimbo.  —  É  preciso ter alguma utilidade.  Não hei  de  ficar toda a  vida  metido em Agilde.. 

Tomásia  escutava-o com dolorosa  estranheza,  enquanto  ele,  com ares  enfastiados, dizia que o viver das aldeias era estúpido; que envelhecia naquele  sequestro de gente  com quem falasse;  que cortara  as suas relações com as  casas de Basto, para que o deixassem só, e que as não queria atar de novo. E  concluiu:

— Arranja-se-me ocasião de poder ser eleito deputado por Braga, e estou  resolvido a fazer todos os esforços para ir à Câmara.  

— Tomara  eu ver-te  fazer figura!  —  acudiu Tomásia  com  este sincero  plebeísmo; e acrescentou carinhosa: — Eu vou contigo, sim?  

— Para Lisboa?..  Ora essa! Nem os deputados casados levam as mulheres.  

— Isso que tem? — replicou ela amorosamente. — Eu não te deixo ir sem  mim...

— Demais a  mais,  não vês  que eu, se  for  eleito,  venho a  ir daqui a  três  meses? Para esse tempo...  

— Ah! — atalhou Tomásia. — É verdade... E tu nessa ocasião não hás de  estar ao pé de mim..  e... do teu filhinho?! Serás capaz de me deixar sozinha...  

— Com as tuas criadas...  

— Ora!. .  Tomaram  as tuas  criadas  ver-me pelas costas...  Têm-me  um  ódio!...

— Imaginações tuas... Demais, eu venho de Lisboa assim que for tempo,  menina.

Está descansada, que eu hei de ser sempre o mesmo para ti...

— Já  não és o mesmo, Vasco...  Acho-te tanta  diferença  que..   desde que  estou contigo, a primeira vez que tenho vontade de chorar.., é agora.

E,  proferida a  última  palavra,  as glândulas lagrimais  golfaram como se  obedecessem à pressão de uma mola.  

— Porque choras?  — interrogou Vasco asperamente. —  Querias que eu  ficasse  estagnado nesta aldeia?!  Levas a  mal  que eu me eleve  sobre esses  fidalgos lorpas que ensinam bestas e passam as noites a jogar à bisca?  

— Quem te diz isso? Vai, vai para Lisboa, que eu ficarei aqui, ou onde tu  quiseres.

E engolia  as lágrimas,  provando o primeiro trago amargo  do seu cálix  de  expiação.  

Ele ergueu-se sacudindo o resíduo do cachimbo, mandou pôr  o selim no  alazão e saiu sem olhar para a sacada onde ela costumava ir dar-lhe o adeus  saudoso.

Neste dia pensou Tomásia muito e com tristeza no pai.  

Ao anoitecer,  Vasco voltou mais agraciado  de rosto.  Ela  pensou que era  o  pesar  da  ter  magoado,  remorso  que  se  dilui em carícias  quando o coração  acusa; confundiu este sentimento, misto de júbilo e dor, com o sentimento da  compaixão. O que ele sentia era dó — uma piedade preventiva que se condói  da mulher destinada ao abandono, piedade que não torna quando afinal soa a  hora do tédio e do desamparo.


O candidato vinha de conversar com os influentes de dois concelhos. Revelou  os  primeiros  entusiasmos  de homem público.  Parecia  andar-se já  ensaiando  retoricamente.

Explicava o que eram regeneradores, falou do herói de Almoster, desfez nos  méritos do Sr. Ávila e João Elias, sarjou fundamente as carnes dos cabralistas,  gesticulando e passeando, com as mãos no cós das calças como José Estêvão.  Tomásia  escutava-o,  seguia-o  com os  olhos  fascinados  naquelas energias  desconhecidas. Nunca lhe vira mímicas tão veementes, tamanhos assomos de  cólera política, olhando às vezes fixamente para um ponto elevado. Tomásia  não sabia que ele erguia os olhos para a cadeira da presidência, e às vezes para  a  galeria  das  senhoras,  in  petto. Era  uma  vocação  que  estoirara  de  súbito,  imprevista e fatal. Ele mesmo, a sós com a sua transformação, espantava-se de  ter tido na sua pessoa uma incubação surda e tanto tempo apática.  

Nos dias seguintes, poucas horas passou em casa. Acompanhado dos homens  notáveis de Basto, foi conferenciar com as autoridades a Braga. Opuseram-se-lhe  grandes obstáculos  —  atritos,  diziam os  políticos  no seu calão.  Vasco,  beliscado no  orgulho,  jurou ser  eleito  à sua  custa,  comprando a  consciência  aos eleitores. Naquele tempo uma consciência de eleitor rural regulava entre  dois pintos e quartinho, com jantar de cabrito guisado e vinho à discrição.  

O abade de Pedraça disse-lhe que seguisse o conselho de Luís de Camões se  queria  vencer o candidato realista,  o  seu competidor;  que o seguisse  à  letra,  principalmente no artigo «regedores». E, como Vasco se risse do anacronismo  de  Camões  com regedores  no  século  XVI,  o abade  tirou da  estante  Os  Lusíadas e no canto VI, estância LII, apontou-lhe os dois versos finais, que  rezam assim:

Por manhas mais subtis e ardis melhores, Com peitas adquirindo os regedores.

— Adquira-me  os regedores  com  peitas  —  acrescentou  o abade  de  Pedraça, tocando-lhe com a lombada do  poema  no ombro.  — Estes versos  são de profética  e perpétua  serventia  em Portugal.  Tão preparados estamos  hoje para o sistema representativo como em tempo de Camões. Que anda a vossa  Excelência  aí a  desbaratar pérolas de eloquência  por esses lameiros?  Querer meter ideias sociais na cabeça destes lavradores é querer furar o badalo  daquele sino com uma verruma (e apontava para a torre). Isto aqui são varas  de porcos que se movem para onde os puxa o instinto da bolota. Bolota, Sr.  Vasco,  bolota,  e nada  de palavras!  Pois  a  vossa  Excelência  persuade-se  que  pode haver um deputado escolhido pela inteligência dos eleitores que não têm  um mestre-escola?

Nós,  os  minhotos  desta  corda  de Basto,  demos  fé  de que  não reinava  D.  Miguel  quando os  frades despiram os  hábitos e os  capitães-mores as fardas;  porém, quando por aqui se alastraram os executores da fazenda, dissemos aos  realistas que acendessem as luminárias, porque,

D. Miguel chegou à barra  
Sua mãe deu-lhe a mão, 
Anda cá, o meu querido filho, 
Não queiras Constituição.

E cantarolava o folgazão abade de Pedraça, batendo o compasso na capa d'Os   Lusíadas.

***

Vasco Pereira Marramaque saiu eleito... por novecentos mil-réis, trinta e nove  cabritos e  duas e meia  pipas  de vinho verde  —  vinho que  devia  ser  um  exagerado castigo daquelas consciências corrompidas dos cidadãos. Graças a  Camões e ao abade de Pedraça, o fidalgo de Agilde foi proclamado contra os  protestos de duas mesas eleitorais que estavam vendidas ao competidor.

Tomásia  chorou em segredo para  não aguar o contentamento  do  representante do povo. Redobrou de afagos a Vasco, pedindo-lhe, em nome  do filhinho, que a não esquecesse. Sentia-se descaída e desnecessária na vida  dele;  fiava-se,  ainda  assim,  nos  maviosos  enleios  da  porvindoura  criança.  O  egoísmo não lhe dava lanço de recordar-se com angústia da causa que a fazia esperar  tanto  do amor paternal:  devia  ser o grande  amor que  o  seu  pai lhe  tivera, o insano mimo com que ele a criara, acalentando-a nos braços, desde   os  quatro anos, em que ficara  órfã  de mãe.  Era  cedo.  As disciplinas do  remorso começam a macerar quando a alma não tem evasiva por onde lhes  fuja, nem alegria que lhes verta bálsamo nos vergões.  

Saiu Vasco  Pereira  para  cores,  estadeando  um  aparato  condigno  dos  seus  apelidos.  

Como não ia bem seguro na transcendência dos seus discursos e na distinção  exequível por esse meio, fez-se preceder de cavalos e lacaio, escudeiro e jóquei  preto. Conhecia o Chiado e tinha sondado a índole de Lisboa. Conjeturou que  dois cavalos o levariam mais depressa aos sonoros átrios dos palácios do que  dois discursos a respeito das estradas concelhias de Gondiães e Painzela, para  os quais levava apontamentos em que tencionava encravar Aristides, e citar, a  propósito  de estradas  decretadas pelos  Cabrais e  Elias,  o Timeo Danaos et  dona ferentes. E, dizendo isto, tinha dito todo o latim que se sabia nas duas  Câmaras  e no jornalismo,  excetuada  a  Revolução  de Setembro,  onde  o  Sr.  António  Rodrigues  Sampaio  motivava  latinamente invejas apopléticas  ao Sr.  Conselheiro Viale.

Os fastos parlamentares deste deputado  provincial não nos  são mais  conhecidos que os discursos de Hermágoras, retórico de Temnos. Ao entrar  na  sala  de S.  Bento,  cada  cabeça  frisada  dos  seus  colegas  foi para  ele uma  cabeça de Medusa; petrificaram-no.

Conhecia-se interiormente grávido de patriotismo, cachoavam-lhe as ideias no  cérebro; mas sentia-se sem gramática. Chegou, no delírio da sua alucinação, a  imaginar que no Parlamento era necessário saber a língua portuguesa! Ouvia  discursar alguns colegas, e não se convenceu que eles estavam ali autorizados  pelo poema do abade Casti. Em casa repetia os dois sabidos discursos sobre  estradas com ênfase e modulações um pouco demosténicas e talvez imitadas  do Sr.  Arrobas;  porém, aberto a  oportunidade  de pedir a  palavra,  não sabia  por onde começar este peditório. Dir-se-ia que o presidente era Perseu, que  lhe mostrava no fundo do seu chapéu a cabeça da Górgona; ou, para melhor o  compararmos a  sabor cristão,  o presidente impunha-lhe  silêncio como  o conhecido frade do Buçaco que perfila o dedo na ponta do nariz.  

Desistiu de falar,  reservando-se para as  ocasiões imperiosas em que a Pátria  necessitasse das explosões  dos  seus  Brutos  —  aludia  àquele Bruto I  que  estivera  calado  até ao momento em que  Lucrécia  foi violada;  e mais,  o  deputado por Braga estava já tão apestado dos miasmas do Café Marrare que não acreditava em Lucrécias.

Verdadeiramente corrompido  — diga-se isto com a  breve energia de Tácito  nos  formidáveis lanços  da  história  —,  Vasco Pereira Marramaque estava  irremediavelmente corrompido pela convivência de uns leões que sacudiam as  crinas ungidas das lágrimas das mulheres, nos seus divãs do Hotel de Itália. O  conde da Taipa, o seu primo por Marramaques, Manuel Browne, José Vaz de  Carvalho,  D.  Francisco  Belas, José  Estêvão,  e  outros que ainda  vivem   expiando o passado,  eram  os  seus  íntimos.  Também era  dos seus  Almeida  Garrett, que dourava o bordo do cálix por onde se bebiam aqueles venenos  diluídos nas palestras de uns homens que se vingavam do tédio dos prazeres,  desfolhando com sarcástica e gentilíssima nonchalance — era o termo — as  flores  em cujas pétalas havia  lágrimas.  O  poeta  das Folhas saldas  relia  e  comentava ali os seus madrigais com umas facécias juvenis tão congeniais da sua  alma  sempre  criança  que os  mais novos do  grupo  lhe  invejavam as  reflorescências do estilo e as mulheres que ele perpetuou até nós de parçaria  com os fluidos transmutativos. Pasmado das proezas destes homens, olhou para si e achou-se miserável nos seus amores sertanejos para uma obscura filha de boticário. Não tinha façanha  que contar quando lhe pediam casos da sua vida; via-se forçado a inventá-los  para não ser ridículo, nem dar suspeitas que passara do seminário de D. Fr.  Caetano  Brandão  para  o  Parlamento.  Relatava  então raptos e adultérios,  pondo os maridos nas cenas  grotescas  das tragédias e caricaturando as  desgraças para não desafinar do tom dos seus amigos.  

Era  um  tartufo  de patifarias  —  o que aí há  de mais covarde e perverso no  canalhismo das salas.

Entretanto, dava-se pressa em adquirir a certeza prática de que tinha direitos a  contar aventuras menos  fantásticas.  Ser-lhe-ia  mais  custoso  ser honesto se  ensaiasse a fábula de Daniel na caverna dos leões, ali em Lisboa, onde mais  tarde se  perdeu outro  deputado  de melhor casta  —  aquele  Calisto  Elói  de  Silos Benevides de Barbuda que eu chorei n'A Queda de um Anjo.

Em breve prazo  ombreou tom os  mestres.  Não direi,  todavia,  que Vasco  baldeasse  pelas trapeiras  a  desonra  ao  seio  das  famílias.  Estavam já cheias  disso.  Ele,  no  seio  dessas  gentes,  entrava  impercetível  como  um  regato no  bojo do mar Morto, que esconde as relíquias de Sodoma. Algumas, com tal  hóspede ainda não carmeado inteiramente de lã minhota, julgar-se-iam em via  de regeneração. Vasco, na sua panóplia amorosa, tinha coroas de baronesas e  condessas;  mas  Cunha  Sotomaior dizia-lhe  que os  tais  troféus pareciam  arranjados na Feira da Ladra, ou roubados ao gabinete arqueológico do abade  de Castro, Deus lhe perdoe.

***

Nem tanto. 

O  deputado escondia  ao exame  dos  seus  amigos  uma  luva  branca  de cinco  pontos  e a  medalha  de um  retrato.  Sagrava  estes dois objetos  um  amor  incontaminado, uma paixão que se urdira com duas fibras puras do coração de  Vasco.  A menina  amada  era  ilustre,  formosa,  inviolada  na  sua  reputação e  pobre. O seu pai era conde, representante de condes que já o eram no reinado  de D. Manuel. Os seus irmãos eram dois fadistas, as melhores duas navalhas  da  Travessa  dos  Fiéis  de Deus e arredores.  Velaram as armas no  sótão da  Severa e remedavam o conde de Vimioso nas características farsolices do alto  banzé.  Mordia-os  uma aspiração ardente:  queriam ser boleeiros.  Aquele  grande batedor  José Mulato, em  domingo  de  tourada,  jantava  com eles no  Penim ou no Colete  Encarnado;  abraçavam-no,  beijavam-no, estudavam-lhe  os trejeitos na bebedeira, e atemperavam-se tanto às suas gingações que ainda  no estado normal pareciam ébrios.

O conde resvalava vagarosamente à sepultura, carregado com a ignominia dos  dois filhos. Amparava-lhe a cabeça branca uma filha. Era esta a mulher que  Vasco Pereira vira em Sexta-Feira de Paixão na capela do seu parente o conde  de Redondo.

Aquela  capela,  naquele  tempo e na  Semana  Santa,  era  o confluente das  famílias de mais alta estirpe, que não reconheciam a soberania de D. Maria II.  Vasco Pereira Marramaque, o representante dos castelões e ricos-homens de  Lanhoso,  tinha ali  parentes;  e  em contacto  com  eles  sentia-se  abalado  pelas  reações da raça e entorpecido por um magnetismo miguelista.

Sobejavam-lhe predicados agraciáveis, além da prosápia e fama de rico. Vestia  com primoroso bom-tom. Era perfeito homem na corporatura e naturalmente  esbelto nas atitudes. Trigueiro-pálido, bigode farto e negro, a cara sentimental  dos romances.  O  sorriso  sincero,  sem os vincos labiais com  que alguns  artífices de chalaças se narcisavam ao espelho para se inculcarem medonhos  frecheiros de sarcasmos. Era, enfim, a flor do Minho e o querido da sua prima  em grau desconhecido, D. Leonor de Mascarenhas, filha do conde de Cabril.  

O  ideal, que o preocupava  antes de se  materializar nas lides eleitorais  e na  sensaboria  das intimidades monótonas com Tomásia,  reapareceu-lhe na  angélica beleza de Leonor, na santidade do seu viver, na piedade filial com que  lenimentava  as acerbas  dores do conde.  Respeitou-a  e adorou-a,  como se a  visse na candura dos dezoito anos, quando lia O Menino na Selva. Retraia-se  acanhado, se lhe cumpria ser um agradável conversador. Parecia ter perdido  no  comércio de amorios despejados  a  moeda do fino  ouro  —  a  frase sã,  simples e afetiva de que as almas singelas se contentam.

Leonor sabia que era amada; e o conde, fiado na probidade da filha, consentia que  o rico  e ilustre  Vasco  Pereira  a  cortejasse,  tirando a  partido  que  o  casamento  se  fizesse  sem precedências de cartas,  rendez-vous e outras  frivolidades que deterioram a  gravidade de tal ato. Sistema antigo e bom. O  conde havia assim casado. Não constava que na sua família, muito mais antiga  que a instrução primária, desde o seu trigésimo avô Leovigildo, rei visigodo na  Lusitânia, alguém se matrimoniasse por cartas.

Nesta  conjuntura  recebeu Vasco a  notícia  de que era  pai de um  menino. Escrevera o feitor  a  carta  que Tomásia  ditara  e num P.  S.  acrescentara pelo  seu punho:

 Há treze dias que não me escreves!!  Não te esqueças do leu filhinho.

O pai do menino achou exagerados os três pontos de admiração e não pôde  sofrear a zanga que lhe fazia aquela espécie de violência. Com que direito se  admirava a filha do boticário? Cuidaria ela que era a baliza do destino de um  Marramaque? Talvez se persuadisse que o filho era o remate da sua felicidade!  Imaginava certamente que ele, o esperançado noivo de uma Mascarenhas, ia  logo,  a  jornadas forçadas,  para  casa,  doido  das alegrias de progenitor,  acocorar-se ao pé do berço e babar-se de risos paternalmente palermas!  

Ele pensava isto pouco mais ou menos; mas não respondeu assim.  

Dizia que ficara muito jubiloso com a notícia; arranjasse ama e mandasse criar  fora o menino, porque a estação ia muito agreste; mandava que recomendava  à mãe que se acautelasse do frio, que o batizasse em nome dela e lhe pusesse o  nome que lhe agradasse; ordenava finalmente ao feitor e à mulher que fossem  padrinhos.  Era  uma  carta  em que não ressumbrava  sentimento  amoroso de  pai  nem de amante,  salvo  a  recomendação de que  tivesse  cuidado com as  constipações.

Tomásia leu a carta por entre lágrimas e disse de si consigo:

«Está tudo acabado.» E, descobrindo o rosto da criança que aquecia sobre os  seios,  soluçou: «Quê será  de nós?»  Respondeu a  Vasco, dizia  que o menino  seria batizado sem nome de pai e com os padrinhos indicados; quanto, porém,  a  mandá-lo criar,  declarava  que a ama do  seu filho havia de ser ela;  mas, se  Vasco instasse pela criação fora, em tal caso teria ela de sair com o filho. E  acrescentava com uma serenidade que a dor atabafada igualava para um raro  heroísmo no infortúnio:

Recebo a tua carta na mesma hora em que recebi a notícia da morte do meu  pai.

***

A notícia enviara-lhe o praticante e administrador da botica, perguntando se  devia continuar a dirigir a farmácia da qual ela era a herdeira. E mandava-lhe  inclusa uma recente carta de Macário Afonso em que aprovava as contas do  caixeiro, agradecendo-lhe e louvando-o pela probidade com que fiscalizara a sua  casa. Dizia  mais que tinha  tido ameaças de apoplexia,  a  que o cirurgião  chamava febre cerebral; e concluía:  

Se eu morrer de repente, o meu testamento está feito. Aminha herdeira é essa  filha que me matou. E herdeira da sua mãe, porque essa casa e tudo o que está  nela era da minha defunta mulher Tudo lhe deixo; mas não posso perdoar-lhe  a ingratidão com que me desamparou.

As angústias mais cerradas deixam sempre clareira iluminada por uma réstia de  esperança.  A alma  opressa  é engenhosa  em achar fenda por  onde se   desafogue.  Assim  Tomásia,  entre a  carta  de Vasco e a  do pai,  entre  a  desesperação  de amante  e  o remorso  de filha,  amparava-se  à  certeza  de ter  uma agência bastante à sua independência.

O fidalgo não desgostou da expressão seca e altiva da resposta de Tomásia.  Como receava lamúrias e queixumes que complicassem o inevitável desenlace,  foi-lhe agradável supor que ela transigiria com a separação sem violência nem  escândalo. Por outra parte, a sua vaidade sentiu-se da sobranceria de Tomásia,  da  hombridade com que  ela  o tratava  como de igual para  igual,  com a  fácil  transigência da mulher enfastiada.  

Como quer que  fosse,  Vasco,  sacrificando  o seu amor-próprio,  antes queria  ser aborrecido que importunado pelas lástimas.  

Mas as  lástimas  apareceram na carta  do  correio  imediato.  Quebrantado o  orgulho ferido e aplacado o despeito, afluíram as lágrimas ternas e suplicantes.  Tomásia,  com  o  filho  no regaço,  e ainda  no  leito, escreveu com eloquente  paixão  as suas saudades,  as  lembranças do que Vasco lhe dissera  e lhe  prometera  naquelas noites em que ela,  corajosa  como  a  culpa  sem pudor,  descia ao quintal a recebe-lo nos braços, e a lançar-lhe aos pés a sua honra, e a  honra e vida do seu pai. Implorava-lhe que não enjeitasse o seu filho, que o  batizasse no seu nome, que o fosse ver, se queria ficar preso às asas daquele  pequenino anjo.

A dor era sincera nesta carta; mas a leitura de novelas fornecera-lhe bastantes  frases, não menos conhecidas do deputado.

Isto inquietou-o. Havia já pedido a mão da sua prima Leonor. Devia recebê-la  passados dois meses. Preocupavam-no os presentes de noivado. Precisava ir a  casa  buscar as joias  da  sua  mãe para  engastar  os  diamantes em adereços de  feitios modernos.  

Queria vender para um brasileiro uma quinta em Lanhoso e a outro brasileiro  os seus foros de Felgueiras. Carecia de arredondar uma dúzia dê contos para  estabelecer-se  na  corte  com cocheira  e  salão,  com parelhas e amigos.  Calculava,  feitas as  vendas,  oito contos  de  renda,  afora  umas  presuntivas  sucessões  em vínculos  e prazos.  O  futuro sorria-lhe como  a  todos os  namorados e noivos com oito  contos de renda;  mas Tomásia  era-lhe um  estorvo  irritante.  Enquanto  ela  estivesse  em Agilde,  Vasco, se  ali  fosse,  expunha-se a grandes sensaborias.  

Nesta  urgência, acudiu-lhe ao pensamento  o seu velho amigo e mestre de  Lógica, o já conhecido abade de Pedraça.  

Sentou-se e escreveu compridamente.

***

Tomásia não recebera resposta à carta das lágrimas humildes. Sentia-se outra  vez em reação de orgulho. Punha todo o seu coração nos lábios que beijavam  a criança e pensava, outra vez, no contentamento de ter uma casa a sua com  uma farmácia acreditada.

Pesava  já  sobre ela  esta atmosfera  crassa e brusca  do positivismo  moderno.  Gostava de ter do seu. Não lhe metiam medo os senhorios, nem a carestia dos  comestíveis, nem o desprezo sovina de parentes. Tinha seguro o pão do seu  filho. Começava  a  odiar  o  pai  dessa  criança tão linda; mas de  súbito  marejavam-lhe as lágrimas,  lembrando-se do  prazer que sentiria  Vasco se  sentisse nas mãos o seu filhinho...

Em um destes lances, anunciou-se o abade de Pedraça, que queria falar à Sra. Tomazinha.   Ela estremeceu. Aquele padre nunca lhe falara nem a cumprimentara, tendo-a  encontrado de passagem quando procurava o fidalgo. Era um clérigo severo, egresso  da  Ordem de  S. Bento,  liberal,  mas de costumes austeros,  e talvez  acintemente exagerados  para  demonstrar que liberdade não é licença  e que  somente o clero estúpido é desculpável de ser devasso.  

Foi a trêmula Tomásia à sala, onde o abade passeava com estrondosos passos  e rijas pontuadas da bengala no tabuado.  

— Viva,  Sra.  Tomásia  —  disse  ele quando  a  viu erguer o reposteiro  de  baeta escarlate com armas.

— Sr. Abade... — murmurou ela. — Passou bem?  

— Graças a Deus, bem; e como está a menina?

— Muito agradecida...

— Com licença — e sentou-se. — Faz favor de sentar-se, que temos que  conversar.

Por aqui não está nenhuma curiosa que nos escute? Veja lá. .

— Esteja  a  vossa  Senhoria  descansado que não está  ninguém.  —  E foi  fechar a porta por onde entrara, recomendando para dentro que a chamassem  se o menino chorasse.

Esta recomendação  sem rebuço  escandalizou algum tanto o padre,  severizando-lhe o aspeito.  

— Ora, senhora — disse ele — Já que falou no menino, comecemos por  aí. O Sr. Vasco Pereira não pode reconhecê-lo no ato do batismo, isto é, não  quer, porque, reconhecendo-o, prepara complicações e dificuldades aos filhos  legítimos, se os tiver. E é natural que os tenha, porque o Sr. Vasco é rapaz, é  rico, é fidalgo, e, mais hoje mais amanhã, casa.  

Rosou-se ligeiramente o rosto de Tomásia,  e sentiu uma  forte e súbita  opressão no respirar.

O  abade,  que por  falta  de  vista  não  dera  tino da  comoção,  agourou  favoravelmente da apatia de Tomásia e prosseguiu:  

— Devo ser franco, senhora; com meias palavras não fazemos nada: o Sr.  Vasco vai casar com uma a sua prima, filha do Sr. Conde de Cabril.  

Tomásia ergueu-se soberanamente, admiravelmente, e disse:

— Não tem mais nada que me dizer? Dê-me licença, e queira esperar um  pouco, enquanto eu vou buscar as chaves das gavetas do Sr. Vasco para lhas  entregar.

— A mim?  

— Pois a quem? Eu vou sair desta casa com o meu filho. O Sr. Abade vem  despedir-me, e por tanto há de ser testemunha de que eu saio desta casa como  entrei...

— Eu não venho despedi-la, senhora!  —  Volveu ele,  sentindo-se  apoucado diante daquele gentil e arrogante desprendimento. Faz favor de me  ouvir. Sente-se.. 

Tomásia  sentou-se,  com os olhos  entumecidos  de borbotões  de lágrimas,  represadas pela força da vontade.

— O Sr. Vasco Pereira — continuou, pausando as palavras que proferia e  acentuava com inflexões mais respeitosas — quer que a senhora e o seu filho  tenham o necessário, e até mesmo o supérfluo à sua subsistência..   

— Isso temos nós, Sr. Abade — interrompeu ela. — Tenho a minha casa e  a minha botica.  

— Não obstante, o Sr. Vasco Pereira quer fazer à Sra. Tomazinha doação  do casal de Paços, que anda arrendado por dez carros de milho...  

Levantou-se ela de golpe outra vez e exclamou atropeladamente:  

— Não  dou direito  a vossa  Senhoria  nem  mesmo  ao Sr.  Vasco  a  ofenderem-me. Eu não me aluguei nem me vendi a esse senhor. Também não  entrei nesta casa como criada, e por isso não quero ordenado. Já lhe disse que  tenho com que viver sem esmolas; e, se precisasse delas, não as pediria ao Sr.  Vasco.  Enfim,  eu vou sair  imediatamente  daqui.  Se  a  vossa  Senhoria  quer  tomar conta dos objetos de valor que aí estão, receba as chaves; se não quer,  vou entregar tudo com testemunhas ao feitor.

— A menina destempera! — redarguiu o abade. — Ora venha cá, menina!  Que  necessidade temos  nós de levantar  aí por  essas aldeias uma  poeira  escandalosa que vai dar pasto aos dentes da calúnia? Lembre-se que tem um  filho e que esse menino pode ser que ainda venha a ser considerado pelo seu  pai.  Não rejeite a  doação,  porque o casal de Paços é um  bonito patrimônio  para o seu filho, se o quiser ordenar; e, quer ordene, quer não, é uma legitima  que o habilita a casar-se vantajosamente..  Pense, Sra. Tomásia, pense. . 

— Tenho pensado, Sr. Abade..  Tenho pensado..  Vou sair..  Que sou eu  aqui?... O meu Deus! Quem me diria há dois anos!..  Como eu vivi enganada. .  Que ingratidão.. 

Estas palavras balbuciadas entre soluços romperam a represa das lágrimas.  

Tomou-se  de uma  grande convulsão,  arquejando,  debatendo-se como em  ânsias de estrangulada. Rasgava o decote do vestido, expedia gritos histéricos e  resvalava  da  cadeira ao pavimento  quando o abade a  tomou nos  braços,  desmaiada,  álgida,  e a  recostou no espaldar de uma  poltrona.  Acudiu aos  brados uma criada com a criança no colo. Tomásia cravara os olhos pávidos  no  filho; mas parecia fitá-lo  com o íris imóvel como na amaurose.  A criada  chegava-lhe a criança ao rosto e com alto choro perguntava se a senhora tinha  morrido.

O  abade,  que  só  conhecia  os  ataques levemente nervosos de algumas  confessadas, estava assustado, confuso e compadecido.  

— Mal hajam os  vícios,  mal  hajam as paixões!  —  murmurava o egresso,  tomando-lhe  o pulso,  com o receio de ter sido o portador  da  morte àquela  pobre mulher que deixava orfanado um filho de quinze dias.  

A mulher do feitor, que tinha sido criada da fidalga, mãe de Vasco, senhora  histérica, disse que conhecia aquela doença que atacava a sua ama, quando se-- afligia  com o fidalgo  por causa  das fêmeas.  (Em Basto  —  permitam o  parênteses  —,  as mulheres  que motivam desmaios  nas damas  casadas    chamam-se fêmeas.  Parece que  a  intenção é  aviltá-las à  baixa  condição das  espécies em que há machos.) — Vamos levá-la para a cama — disse ela —; é  preciso desapertá-la  e pôr-lhe a  cabeça  bem alta.  Janelas  todas abertas,  e  vinagre na testa com água fria, e sinapismos bem fortes nos pés. Ajude-me a  levá-la, Sra. Rosa.

— E o menino? — disse a criada.

— Dê cá o menino — acudiu o abade.

— Vossa Senhoria não o deixe cair — recomendou a Rosa.

— Você é tola, mulher! Eu deixo lá cair este passarico!

E,  pegando nele  sem  jeito  nenhum, sentou-se,  enquanto as duas mulheres  conduziam a desfalecida.

— Que é  do meu pequerrucho?  —  dizia  o abade com a  criança  de  barriguinha ao ar nas palmas das mãos. O pequeno chorava franzindo a testa  em refegos  escarlates.  —  Que  queres tu,  o  meu chorincas? Parece  que tens  mau gênio?  Psiu,  psiu! Cala-te.  Quem tem  um  nené?  —  E cantava-lhe  um  improviso, que o pequenito parecia patear rabeando com pés e mãos. — Ora  esta! a minha missão acabou por ficar eu ama-seca do crianço do Sr. Vasco!  Psiu,  olha, engrimanço,  pataratinha! Oh,  oh, oh!  —  E acalentava-o, embalando-o nas mãos de cima para baixo, como quem padeja uma broa.  

A criada veio buscar o pequeno e disse alegremente que a senhora já falava e  perguntara logo pelo filho.  

— Pois leve-lhe, que já não é sem tempo. Apre! Estou a suar! E — ouviu?  — diga-lhe que eu quero ser o padrinho dele; e que brevemente cá volto.  

***

O  abade informou o fidalgo dos  sucessos ocorridos;  e,  depois, acrescentava  que no mesmo dia, ao anoitecer, recebera um molho de pequenas chaves de  gavetas  que  Tomásia  lhe remetera,  oferecendo-lhe  a  humilde  casa  onde  nascera e agradecendo-lhe o favor de lhe batizar o filho.  

Meu amigo [ajuntava o padre], a vossa Senhoria não conhecia com certeza os  elevados espíritos desta mulher. Este caso prova que as ações excelentes não  são  privilégio  das castas  fidalgas.  Vi  que ela  tinha  alma  de  mulher porque  chorou;  porém,  quando esmagava  o coração  debaixo dos pés  da  sua  dignidade, era sublime! E porque o era, Sr. Vasco, ouso dizer-lhe que a vossa  Excelência  foi cruel com esta  malhes e lá  pela  vida fora,  se não encontrar  outra semelhante. há de recordar-se desta com pesar.

Com que desplante os homens atiram aos  abismos da  irreparável  desgraça  umas  criaturas que levam consigo os  escondidos  tesouros  de felicidade que  lhes rejeitaram!

Quantos bens da vida íntima a vossa Excelência gozaria ligado honestamente  a esta mulher e a esta criancinha! Veja que nobre coração! O que ela queria era  que não a julgassem mulher vendida. O casal de Paços, que a vossa Excelência  lhe doava,  pareceu-lhe  uma  injúria  sobre a  ingratidão.  O  Sr.  Vasco.  Ou se  enganou com ela, ou me quis enganar a mim. Devia dizer-me que esta mulher  do povo tem brios que não são comuns; dissesse-mo, se o sabia, para eu me  esquivar a  mensagem  tão  alheia dos meus deveres de padre,  e até de amigo  que fui, e desejo continuar a ser, da vossa Excelência.

Mas, olhe,  senhor  o  meu,  se  o mundo lhe  não condena  esta  ruim ação, condeno-lha eu, que sou da religião de Jesus, que santificou Madalena. Escute  o que lhe diz o eco da divina justiça, que nos repercute na consciência. O que  eu lhe assevero é que a justiça está da parte desta infeliz mãe; e os que fazem  iniquidades não são decerto os bem-aventurados...  

Prosseguia neste estilo, algum tanto de sermonário, e concluía dizendo que ia  ser  padrinho  do menino:  porque o tivera  cinco  minutos nas  mãos;  e lhe  parecia que, se a mãe lho desse, o levaria consigo, aquecendo-o entre o seio e  a  batina, debaixo  da  qual só é  permitido  sentir pulsar no coração a  piedade  que Jesus Cristo sentira pelas criancinhas.

***

Esta cana  não comoveu profundamente Vasco Pereira.  Estranhou que o  abade de  Pedraça, nascido  numa  das mais  nobres  casas do Minho,  filho  de  capitão-mor  e  neto  de um  chanceler,  alvitrasse o casamento de um  Marramaque com a  filha  do farmacêutico  Macário!  Os tópicos  religiosos da  epistola  pareceram-lhe jesuíticos  e incompatíveis  com o espírito liberal do  egresso, que fora o primeiro a abandonar o Mosteiro de Tibães.  

Aborreceu-me a  hipocrisia  caturra  do seu velho mestre  de Filosofia  Moral,  que em assuntos de metafísica citava, sorrindo, uma frase de Protágoras: «A  respeito de deuses,  não sei se eles existem  nem  se  não  existem.»  Quanto  a  Tomásia, sinto dizer, em desonra do meu sexo, que o noivo de D. Leonor de  Mascarenhas  viu em  tudo aquilo  que maravilhara  o padre uma simples  reminiscência  de certa  Augusta  —  personagem de um  mau romance  que  então se lia,  chamado  Onde Está  a  Felicidade, e até lhe quis  parecer que o  abade de Pedraça  se  metera  nas romanescas veleidades de imitar  o outro  personagem piegas que lá  se chama  o poeta.  Com esta  interpretação das  agonias de Tomásia  e  das austeridades equivocas do  egresso,  Vasco  Pereira  ficou satisfeito.

Escreveu entretanto ao abade agradecendo-lhe os conselhos e admirando-lhe  o  sentimentalismo  —  isto com uns períodos  facetamente arredondados e  umas agudezas de  espírito fone  que deram em resultado passar a  carta  feita  pedaços das mãos do padre às asas do vento, Mas, como o fidalgo dizia vir na  próxima semana a Basto, e ir por Pedraça receber as chaves, deu-se pressa o  abade em avisá-lo que procurasse as chaves em casa do seu reitor. As graçolas  não redarguiu.  O  egresso, como era de nobilíssima  linhagem,  olhava  sem  preconceito para  fidalgos,  e no  de  Agilde não achava  ressalva  que  o estremasse do comum dos homens indignos da sua estima.

Do que ele curou foi de batizar o filho de Tomásia. Deu-lhe o seu nome, o  sobrenome do seu avô boticário e o apelido da sua avô materna. Chamou-se o  menino Álvaro Afonso da Granja.

A mãe assistiu à cerimônia, por instâncias do compadre, que a levou a casa em  companhia  da  sua  irmã,  madrinha  do menino. Dizia  esta  senhora  que,  enquanto se não demonstrasse que as mulheres seduziam os homens, havia de  ser indulgente com as  seduzidas.  Tinha  amado,  tinha chorado e encanecido  aos vinte e cinco anos. Cativou-se tanto da resignada paixão de Tomásia que a  visitava a miúdo e a levava consigo para Pedraça.  

*** 

O noivo queria as joias da mãe, queria vender a quinta de Lanhoso e os foros  de Felgueiras. Era forçoso ir.

Entrou por uma  noite feia  em Agilde. Recebeu do reitor as chaves das  cômodas e dos contadores. Encontrou o feitor no patamar da larga escadaria  com uma  lanterna de  luz mortiça; parecia  uni vulto  de granito a  iluminar  a porta  de  um  jazigo enorme.  Quando  entrou na  sala  de espera  sentiu-se  incomodamente impressionado. Por aquela vasta quadra zuniam nos forros as  correntes da ventania.

— Acendam velas!  —  exclamou ele  com desabrimento.  —  Que é  das  ciladas?

— A minha mulher está doente...

— E as outras?

— Quando a senhora se foi embora, elas foram também — respondeu o  feitor.

— Quem me há de servir?

— Se  a  vossa  Excelência  mandasse dizer que vinha,  eu teria  arranjado  criadas;  mas  só já  de noite o Sr.  Vigário  me mandou avisar.  Amanhã  se  arranjará tudo.

Passando de sala em sala, chegou à saleta do seu quarto de dormir. A entrada,  tropeçou num móvel.

— Que é isto? Alumie, António!  

Era  um  berço  de mogno,  suspenso em colunatas  com dossel  e  cortina  de  musselina.  Este berço  enviara-o ele de  Lisboa, logo que ali  chegara,  prometendo ser o  primeiro que embalasse  o seu filho.  Deteve-se dois  segundos a olhar para o berço.

Recordava-se;  mas não saberia  dizer o que recordava;  talvez estivesse  escutando o sibilar do vento, que parecia um concerto de gemidos.

Entrou no quarto, acendeu as velas dos castiçais e fechou a porta. Atirou-se  para  uma  das camas.  Sobre uma  banqueta  próxima do leito;  em que se  reclinara, estava papel, tinteiro e duas cartas abertas; uma era a última que ele  escrevera a  Tomásia; e a  outra  carta  inclusa  nas duas páginas era  a  primeira  que Vasco lhe escrevera, jurando-lhe por alma da sua mãe ser ela o primeiro, o  infinito amor  da  sua  vida.  Esteve alguns  minutos  como absorvido  na  contemplação da  luz  da  vela,  com as duas  cartas entre os  dedos.  Parecia  contrariado. Ergueu-se, fez um gesto de repugnância, sacudindo com a mão o  que quer que  era  que lhe  fazia pressão na  testa.  Abriu as  gavetas  de um  contador preto com lavores metálicos. Tirou um cofre de joias, cuja tampa de  prata  dourada  tinha  brasão esculpido.  No  côncavo dos  relevos  do escudo  estavam dois anéis de diamantes miúdos, que ele dera a Tomásia. Examinou-os um momento, abriu o cofre e juntou-os às outras joias, que não examinou.  Relançou os  olhos em redor.  Pendentes de cabides  de  pau estavam dois   vestidos de Tomásia. O seu guarda-roupa era modestíssimo. Como não pusera  pé fora daquela casa desde que entrara até que saíra para sempre, recusara-se a aceitar atavios inúteis. Levara consigo os vestidos que o ajudante da botica lhe  remetera quando o pai se retirou.

Perguntam-me se Vasco  Pereira Marramaque já enxugou três,  ou ao  menos  duas lágrimas?  

Quando chamou o escudeiro e lhe perguntou se estava pronta a ceia, tinha os  olhos  enxutos;  mas isto nada  prova  contra  as suas qualidades  sensitivas,  O  querer cear também não demonstra insensibilidade nem mingua de aflição. D.  Fernando,  duque de Bragança,  quando passou  do oratório para o cadafalso,  pediu figos e vinho.  Comer é  uma  brutalidade fisiológica  independente da  alma. Deixar-se morrer de fome para extinguir os elementos da dor moral é  hoje impossível. Só se morre de fome nas condições de Ugolino. A mitologia  tem  muitos casos  como o do marido de Andrómeda;  na  história  da  Roma  imperial há muitos como o de Diocleciano e de Júlia, mãe de Caracala, e na  história  lendária  alguns  como Gabriela  de  Vergy.  Ora  Vasco  era  o  nosso  contemporâneo.  Ceou,  dormiu, e ao outro dia  mandou avisar os  brasileiros,  com quem tratou os seus negócios, e, realizadas as vendas, foi para a cone.  

***

Nos salões do conde de Cabril pesava desde 1833 o  luto silencioso de uma  sociedade extinta. Os estofos de damasco tinham desbotado debaixo das lonas  apresilhadas de laços  escarlates;  o ouro  dos tremós João V tinha  a  cor  esmaiada  dos  velhos  altares.  O  conde fugia  daquelas salas onde  se  lhe  representavam  à  pugentíssima  saudade os  fantasmas de tantas mulheres  formosas que instantaneamente se sumiram na obscuridade e envelheceram na  pobreza;  de tantos homens ilustres  que,  num  lance de  desfortuna  política,  resvalaram  da  altura  de  sete séculos.  D.  Leonor  lembrava-se dever  ali,  na   cadeira  de um  trono móvel,  D. Miguel,  e de brincar entre  os braços das  sereníssimas infantas que a  beijavam.  Os filhos  do velho camarista de D.  Carlota Joaquina, mais idosos que a irmã, memoravam a ida de D. Miguel à sua cavalariça, e estar encostado ao ombro do conde a ver marcar a ferro na  anca um cavalo de Alter; lembravam-se também de ver jogar a barra com uma  alavanca em Salvaterra, segurar um touro pela cauda, etc., e cheios de saudade  do seu rei,  exclamavam: «Era  um  grande  pândego!» Contavam então as  brincadeiras prediletas daquele senhor, e lá vinha o caso da sua Alteza Real em  pequenino furar a barriga das galinhas com um saca-rolhas, fato restabelecido  e autorizado pelo Sr.  Dr. Bispo  António Aires  de Gouveia,  no seu livro  da  Reforma das Prisões.  

Destes casos  e tempos  felizes  parecia  estarem-se carpindo  na  vasta  sala,  eufonicamente chamada d'armas, os lugentes retratos, todos autênticos, como  o de  Leovigildo,  primeiro  rei  visigodo na Lusitânia.  Fitavam  os seus  olhos  pávidos nos  guadalmecins  esflorados e puídos,  onde a  espaços  se  viam os  heróis do assédio de Troia, Príamo e  Aquiles, e os mais, com os olhos furados  e as bocas rasgadas até às  orelhas  —  recreações infantis dos  meninos do  conde, quando se exercitavam no jogo da navalha.

Eis que,  um  dia,  abertas de  par em par todas as  janelas e  portas  do  vasto  palácio, o sol, o ar, a alegria, as decorações modernas, entraram naquelas salas,  com grande faina de estucadores, de estofadores e de marceneiros.  

Dir-se-ia que tinha chegado à Ajuda o Sr. D. Miguel I e que o conde de Cabril  levantara do cofre da Fazenda — que os liberais deixaram cheio, como era de  esperar — os primeiros cem contos por indemnizações, autorizando-se com  os ilustres exemplos dos seus primos Terceira e Saldanha.

A causa  dessa  transformação não  pertencia  ao número  das calamidades  sociais.  

Tudo aquilo era obra do amor conjugal e de doze contos de réis.  

Vasco Pereira  Marramaque estava  em Sintra  com  a  sua  esposa,  com  o seu  sogro e com os seus cunhados, enquanto se preparava o palácio de Andaluz  para os bailes de Inverno.   

SEGUNDA PARTE

As aparências, que de ixavam supor em Tomásia uma alma ou muito briosa ou  muito  despegada,  eram fingimentos  que secretamente  lhe custavam ásperas  pelejas.

Enquanto a saudade não cedesse ao ódio, qualquer ostentação de desprezo ou  de submissa conformidade devia ser-lhe uma frecha, tanto mais entranhada no  coração  quanto  a  ofendida  abafava  em si  o desafogo dos queixumes.  Nas  doenças de amor,  a  peçonha do ciúme supurando pelas palavras  desabridas  deixa muitas vezes a alma curada.

Tomásia velava as noites à beira do berço do filho. Aconchegava-se dele como  se a criança lhe fosse alivio e defesa de uns pavores que a estremeciam naquele  quarto  onde,  pela  última vez,  ouvira a  voz  aflita  do  pai que  a  chamava.  O  administrador da farmácia, que dormia por baixo, aplicava o ouvido e escutava  soluços. Erguia-se de pé sobre o leito e ajustava a orelha à parede, por onde se  lhe coavam os rumores do pavimento.  

Esta curiosidade tresnoitava Dionísio José Braga.  

Era  um  sujeito entre  trinta e trinta  e quatro anos.  Praticava  na  botica  do  hospital de  Braga  e tinha  o curso farmacêutico na  escola  do Polo.  Sabia  a preceito  a sua  arte  e  estava  inventando  pastilhas  para  moléstias incuráveis  quando foi  despedido  do Hospital  de  S. Marcos  por  ter  desencaminhado  a filha  da  enfermeira,  uma  rapariga de bons  costumes,  como  são todas as  raparigas antes de terem maus costumes. Foi ser ajudante de botica no Porto, em casa  do Januário  da  Rua  Chã,  que o  despediu porque ele  lhe  seduzia epistolarmente uma a sua comadre e comensal. Passou para casa do Eusébio da  Rua  de  Cedofeita,  donde saiu por  motivos igualmente eróticos.  Era  um  frágil; mas o seu vicio não procedia do despotismo do temperamento, nem da  materialidade irreligiosa.

Era, pelo contrário, muito espiritualista, constelava no azul as mulheres todas,  e  conversava-as  licita  e misteriosamente  com a  lua  cheia  por  medianeira. Construía uns ideais ratões, e tinha nas alamedas da Lapa e Fontainhas, por noite morta, umas aparições alvas como a Dama Branca, de Walter Scott. Até certa  altura,  este boticário,  posto que não  fosse bonito,  era  um  anjo;  mas decerto  ponto para  diante  degenerava  para  homem trivial.  Parece que as mulheres  dos  seus  amores  —  quase todas formadas  nas  indelicadezas da cozinha — faziam-lhe às asas de anjo o que faziam às asas dos patos; e ele aí ficava o homem de Platão, «um animal implume que ri».

Quanto a rir, nem sempre. Passou por desgostos sérios. As mulheres amadas e os  credores perseguiam-no. As farmácias  fechavam-se-lhe,  cortando-lhe  a carreira  da  ciência  e o êxito de várias pílulas inventadas.  A mão  gélida da pobreza amarrara-o ao caldo negro de Esparta, que chamam verde no Minho, em casa  do seu pai,  pequeno  lavrador  de  Vilar de Frades.  Aí mesmo,  era  sensível às noites perfumadas e serenas, ao murmúrio dos ribeiros e a todas as  provocações da rica natureza de Maio. Aquele amor panteísta envolvia toda a  criatura  de merinaque de molas de aço,  ou de saia  de estopa  com barra  escarlate.  As raparigas  da  sua  terra  consultavam-lhe  a  ciência  médica; e ele,  compondo-lhes o  estômago,  desarranjava-lhes  o  coração.  Estas  felicidades  pagam-se caras. Chegou a levar pancada. O Sr. Guerra Junqueiro deu cabo do  último D. João com  um  poema;  porem,  os  lavrador de Vilar de Frades  começaram a obra com estadulho na pessoa de Dionísio José Braga. Sistema  muito pior para os dom-joões.

Nesta  conjuntura,  propiciou-lhe  a  sorte a  botica de Macário  Afonso.  Foi de  ânimo feito a estrangular o ideal que lhe infernara a existência, enforcando-o na costela que levava fraturada.

Dois  anos  e meio  de  exemplar comportamento  asseveravam uma reforma  radical.

O arcanjo S. Miguel da balança não era mais sério que ele com as freguesas.  Dir-se-ia que Dionísio pisava no almofariz o grão da mostarda e as próprias  febras do coração.

Nem uma  chalaça, nem um  beliscão em polpa  de mulher!  Sentava-se  na  testada da botica num mocho, lendo e anotando a lápis a Farmacopeia Geral,  do IX.  Agostinho  Albano.  Se alguma rapariga  o saudava  passando,  ele  respondia  sem erguer  os  olhos  do  livro,  como  se  fosse  o beato Pacômio a  meditar os Santos Evangelhos. E nem por isso granjeara grandes simpatias no  sexo feminino: é porque tinha ares de neutro.  

— É um trombelas! — dizia a Rosa do Cruzeiro.  

— Não  olha  direito para  a  gente,  o casmurro!  —  invetivava  a  Josefa  da  Fonte.  

— Aqui há tempos, a Maria do Moleiro quis-lhe mostrar uma nascida que  tinha  num joelho,  e vai  ele disse-lhe:  «Menina,  vá  ao  cirurgião;  que eu  avio  remédios e não  vejo pernas.»  —  Credo!  O  homem é tolo!  Olha  a  santantoninho, que lhe não fosse  dar volta  o  estômago!  —  acudiu a  Rosa,  cruzando os  braços e  balançando os seios  sobre o largo  decote do colete  amarelo.  E  escarneciam-no com palavras desonestas e casquinadas de  riso  com lardo de equívocos torpes.

E como é o mundo, em cima e em baixo.

Vá de história. Havia  em Roma dois santuários consagrados ao Pudor. num  dava-se culto ao «pudor das senhoras» (pudicitia patricia); no outro ao «pudor  do  mulherio» (pudicitia  plebea).  Não sei  qual  dos dois  pudores  era  menos  envergonhado.

Hoje  é difícil  estremar duas coisas que não existem;  porquanto ponho  os  óculos, tomo  rapé e  leio em Ovidío, e  n'A Teogonia,  de Hesíodo,  que  a  Pudicícia, assim que viu lavrar  o cancro  da  corrupção no  seio do gênero   humano, fugiu para o Céu com a sua irmã a Justiça. Que fosse para o Céu,  duvido; não me parece que seja lá necessária; mas em Celorico de Basto é que  ela  realmente  não estava,  quando aquelas  raparigas,  a  meia  voz,  e com  estridentes gargalhadas, comentavam o pudor do boticário, respetivamente ao  joelho da Maria do Moleiro.

***

Oito dias estivera Tomásia na sua casa sem que Dionísio a visse.  

Mandou-o chamar  à  saleta  e agradeceu-lhe  a  probidade e  zelo  com  que  administrara  os seus  interesses.  Pediu-lhe  que a  desculpasse  de tão tarde  cumprir aquele dever e a não julgasse grosseira.

Respondeu ele com a voz trémula que muito se honrava em ter correspondido  à  confiança  que em si  depositara  o  finado Sr.  Macário;  que sentia  infinitamente os seus dissabores.. 

E engasgou-se.

Tomásia tinha-o encarado fita e penetrante como um tiro. A vaidade picou-se-lhe daquele ar de atrevida compaixão. O aspeto de Dionísio tinha uns tons de  ternura equivoca, nos olhos principalmente, onde se transverberava a doçura  de uma  alma  apaixonada. Esta  expressão  escandalizara  Tomásia,  por  duas   causas: primeira, ser olhada daquele feitio por um caixeiro de botica — ela que  embalava nos braços um filho de Vasco Marramaque e cerrava ao coração o  perpétuo luto do único  homem que  vingaria  perdê-la!  Por  isso,  o sensitivo  amador das famílias dos Januários e Eusébios ficou entalado quando Tomásia,  levantando o rosto,  avincou a  testa  e lhe arremessou de  flecha  os olhos  rutilantes.  

Aquela mulher era então mais linda que no tempo em que as graças lustram  mais no pudor que na plástica. Dois anos antes inspiraria Lamartine; dois anos depois teria o seu lugar de honra ou de desonra entre as mulheres refeitas e  perfeitas dos poemas de Alfred de Musset. O boticário estava na compreensão  das boas coisas e não  era hóspede  na  matéria sujeita.  Cinco anos de pousio  deram-lhe ao coração rebentos luxuriantes. O molosso da natureza sacudiu a  mordaça e deu aqueles grandes latidos interiores que se chamam a paixão.  

Tomásia evitava-o desde a primeira e curta conversação em que ele, aturdido  pela  arrogância  daquele olhar,  se  retirara  tartamudeando algumas  palavras  insignificantes;  Dionísio  José  Braga,  porém,  ia ofendido  no  sentimento  generoso e virgem que lhe entrara no peito à primeira vez que a vira. Pensara  em casar-se com ela, assentar de vez, e arranjar-se, dizia ele no lirismo das suas  meditações. Portanto  ela  possuía  a  botica  bem  afreguesada, posto  que as  drogas fossem revelhas e substitutas das que não havia;  possuía a  casa  e o  quintal,  casa  envidraçada, e  quintal curioso  com pomar,  parreiral,  hortas,  mirante com trepadeiras de maracujá,  bancos de cortiça  numa gruta  de  madressilva à maneira de cubata As arcas estavam cheias de bragal, peças de  linho e meadas antigas, tudo anterior à invasão dos romances naquele recinto  de ignorância  e  bom  senso.  Estas concomitâncias cooperavam talvez no  propósito honesto do farmacêutico; mas, descascada a ideia, lá está dentro a  cândida pevide como semente das ações nobres — a bonita ideia de casar-se e  reabilitar aquela menina.  

O  seu amor  medrou nas surdas raivas como as belas flores nos  resíduos  imundos.  

Tomásia, todavia, não o estremava do jornaleiro que granjeava o quintal. No  fim do mês, mandava-lhe entregar o seu ordenado e examinava a escrituração  singela das linhaças, dos citratos e das mostardas.

Dionísio denotava  profundas  alterações  orgânicas na  parcimónia  dos  alimentos.  O  seu jantar voltava  quase intato.  Dizia  a  criada  à  ama que «o  praticante estava escanifrado como um étego e não comia tanto como isto»; e,  dizendo,  mostrava  a  unha  gretada  das ulcerações  de  um panarício  erisipelatoso.  

Tomásia adivinhava-o, aborrecia-o e quase que o odiava. Algumas vezes por  entre as cortinas da janela, quando contemplava cheia de lágrimas os sítios do  quintal  mais  prediletos  de Vasco,  via  o boticário  reclinado  no escabelo  da  gruta,  com a  face na  palma  da  mão e os  olhos  na  vidraça  do  seu quarto.  Retraia-se como se ele a visse e dava um estalo tirado com a língua do céu da  boca — a trivial expressão com que se esconjura um estafador e se enxotam  os cães.

A criada velha, que conhecia o ânimo da senhora, e sagazmente penetrara na  causa do fastio de Dionísio, já quando o via no pomar, ia dizer à ama:  

— Lá está o estupor.  

Esta mesma criada foi inconscientemente a portadora de uma carta inclusa no  rol mensal das drogas entradas e saldas.   

— Que é isto?  —  exclamou Tomásia,  vendo  a  carta  fechada  com  três  obreiras  amarelas,  simbólicas de  desesperação.  —  Ele deu-lhe esta carta?!  E  você recebeu-a?...

— Ó menina, mal haja eu, se sabia que o diabo do homem...  

E justificou-se plenamente.  

Ao primeiro assomo de raiva, quis rasgar a carta; depois, resolveu devolver-lha  fechada e  despedi-lo;  mas  neste  conflito  entrou o abade de Pedraça, que  ia  convidar a comadre para assistir ao jantar de anos da sua irmã.

A mãe de  Álvaro,  enquanto  o  padrinho acariciava  o  pequeno,  referiu-lhe  o  caso. O padre sorriu-se, deu pouco peso à calamidade e aconselhou que, em  bons termos, devolvesse a carta fechada com as seguintes palavras escritas no  verso do sobrescrito:  

«Enquanto lhe servir  o emprego que honradamente  ocupa  na  minha casa,  peço-lhe que  me respeite.»  E,  motivando esta  conceituosa  e lacônica  intimação, o abade alegou que Dionísio era um ótimo farmacêutico, o único  que sabia  química  e botânica  naqueles sítios;  que muita  gente  o preferia  ao  medico Ferreira — hoje famoso clinico do Porto e então médico de partido  em Basto —, que as suas pastilhas das lombrigas estavam acreditadas em toda  a província e que tinha curado as alporcas a várias pessoas. Disse mais o abade  que sabia  que um  cirurgião da  Ponte  de Pé lhe oferecera  duzentos  mil-réis, cama, mesa e roupa lavada para lhe administrar a botica paterna, e além disso  o quinto nos  interesses,  e  metade nas invenções,  obrigando-se o  cirurgião  a  propagá-las. Posto isto, concluía que, se Dionísio, untado pelo desabrimento  de Tomásia, se despedisse, a botica se devia considerar perdida, por falta de  tão hábil farmacêutico.  

— Não me dá outras razões mais fortes, o meu compadre? — perguntou  Tomásia.  

— Ainda as quer mais fortes?..   

Ela então chamou a criada e disse:

— Entregue esta carta a esse homem e diga-lhe que eu o despeço.  

— Que faz, comadre! — atalhou o abade.

— Se eu não fizesse isto — respondeu ela moderadamente, sem atitudes  —, devia ter aceitado o casal de Paços que me dava o pai do meu filho.  

— Mas...  —  respondeu  o compadre  —  a  senhora  tem  a  certeza  de que  essa carta lhe faz alguma afronta?  

— Pois que é isto,  senão uma  afronta? À mulher,  na  minha  posição,  abandonada, com um filho, que dirá a carta de um homem?  

— Pode ser, e é talvez certo, que ele queira ser o seu marido...  

— Olha  o estupor!  —  interrompeu a  criada  com o mais desdenhoso  engulho.

O  abade,  surpreendido pela  exclamação, abriu uma  risada  inoportuna,  enquanto a criada continuava:  

— Que procure  forma  do seu pé!. .  Sempre é  muito  asno! Um rapaz  de  botica atrever-se..    
— Vá!  —  ordenou Tomásia  com intimativa;  e voltando-se para  o  compadre:  —  Não  lhe  dê preocupação a minha  sorte,  o meu  amigo;  mas  peço-lhe que tenha em vista o meu filho. Confesso-lhe que sou mais fraca do  que eu pensava.  Olhe...  Tenho chorado muito;  passo aqui noites tão cruéis,  tão  atormentadas,  que se  não fosse esta  criança...  eu  conheço  os  venenos..   tinha  descido à  botica,  e,  a  troco de  uma  agonia  de poucos  minutos,  descansaria desta horrível batalha com que não posso... Não posso mais... E o amor e o remorso a despedaçarem-me. Vejo o pai deste infeliz, vejo a sombra  do meu velho pai.. 

E, afogada pelos soluços, arquejava com o rosto apertado nas mãos.  

***

O abade previra com juízo.

Dionísio José  Braga,  recebido o recado  pela  criada,  que se  excedeu  —  por  estar  ofendida  na  insidiosa recovagem  da  carta  —,  enfardelou  a sua  roupa  num caixão de  lata e exigiu uma  declaração abonatória  da  sua  honradez.  Lavrou-a o abade e Tomásia assinou-a.

Depois,  o padre desceu à  botica  e disse ao farmacêutico,  por entre coisas  agradáveis,  que ele devera  ter respeitado o melindroso infortúnio de uma  senhora que inspirava mais compaixão que amor.  

E então Dionísio, numa explosão de raiva irônica, perguntou ao abade:  

— E que lhe inspira ela a vossa Senhoria?

— A mim? Amizade e respeito: o que pode inspirar para um sacerdote dos  meus anos.

— Conte-me  lérias,  Sr.  Abade  —  retorquiu o outro com  sarcástica  brutalidade.

O  padrinho de  Álvaro,  que tinha cinquenta  e sete anos  fortes  e sangue  turdetano nas veias, sentiu na espinha dorsal um formigueiro extraordinário, e  ainda olhou para a mão do almofariz; porém, sotopondo o brio do fidalgo à  paciência de padre cristão, disse-lhe com violenta brandura:  

— Vá com Deus; e... vá com Deus!  

Dionísio,  nos  lances  apertados  da  sua  vida  de amores perigosos,  só levou  pancada  quando não  pôde esquivar-se  pela  porta  da  prudência,  e até pela  janela, conforme a necessidade. O  rosto do clérigo e o trejeito diagonal dos  olhos ao almofariz tocaram-lhe na costela fraturada em Vilar de Frades; pelo  que, abafando as cóleras, prometeu esvurmá-las com ressalva das costelas sãs.  Nesse mesmo dia funcionou na farmácia da Ponte de Pé e divulgou que saíra  de Agilde em consequência dos ciúmes do abade de Pedraça. Os cavalheiros  da localidade, sequiosos de escândalos, propalaram a calúnia e confirmaram o  boato de que ele, o hipócrita, já havia mandado para o Brasil um filho, que lá  na Residência era conhecido pelo «Álvaro Enjeitado».

— Que eu conheço perfeitamente  —  disse um  cavalheiro do Arco.  —  Esse rapazola  esteve em Pedraça  no  ano passado,  e ouvi dizer  que casara  muito rico no Rio de Janeiro; mas lá diziam que o padre era padrinho.  

— E pai — confirmaram todos.  

E cada qual fez o seu relatório de devassidões de padres. Um dos relatores era  o já  celebrado poeta  de Refojos,  que,  na ausência  de Vasco Pereira,  pudera  repatriar-se e reassumir as funções de Juvenal em Cabeceiras. Ele esfregava as  mãos,  arregaçava  um  sorriso  cheio de ameaças  e dentes cariados  e dizia,  trincando o charuto, que ia escrever uni romance fulminante contra os padres. Foi muito aplaudido e arranjou logo cinquenta assinaturas. Tecendo o enredo,  explicou que o ex-frade de Pedraça seria protagonista e Tomásia a heroína.  

Se os  padres  escrevessem romances contra  os  novelistas,  quantas obras de  execução prima  e  de  primeira  verdade nos  não dariam!  Faça-se  o clero  romancista e descreva os padres levados à desmoralização pelo exemplo das  altas capacidades  seculares que  os arguem  de  ignorância. Quando  vierem a  medir-se nesse torneio de  armas iguais,  então  saberemos  quantos  devassos  verosímeis  e não tonsurados  correspondem  para  um  PADRE AMARO  que  prende o filho para uma pedra e o afoga com as suas mãos. Enquanto, porém,  o romance urdir crimes  descomunais,  sendo tantíssimos os  vulgares,  não se  receia que a literatura amena faça grandes males.  

*** 

Tomásia  fechou a  farmácia,  enquanto  o abade contratava  no Porto quem a  dirigisse, O boticário que veio não tinha mais habilitações que o comum dos  praticantes  analfabetos.  A farmácia  administrada  por  Dionísio era  nova,  fornecera-se de remédios  franceses,  tinha  fundas  de camurça,  seringas de  bomba  e frascos variegados  na  vitrina  de pau-óleo.  Os facultativos recomendavam-na. A botica de Agilde restavam só os fregueses da mostarda,  das malvas e da flor de sabugueiro.

O  praticante era  imberbe e lorpa; e,  como tinha  tempo, fazia  gaiolas para  grilos,  e  também fazia  ratoeiras, por  não saber fazer colheres.  A  receita  não  dava para o ordenado do caixeiro...

Aconselhou  o abade à  comadre que trespassasse a  botica, alugasse  a  casa  e  fosse  para  Pedraça.  Anunciou-se  o negócio  nas gazetas do  Porto.  Dionísio  dava gargalhadas na farmácia da Ponte de Pé, quando leu o anúncio, e disse  que não queria  a  botica  pelo  carreto,  asseverando  que as  drogas  eram  anteriores à invasão dos Franceses. Não mentiria muito.  

O abade já sabia que o caluniavam e difamavam a pobre mulher à conta dele.  

Queria  socorrê-la,  mas com delicadeza  e cautela.  Não sabia,  porém,  como  tirar-se desta dificuldade.  

Um dia,  Tomásia  resolveu-se:  foi  à  Vila  do Arco,  onde  tinha um  parente.  Alugou uma casinha e anunciou-se mestra de meninas. Quando o compadre o  soube, já ela estava instalada e exercia o professorado com seis educandas. O   abade, com os olhos úmidos de lágrimas, disse-lhe que ela era uma alma rara  e que tinha  virtudes  tamanhas  que  até  a sua  fragilidade parecia  um  ato  meritório, porque da queda procediam tão nobres procedimentos. O que ele  fez, melhorando-lhe a vida, foi conseguir-lhe a nomeação de mestra régia.  

Tinha  muitas prendas de bastidor a  filha  de Macário,  escrevia  bem e  ortograficamente,  aprendera  história nos  compêndios  de  Vasco e  nos  romances. Deu-se zelosamente ao magistério, e chegou a tocar o sumo bem  de uma  vida conformada e  serena. As  famílias do Arco  estimavam-na,  recebiam-na e presenteavam-na liberalmente.

A mancha estava delida. Álvaro, o pequenino anjo, parecia pedir indulgência  para  a  mãe.  A calúnia  de Dionísio sumiu-se  na  obscuridade das grandes  infâmias. A miúdo, o abade e a irmã visitavam a comadre e a levavam consigo  nas férias para Pedraça.

***

Neste tempo, Vasco Pereira Marramaque visitou com a esposa as quintas do  Minho. Traziam consigo a  primeira  filha  de  poucos  meses.  O  fidalgo soube  em Agilde que Tomásia fechara a botica e, obrigada pela necessidade, abrira  escola no Arco. Teve pena e más recordações. Lembrou-se da inocente alegria  daquela  rapariga;  do  bom  Macário Afonso,  que o recebia  na  sua  casa  e  consentia que a filha lhe desse às mais raras flores; da docilidade e abnegação  com que ela o amara; do júbilo com que lhe falava do filho; a morte do velho  longe da  filha  e  do seu leito,  desterrado  voluntariamente;  o desinteresse  da  mulher sem  reputação nem bens de fortuna; enfim,  estas imaginações  ali,  naquela casa, onde Tomásia estivera, não lhe seriam muito aflitivas, mas eram  incômodas. E, conquanto estivessem cortadas as relações com o abade, não se  dedignou de lhe  escrever,  pedindo-lhe  que  convencesse  Tomásia  a  receber  uma  mesada  bastante  à sua  independência.  E,  feito  isto,  ficou contente  consigo,  como  quem  diz:  «Sempre sou um Marramaque!  Dou-lhe alguns  pintos que me não fazem falta, e honro o meu nome.» O ser fidalgo tem Isto  de bom: quando a consciência não obriga, obriga o apelido. Pior é quando não  há apelido nem consciência.

O  abade respondeu  com três palavras:  «Tomásia  está  independente.»  Casualmente encontrou Vasco  o primo  Abreu de S. Gens.  Falou-se  de  mulheres conquistadas na mocidade de ambos.

— E a boticária? — perguntou o bacharel de Refojos. — Já sabes que está  abadessa?  

— Abadessa!  

— Sim; passou da  botica  para  a  igreja,  mas em melhores condições que  muitas, que vão da botica para a cova.

— Não te entendo — respondeu o de Agilde.  

— «Monsieur,  ce  n'est pas ma faute»,  dizia o Boileau a  quem o não  percebia. Então não sabes que a Tomásia é mestra de meninas e é menina do  abade de Pedraça?

— Isso é calúnia! — acudiu Vasco.  

— Olha  o  vaidoso!...  Repugna-te  querer  que na herança  de uma  mulher  educada  pelo teu amor  gentilíssimo sucedesse o velho  frade  de Tibães!...  Pergunta por essa história ao boticário da Ponte de Pé...

E contou-lhe o que sabia, convencendo-o. Vasco riu-se muito, daquele rir que  está todo no maquinismo dos queixos e da laringe. Lá por dentro mordia-o o  despeito de ver que um homem de cãs e barriga proeminente vingara estancar  as lágrimas de Tomásia, que não podia consolar-se do apartamento de Vasco.  

— Fortes asnos somos nós,  afinal!  —  dizia ele ao  primo  Abreu.  —  A gente a  pensar  que  tem grande responsabilidade porque faz voar estas  andorinhas de um telhado para o outro!. .

— Ainda aí estás!...  Eu  é que me considero  sempre o seduzido e me  lastimo  sinceramente  porque ando a  fazer saltar da  cama  as lebres  que os  outros abocam.

E, discorrendo largamente neste estilo metaforicamente venatório, concluíram  que Tomásia, em remate de cantiga, era a filha do boticário pur sang.   

***

A mestra  régia  ensinava  o filho;  e,  à  custa do esforço  que faz prodígios,  aprendeu  quanto ignorava  e Álvaro devia  saber.  Quanto à  carreira  do  educando, estava destinada.

O padrinho deliberou enviá-lo para um afilhado que tinha rico no Brasil.

— Foi um  enjeitado  —  contou  o abade  —  que aqui me trouxe  Maria  Moisés para  eu  batizar.  Com aquela  lábia  que ela  tem,  foi-mo metendo em  casa, e cá ficou o rapazinho. Foi à escola, tinha muita habilidade, e queria ser  doutor, o meu enjeitado.

Mandei-o para o Rio. O rapaz saiu tão honrado, que parecia querer começar  em si briosamente a sua geração, visto que não tinha antepassados. O patrão  deu-lhe a filha e grande dote. Infelizmente, morreu-lhe a esposa e um filho.  Está rico, mas vive triste.

Queria  que eu fosse para  o Rio,  e eu quero  que ele venha para  a minha  companhia. A isto responde que tem medo à ociosidade; que precisa trabalhar  e fatigar-se  para  dormir  e esquecer-se.  O  meu Álvaro  irá  para  o outro que também é Álvaro; eu direi a ambos que se amem como irmãos.

Tomásia escutava-o lagrimosa; mas não contrariava o alvitre do abade. Álvaro era  pobre.  A casa  de  Agilde nem inquilino tinha.  A  botica  era um  foco  de  cheiros maus e aziumados a vaporarem dos velhos frascos de louça amarela  desvidrada.  Nos  gavetões  medicavam-se  impunemente os  ratos roendo as  ervas e olhando com o maior cinismo para o frasco do arsénico. O arcanjo S.  Miguel, com as cores perdidas, envolvia-se em filigranas da teia de uma aranha  de barriga preta, que prendia uma das orlas da telilha nas pontas do Diabo e a  outra  no capacete do anjo.  Nos pratos  da  balança  tinham-se  passado  fenômenos execráveis. As aranhas fêmeas, depois de acariciadas, comiam ali  os maridos, consoante o seu mau costume: viam-se nas conchas de latão os  restos mortais  dos aranhões.  A botica  esquecera,  exceto  aos  garotos que  enfiavam calhaus por uma fresta, e regalavam-se de ouvir lá dentro o tinir das  pedras no bojo das garrafas.

Portanto, o filho de Vasco Pereira Marramaque era um menino pobríssimo,  que o  amor maternal  não devia  esquivar ao trabalho e ao destino que o  padrinho lhe talhara.

Aos doze anos, o pequeno abraçava-se na mãe e pedia-lhe que não o deixasse  ir para o Brasil. Dizia ele que ia morrer, porque era muito fraco. Na verdade,  aquela criança bebera no leite da mãe as lágrimas que ela represara. Crescera  tolhiço, magrinho e pálido, como os filhos das casas opulentas e velhas raças.  Fatigavam-no os estudos, tinha escuridões súbitas de entendimento, e caia em  sonolentas abstrações. Dizia então a mãe ao compadre:

— Este menino vai morrer.

O abade não fazia cabedal destas profecias, mas profetizava também:  

— Álvaro, dentro em poucos anos, virá rico para a Pátria.  

— Rico!  Para  quê?..   Trouxesse ele o bastante para  a sua  subsistência. .  Com tão pouco se vive! E se lhe déssemos um ofício?  

— Sapateiro? É natural que fosse o primeiro na geração dos Marramaques,  posto  que dizia  o meu avô  que conhecera  a  trisavó deste senhor de Agilde  palmilhando chinelas  em Lanhoso.  Ainda  assim,  não se  renove a  vergôntea  dos sapateiros  neste  ilustríssimo  tronco.  Bem bastam os  que  hão de  vir  quando os vínculos forem abolidos...

O abade de Pedraça, sobre ser genealógico de farpada língua, era  discursivo  em  coisas sociais  quando a  comadre se  mostrava  complacente  em ouvi-lo;  mas, neste caso, a sua manha era distraí-la das lástimas e ir contemporizando  com o amor de mãe.

Escrevera  ele ao afilhado do Rio prevenindo-o de que estava  educando um  outro  Álvaro para  lho entregar,  e contava-lhe sentimentalmente a  história  desta criança sem pai. O brasileiro não respondeu; veio pessoalmente buscar o seu prometido filho. «Sê tu pai dele», dissera-lhe o padrinho.

Tomásia ganhou ânimo quando viu o protetor do seu Álvaro. Era um homem  de  vinte e  seis  anos,  com o rosto carregado das sombras de uma  tristeza  maviosa, dulcificando as palavras amargas com o sorriso da resignação.  

— Sou muito  doente  —  dizia  ele  —,  mas,  se  eu morrer,  o seu filho,  a minha senhora, voltará para a sua mãe com bastantes recursos. Pode confiar-mo; amá-lo-emos todos três.  

Imagine que eu, magoado com a abnegação do meu padrinho — que nunca  me permitiu dar-lhe meio por  mil dos meu haveres  —  quero vingar-me em  beneficiar este o seu afilhado. Eu tenho no coração muito amor sem destino.  Não amei pai nem mãe. Tive esposa e filho. Todo o amor que lhes consagrei  está para  ser dado  para  um  ente que não  seja  esposa  ou filho,  porque essa  felicidade não se repete.

***

Álvaro Afonso da Granja saiu do Arco para o Rio de Janeiro em 1863. Ia nos  doze anos.  

O  brasileiro  tinha propensões  desacostumadas nos homens  grávidos e  pesados de dinheiro. Procurava atar os elos da realidade às comoções da vida  idealizada  nas  novelas.  Em Lisboa,  quis  ir ao Parlamento para  ver  o  recentíssimo visconde  de Agilde,  o pai  do seu pupilo.  Entrou na  galeria  do  povo com o menino. Perguntou para um vizinho:  

— Faz favor de me dizer qual destes deputados é o visconde de Agilde?  

— É aquela besta que acolá está falando com outra besta...  

E citou o nome da outra, que eu delicadamente não repito, se bem que não  receio que ela me leia.

Álvaro não  tinha de  memória  a  classificação zoológica  daquelas espécies  parlamentares. Veio, porém, a saber que o visconde de Agilde era um sujeito  de bigode encerado, luneta de um vidro, calvo, de feições duras, trigueiras e  descarnadas.  

— Ele pediu a  palavra  —  notou o informador,  e continuou:  —Quanto  quer o senhor apostar que o visconde diz três asneiras em duas palavras?  

— Não aposto, porque já ouvi dizer quatro — respondeu Álvaro.  

— Então o senhor, por mais que me digam, é do Porto, e conversa com os  janotas do Suíço? Espere, lá vai o javardo grunhir.  

O visconde, desta feita, deixou desairado o crítico, que era da oposição. Ora  este critico era o poeta de Refojos, que conseguira ser correspondente político  de um jornal portuense.

O  visconde  pedia  estradas no  Minho. Disse com sofrível pronúncia  inglesa  que  Braga  era  um  dos nossos  rotten-boroughs  (burgos  pobres)  dos  quais  o  Governo  não  fazia  caso.  Disse  que Basto estava  encravado entre serras  intransitáveis. Perguntou ao presidente se estávamos na Idade Média.  

— Vê o asneirão? — observou o de Refojos. — Pergunta se estamos na  Idade Média.  

— Deixe ouvir, se faz favor.  

O orador observou que nas trevas da Idade Média o rico-homem dispensava  estradas, porque vivia circunscrito no seu solar torreado, sem fazer parte do  sistema arterioso da Nação.

— Que burro!  —  observou o correspondente do Nacional,  tomando  notas. — Que dois burros é aquele homem!  

O  discurso acabou de repente,  quando começava  a  ter graça.  O  orador,  perorando,  repetiu que o Minho sem  estradas  era  o melhor membro da  Nação, mas gangrenado, pútrido, paraplégico.

— Onde mora o visconde, sabe dizer-me? — perguntou Álvaro.  

— Em Andaluz, no palácio do conde de Cabril. O senhor é pretendente?

— Nada. Sou brasileiro.

— Ah!  Quis-mo parecer  no  sotaque.  Provavelmente  é do Minho,  e  quer  comprar ao visconde algumas das quintas que lhe restam... Se é isso, vá, que  eu sei que ele perdeu em casa do marquês de Nisa quinhentas libras a noite  passada. . Está ali, está sem nada.

Teve oito contos de renda há dez anos; hoje não tem três e tem seis filhos.  

No dia seguinte, os dois Álvaros passeavam no Largo de Andaluz; e, quando  viram sair de uma cocheira o cupé, que entrou no, vasto pórtico do conde de  Cabril, avizinharam-se do pátio.

O  filho, de  Tomásia era de todo estranho  às excentricidades  do  seu  amigo,  quando este lhe disse:

— Vais ver teu pai...

— O Sr. Vasco de Agilde? — perguntou o menino.

— Sim, o visconde...

— Ele não é visconde — emendou Álvaro.

— É visconde desde antes de ontem.

Entraram, quando o deputado reeleito descia a escada com um pretendente de  cada lado e dois no coice. Ele vinha coberto, com o paletó alvadio no braço e  um charuto apertado entre os quatro dentes incisivos. Parecia vesgo por causa   da  luneta  pênsil de  um  só  vidro sem aro  que v obrigava  a  convergir  estrabicamente o olho esquerdo.

Resmoneava uns monossílabos e dava aos ombros, escutando com fastio um  dos importunos.  

Quando viu o desconhecido ao lado da carruagem, perguntou, gesticulando de  modo que os pretendentes saíram:  

— Que pretende o senhor?

— Cumprimentar a vossa Excelência pela energia do discurso que ontem  tive a fortuna de escutar, pois que, tendo eu sido criado em Basto, muito me  congratulo com os meus conterrâneos tão distintamente representados.  

— Obrigado..  Faço o meu dever — respondeu o visconde com agraciado  aspeito.

— E ao mesmo tempo, Exmo. Senhor, na minha passagem para o Rio de  Janeiro, onde resido, tenho a honra de deixar o meu nome lembrado a vossa  Excelência, para  que,  se  um  dia  se abrirem estradas em Basto,  a  vossa  Excelência  me considere tributário  de doze  contos  de réis para  esse grande  impulso civilizador.

— Oh!  —  exclamou o  deputado.  —  E  muito louvável  patriotismo!  

Aperto-lhe  a  mão  de  patrício, e lamento que Portugal esteja  tão  escasso de  homens da sua têmpera. Donde é?  

— Fui criado em Pedraça, Sr. Visconde, sou afilhado do Sr. Frei Álvaro.  

— Ah!. . do abade... Como passa ele?  

— Robusto ainda  com  os seus  sessenta  e quatro.  Recordo-me de ver  a vossa Excelência, quando em menino estudava Lógica com o meu padrinho.  

— Sim?  

— Perfeitamente me recordo; e a vossa Excelência talvez se lembre de um  rapazito que lá chamavam o Enjeitado...

— Tenho uma ideia de um pequeno que subia às cerdeiras e nos deitava  cerejas...

— Era eu.  

— O  senhor?...  Então  enriqueceu? Muito folgo..   E este menino é  o seu  filho?

— Não, senhor — respondeu Álvaro a meia voz. — Este menino é filho  da vossa Excelência.

O visconde fez dois gestos indecisos entre a surpresa desagradável e o receio  de que os lacaios escutassem.  

— Vai comigo para o Rio — prosseguiu o brasileiro — e, como a morte  por lá é mais frequente, não quis eu que ele, tendo de morrer na flor dos anos,  fosse  deste mundo sem  conhecer  o seu pai.  Eu aprecio muito este lance,  porque fui enjeitado.

O menino fitava como assustado o rosto do visconde, que também o encarava  atentamente.  

Neste ponto, vinha descendo a viscondessa com três meninas, clamando com  vozes argentinas que retiniam na amplidão do pátio:  

— Ainda aí estás, Vasco? Leva-nos contigo até ao Chiado.  

— Sim, filha  —  disse o marido;  e,  voltando-se para  o brasileiro:  —  Procure-me em ocasião mais oportuna.  

— Sr.  Visconde,  recebo  as suas ordens  agora  —  disse Álvaro,  recuando  com o menino pela mão. — Amanhã salmos no paquete, e não há razão para  que torne, visto  que o meu intento era simplesmente  cumprimentar  a vossa  Excelência.

A viscondessa estava já ao lado do marido, olhando para o pequeno, quando  Álvaro se despediu cortejando-a.

— Quem é? — perguntou ela.  

— Um brasileiro de Basto.  

— O pequeno é galante. Parece-se com o nosso Heitor. Não achas?   

— Não reparei.  

Daí a minutos, dizia-lhe Leonor:  

— Vais tão calado e triste! Que tens tu, Vasco?  

— Que hei de eu ter, filha?... É o demónio da política...  

— Estavas tio alegre ao almoço... Ah!, uma coisa. . Dá-se baile nos anos da  Piedade?

— Responderei à tarde. Ainda não sei se o Banco de Portugal me reforma  a letra dos cinco contos. .

— Mas eu já escolhi o meu vestido e os das pequenas.  

— Se escolheste os vestidos, nem por isso é obrigatório o baile.  

— Sim... — redarguiu a viscondessa com disfarçado despeito. — Em todo  o caso, não digo  nada, por  enquanto, à prima Penafiel,  nem à  prima Ponte,  que mandaram saber...

— Sim, não digas nada.

— Mas é esquisito...

— O que é esquisito, Leonor?

— Que se falasse nisto na soirée do primo Caraira. .

— Quem falou não fui eu.

— Consultei-te primeiro.

— Em suma, Leonor — concluiu o visconde com desabrimento —, pela  vigésima vez te anuncio que estou mal de fortuna, que, em vendendo cinco  quintas que me restam, a casa do teu pai volte à miséria antiga.  

— À miséria!  Essa  é boa!  Eu nunca  soube  o que era  miséria. .  Que  delicadeza tão provinciana!... Pára! — bradou ela ao trintanário, à entrada da  Rua do Ouro, e saltou do cupé com as filhas.  

A mais velha, Maria da Piedade, perguntava baixinho à mãe:  

— Ó mamã, o papá disse que nós estávamos na miséria?  

— Não, tola.

***

Quem vira Leonor de Mascarenhas, no solitário e caduco palácio de Andaluz,  dez anos antes, modesta, paciente, sem invejas, escusando-se com os achaques  do pai quando a convidavam para a sala ou para o camarote; disfarçando com  o amor filial a míngua do vestido, do chapéu e dos somenos atavios que as  filhas das criadas  do  seus  avós  esperdiçavam  —  quem prediria  então que  aquele  anjo meigo do lar,  assim que  respirasse  o  esbraseado  ambiente  das  salas, queimaria as asas, e em vez delas se faria uns voadouros de brilhantes  farrapos para esvoaçar-se ao ponto culminante da elegância, do fino gosto, da  bela extravagância, do renome de figurino?

Nos primeiros anos era o marido que a instigava, envaidecido da primazia que  os localistas lhe decretavam, especialmente o Agapito; depois eram as amigas  invejosas que a rivalizavam, apanhando de salto o segredo das modistas mais a  ponto informadas do último baile do Louvre; por fim, quando Vasco Pereira,  cheio  de  melindres, lhe  disse  a  medo  que  os  filhos eram  já muitos e os  rendimentos desfalcados com a  exorbitância  do luxo,  Leonor já  não podia  entregar-se  vencida  às suas competidoras e consentir  que a  modéstia  divulgasse  que  a  rainha  dos bailes abdicara  por  falta  de  quatrocentas  libras  anuais, em que o seu reino estava tributado no balcão da suserana Lavaillant.  No transcurso de dez anos, a grande casa dos Marramaques adelgaçara-se por  maneira que não rendia o lucro dos capitais levantados no Banco de Portugal  e no  Hipotecário.  Os  dois irmãos de Leonor exercitavam o comunismo em  família e o conde de Cabril presenteava o príncipe proscrito com os dinheiros  do genro,  consentindo  todavia  que no palácio  de Andaluz se  pensasse  liberrimamente em política. Os filhos  tresandavam a  cocheira  e república,  prometendo  esfaquearem os burgueses  com  veemência  tal de palavras  iracundas que pareciam os dois Gracos; o genro bamboava-se na redouça de  todas  as  seitas liberais à  espera  de  cair uma vez sobre a  pasta  da  Marinha;  quanto  ao conde,  a  Rússia  movia-se,  e  não  dizia mais  nada.  Estava  idiota e  fazia a corte às amas de leite dos netos.

O dinheiro de Vasco Pereira cicatrizara umas úlceras e fizera repercutir outras  piores.  Ele,  pela  sua  parte,  lançou-se no  jogo como  financeiro. Estreou-se  com felicidade  naquele  sistema  de suprimentos à  quebra  das rendas.  Teve  noites  cheias na  banca  do  conde de Farrobo, posto que lhe  repugnasse  concorrer àquela  tavolagem com  merceeiros e cómicos,  como se  no  estalão  das paixões infames não fossem iguais todos os homens. Depois, atraiçoado  pela fortuna, passou a emparceirar-se com o marques de Nisa, que esvaziava o  estanque das torrentes de ouro  que confluíram para  ele,  através  de  quatro  séculos,  desde Vasco  da  Gama,  e,  navegador  audaz do revolto  oceano dos  vícios,  afrontava  o cabo  da  desesperação como  o seu ínclito  avô o cabo da  Boa Esperança.

Releve-se o gongorismo para uma justa indignação!

***

O  visconde de  Agilde  não melhorou com o falecimento do  sogro em  1868,  nem  tom o estabelecimento dos cunhados em alquilarias e carros  de  transporte.  Naquele ano,  o Banco  Hipotecário  absorveu-lhe  três  quintas nas  margens do Tâmega e reduziu-o a pouco mais de um conto de renda. Agilde  era  já  propriedade de  um  brasileiro.  Ele  mesmo  gelou de espanto quando  assim, aos quarenta e quatro anos de idade, se viu desvalido com seis filhos,   com a importância política perdida, desacreditado em todos os grupos, porque  a nenhum era útil nem temível. Os seus constituintes provincianos preferiram-no — ah!, crê-lo-eis, Pisões? —, preferiram-no àquele Juvenal de Cabeceiras,  ao correspondente do Nacional, ao mordacíssimo informador de Álvaro, em  suma,  ao  versista  que  começara  a  popularidade de Vasco por aqueles  dois  versos:

Ó bardo de Celorico, Quem te deu tamanho bico?

A viscondessa, à volta dos quarenta anos, caiu em si e praticou o heroísmo de  vender  as suas  joias  para  pagar dividas ignoradas  do marido.  Dois filhos do  visconde, Heitor e Rui, eram guardas-marinhas, devassos e caloteiros; o mais  novo era pensionista no Colégio Militar. Havia três meninas: Maria da Piedade  era a primogénita e orçava por dezasseis anos, quando o visconde deliberou  transferir-se para uma quinta nos arrabaldes de Braga.  

E partiram.

D. Leonor de Mascarenhas estremeceu quando  por entre um  carvalhal sem  folha, numa tarde de vento glacial, em Novembro, viu a casa expiatória onde  ia  amarrá-la  a  corrente da  pobreza.  Era  uma renque de quinze  janelas de  sacada  com portadas  vermelhas,  peitoril de pau e caixilhos  de vidraças  empenados  pelo sol  e  podres da  chuva.  Por  sobre  o telhado erguia  as suas  ameias  escuras um  simulacro de torre de  menagem varada  por  duas janelas  sem portas, mas tapadas por dois molhos de palha pança, que, vistos de longe,  pareciam homens de borco a precipitarem-se da torre.

Estava aberto um postigo do portão de carvalho; o vento sacudia-o contra o  batente  e  fazia  uma  compassada  e aspérrima toada  de matraca.  No grande  terreiro interior  corriam  espirrando duas cabras espavoridas  e estacavam às  vezes voltando de esconso para  os  desconhecidos  adventícios as narinas  fumegantes.  Por  uma  cancela  tosca  de  passagem  para  a  quinta entrava  o  caseiro carregado de erva; e, vendo os patrões, atirou o molho sobre um carro  com o cabeçalho ao alto, desbarretou-se, coçou-se e disse:  

— Isto por aqui é novidade!

O visconde, para não desdizer da desordem dos seus hábitos, nem avisou o  caseiro, nem perguntou se a casa da quinta ainda estava de pé.

Entraram na sala de espera. E como quem entrava na casa da neve das Rodas  do  Marão.  O  coração  tremia  de frio.  As três  meninas olhavam  espavoridas  para a mãe, aconchegando os capuzes das capas ao rosto. O vento assobiava  mugidos nas  cavernas  dos  forros;  dois  enormes  ratos  atravessaram a  vasta  quadra,  velozes  e de  focinho  baixo,  como dois vadios  de boa  família  que  passaram a  noite em  orgia,  e foram surpreendidos  pelo  sol  alto.  Leonor  sentou-se num escano de espaldar brasonado e não pôde  ter as  lágrimas. O  marido,  esquivando-se àquele  espetáculo,  passou  para  o  interior da  casa,  ao  passo que o caseiro ia abrindo as janelas.

Pouco  depois,  chegaram alguns  carros  de baús e mobília, com criados,  que  ajuizavam assim dos domínios senhoriais do patrão:

— Que diabo de casa é esta? Aqui há lobos!  

O  escudeiro dizia que  não matara ninguém  para se sujeitar  a  tal degredo.  A  cozinheira, vendo a primeira sala, exclamou:

— O que não será a cozinha!

Esta crise foi-se modificando a pouco e pouco.  Parte da casa foi reparada e  confortavelmente  trastejada.  Uma  das salas tinha um  fogão antigo com  colunas de bronze, mandado vir de Itália por D. José de Meneses, arcebispo  de Braga.  A  viscondessa  e as filhas passaram ali  quatro meses  chorando  sempre as lágrimas azedas  que o fumo da  lenha lhes  estilava  dos  olhos. O  visconde  passava  os  dias na cama,  lendo  os  jornais da  oposição e fumando  charutos  de vintém com magnânima  coragem.  Seis  meses depois  embranquecera-lhe  o bigode,  refegaram-se-lhe  as pálpebras,  espamparam-se-lhe os músculos faciais.

Maria da Piedade era a sua filha adorada que o acariciava e de mãos postas lhe  pedia que tivesse paciência. Imaginando que o pai envelhecia e definhava na  soledade  do seu quarto,  pediu-lhe licença  para  lhe  comprar,  com  o produto  das suas poucas joias, um cavalo que o levasse a passeios. 

— De que me servem estas pulseiras e estes broches  que me deu a  madrinha Lavradio! — dizia ela. — Mande-os vender, o meu papá, e compre  um cavalo. Depois, se tornar a ser rico, dê-me outras joias, sim?

Ele estreitava-a febrilmente ao coração e murmurava:  

— Como eu vos desgracei, os meus queridos filhos!

Maria da Piedade ameigava-o com pueris carinhos e dizia-lhe:

— Não tenha pena de nós, que ainda podemos ser muito ricos.

— De quem esperas tu a riqueza?

— A riqueza é não precisar dela, o meu papá; não sei onde li isto...

***

No ano seguinte,  o visconde  de Agilde foi  a  Basto a  fim de demandar uns  foreiros remissos de Chaves e terras de Barroso. Raposa aos grilos.

Hospedou-se  na  vila  do Arco  e lembrou-se que devia  estar aí Tomásia,  a  mestra de meninas. Perguntou por ela ao seu procurador.  

— Há seis anos que essa pessoa saiu de cá — esclareceu o procurador. —  Não sei se a vossa Excelência sabe que ela mandou o filho para o Brasil. . 

— Sei.

— Levou-lho o Álvaro Enjeitado, um capitalista que...  

— Bem sei.

— Depois, quando o abade de Pedraça morreu, a Tomásia, que era para  ele como se fosse filha, apesar do que dizia o patife do boticário da Ponte de  Pé — que já o levou o Diabo com um tiro que lhe deu o irmão da Ruça de  Gandarela, uma linda rapariga que o malandro seduziu...  

Como lhe faltasse a respiração e a gramática, o procurador tomou fôlego, e,  começando oração nova, continuou:  

— A Tomásia caiu doente, esteve a tocarem tísica, veio cá o filho, levou-a consigo  para  o Brasil  e para  lá  foi,  vai em  seis  anos. Já  depois que lá  está,  mandou uma doação da casa de Agilde para uma criada velha e tem mandado  esmolas a várias pessoas. Ouço dizer que o filho também está rico como um  porco, porque é sécio do outro. É o que consta.

***

Temos que acrescentar a  estas informações  que Álvaro  Ribeiro,  sócio de Álvaro  Afonso da  Granja,  faleceu em 1869.  Um  dos seus  legatários e  testamenteiros foi o filho de Tomásia. Liquidada a parte do sócio, que avultou  a duzentos contos — cifra que ninguém hoje em dia reputa riqueza —, Álvaro  Afonso começou a sentir a infinita tristeza da doença que fere todas as fibras e  as vai matando uma para uma, minuto por minuto. Não tinha ainda vinte e  dois anos. A mie  perguntava  a  Deus se do fundo  do seu cálix  de expiação  havia de beber ainda a última lágrima do filho moribundo.

A medicina  mandou o enfermo a  ares  pátrios.  Era uma  esperança,  que  se  afigurou à pobre mãe remédio seguro. Em Março de 1870 desembarcaram em  Lisboa. Era Primavera, não a dos poetas, mas a Primavera em Portugal, fria e  nublosa. Álvaro Afonso tiritava e aquecia o rosto com as palmas ardentes das  mãos.

Alugou e mobilou casa em Lisboa. Tomásia não mostrava desejo de voltar ao  Minho. Passeavam em carruagem.  A mãe  gostava  do arvoredo  do Campo  Grande.

Lembrava-lhe Agilde,  os  castanheiros seculares da  quinta  de  Vasco,  as  avenidas fechadas de álamos. Também o via a ele, no rosto do filho, quanto  pode  semelhar-se um  rapaz  alegre e saudável a  outro de olhos mortiços  orlados  de  manchas azuis  que davam  relevo aos  ossos. E afastava-se  de  Álvaro, a fim de embeber as lágrimas.

Um dia desceram a pé a Travessa dos Carros. Álvaro, no Largo de Andaluz,  parou em frente de um palácio. Reconhecera o pátio da casa em que vira o   pai.  Lá estava  um  cupé à porta, domo onze anos antes.  Estremeceu.  Ia ver,  segunda vez, o pai. Passados minutos, viu entrar no trem um homem baixo,  sobre o redondo, com óculos  de  ouro e  duas grossas cadeias no  colete de  veludo azul-ferrete. A mãe sentara-se num banco assombrado por uma árvore  enfezada que a flora fantasiosa dos Lisboetas chama o Jardim de Andaluz.

«Não morará ele aqui já?», pensou Álvaro Afonso.  

O sujeito dos óculos disse ao cocheiro:

— Vamos em casa do Sr. Visconde de Gandarinha, hem? E passe você no  Chiado, onde comprei o guarda-lama e pede ele, hem?

Era língua de brasileiro, sem dúvida nenhuma.

Ficou à porta o guarda-portão em mangas de camisa e colete de listas amarelas  e escarlates. Álvaro perguntou-lhe:

— Quem mora nesta casa?

— E o Sr. Comendador Barcelos.

— É dele o palácio?

— É muito dele: comprou-o ao visconde.., visconde não sei de quê...

— De Agilde?

— Isso.

— Onde está esse visconde, sabe?

— O boleeiro que ali vai no nosso cupé foi dele. Acho que o visconde está  lá para o Minho. Esta casa foi-lhe penhorada e vendida em praça. Deu cabo  de três milhões, o tal banabóia.

— Obrigado  —  disse Álvaro.  Chamou a  sege e foi buscar a  mãe  pelo  braço.  

— Que estavas tu a conversar com aquele criado? Pareces-me mais pálido!  

— Não, a minha mãe; como me pareceu conhecer o homem que entrou  no cupé, fui perguntar-lhe quem era.

Até aos  dez anos,  Álvaro  lembrava-se  de  ter ouvido  a sua  mãe falar-lhe  de  Vasco, em conversação com o abade; mas nem no Brasil nem em Lisboa lhe  ouvira proferir tal nome, nem lhe ocasionava modo a que ele satisfizesse uma  dolorosa curiosidade.

Tomásia lia o Jornal do Comércio e sob a epígrafe «Má estrela» viu a notícia  da prisão de D. Telo Mascarenhas, por ter anavalhado um fadista na taberna  do Dafundo. O localista acrescentava:  

Há  fatalidades  inexplicáveis.  O  conde de Cabril,  egrégio fidalgo dos arraiais  legitimistas, teve três filhos. Um, D. Nuno, morreu há dois anos da marrada  de um  touro no  Cartaxo;  a  filha,  D. Leonor,  que reinou nos  salões  do seu  tempo, casou com um provinciano perdulário que esbanjou o seu e o alheio:  escusamos  nomeá-lo.  O  terceiro entrou hoje no  Limoeiro,  e  ali  esperará  monção  de passar  à  África  entre  matadores  da  sua  têmpera.  Os  avós  de D.  Telo também iam para a África, mas na qualidade de governadores, como D.  Fernão  de Mascarenhas em  1480,  D.  Jorge  Mascarenhas em  1562 e  D.  Fernando Mascarenhas em 1628.

Tomásia relia a notícia, com o rosto coberto de lágrimas.

— Que é, a minha mãe? — perguntou Álvaro, curvando-se sobre o ombro  dela.

— Aí tens, lê!..  Deus é severo com todos os culpados... Aí verás o que o  mundo pensa. . do teu pai.

E, levantando-se, foi a soluçar para o seu quarto.

Passados  instantes,  Álvaro entrou serenamente  na  alcova,  pôs a  mão  amoravelmente no ombro da mãe e disse-lhe:

— Se houvesse um meio delicado de eu socorrer... O meu pai!

Ela apertou-o ao seio, beijou-lhe com arrebatamento as faces e balbuciou:

— Abençoado sejas tu, o meu anjo, o meu adorado filho!... Vinga, vinga a  tua mãe.

***

Era Abril.

O  visconde  de Agilde assistia  aos trabalhos de jardinagem  da  sua  filha  Piedade. A viscondessa, sempre a tremer de frio com as mãos forradas num  regalo velho e esfumado, não sala do fogão. As outras meninas polcavam de  chinelos  numa  grande  sala,  cantarolando a  música,  muito  esbofadas  e  vermelhas. Paravam às vezes abraçadas e achavam-se ridículas.

O  visconde e a  filha  viram apear de um  garrano, ria  testada  do  portão,  um  sujeito mal entrajado.

— Quem é aquele homem? — perguntou Piedade.

O pai entalou a luneta no olho direito e disse:

— Algum foreiro dos executados que vem pedir espera, talvez.

Aproximava-se o adventício com o velho chapéu de feltro na mão.

— Jesus! — exclamou Piedade. — Que parecenças ele tem com o mano
Heitor!


— Quer alguma coisa? — perguntou Vasco Marramaque no tom usual e impertinente destes interrogatórios.

— Alguns minutos de atenção, se a vossa Excelência mos concede.

— É sobre negócios de foros?

— Não Sr. Visconde.

— Suba.  Ficas, Piedade?,  —  Fico,  papá  —  e não desfitava  os olhos do  rapaz que tinha o rosto e o timbre de voz do mano Heitor.

O  visconde  subiu as  escadas que levava  à  saia  de espera. Álvaro  seguia-o. Passou o fidalgo para uma segunda sala e, entrando primeiro, disse:

— Entre.

Quando entrou,  já  Piedade,  pé ante  pé,  atravessava  o salão  e cingia-se  escutando.

— Escutar!  Porquê?  —  pergunta  a  discreta  e positiva  leitora.  — Pressentimento misterioso?

— Não,  a  minha  senhora;  simplesmente curiosidade,  e curiosidade na aldeia que é capaz de nos fazer andar, para encher tempo, a escutar por portas  o que dizem os vizinhos.

Eis o que ela escutou:

— Devo dizer a vossa Excelência o meu nome: chamo-me Álvaro Afonso  da Granja; sou filho de Tomásia Afonso, de Agilde.  

O visconde não se descompôs, não esbugalhou os olhos, nem expeliu os ahs  aspirados dos grandes espantos.  

— Bem... — disse ele. — E um pequeno que foi para o Brasil. .

— Há  onze anos.  Tive  então  a  honra  de  ser  apresentado  a vossa  Excelência por Álvaro Ribeiro...

— Recordo-me.

— Fui infeliz. Uma doença pertinaz, resultante da constituição fraca, não  me  deixou trabalhar.  Voltei pobre e doentíssimo.  Disseram-me os  médicos  que talvez ares pátrios me restaurassem. Estou na Pátria, mas careço de meios  com que possa tratar-me.  

Venho, pois, pedir um favor a... O meu pai... Não sei se a vossa Excelência  consente que eu lhe dê este nome...  

— Não  nego que sou  o  seu pai  —  respondeu o visconde  com fina  e  plácida naturalidade. — Que posso eu fazer no seu beneficio?  

— Permitir-me que eu  convalesça  ou morra  na  sua  companhia  —  respondeu  Álvaro  sofreando o transporte de contentamento.  —  na  minha  companhia é impossível. Creio que sabe que sou casado e tenho filhos.  

— Sei.

— Nesta casa não há a felicidade que chamam fortuna, nem sequer a outra que  chamam paz.  Sou infeliz,  ter-lho-ão  dito;  infeliz em todos  os  sentidos. Desejo, porém, concorrer para o seu restabelecimento com os meios escassos  de que disponho. Está em Braga?

— No Bom Jesus.

— Em hospedaria?

— Sim, senhor.

— Lembro-me que no Hospital de S. Marcos há quartos particulares com  excelentes médicos e ótimo tratamento. Eu escrevo ao meu primo Magalhães,  que é o provedor da Misericórdia, e responsabilizo-me pelo pagamento.  

— Obrigado  a vossa  Excelência, mas não venço a  repugnância  que  me  fazem hospitais.  

— Pois então, conserve-se onde está — respondeu secamente o visconde.  

—  Em todo o  caso,  se  eu fizer pouco  no seu auxílio,  creia  que não posso  fazer mais.

Álvaro não sentia os raptos que nos dramas desenlaçam situações análogas. A  verdade é pouco dramática. Ele queria desfigurar-se subitamente, manifestar-se rico, sem frases arredondadas de antemão.  

Premeditara  o que quer que fosse na  hipótese de ser bem ou mal  recebido;  mas  o  gélido sossego  com que o pai lhe falava impunha-lhe moderação no  artificio dos arrebatamentos filiais. De mais a mais enganara-se, pensando que  o sangue dos filhos, na presença dos pais, golfava aquelas tempestades que os  dramaturgos levantam nas  cenas do reconhecimento.  Sentia-se  a  falar  com  aquele pai como com qualquer outro visconde. Se Álvaro fosse crendeiro até à  parvoíce, duvidaria se com efeito Vasco Pereira era o seu progenitor, visto que  a natureza não gritava.

O  visconde,  proferidas as  últimas palavras, dera  tento que era  escutado.  Suspeitou  da  viscondessa.  Ergueu-se de ímpeto  e foi  à  porta.  Viu Maria  da  Piedade.

— Escutei, escutei, papá; peço-lhe perdão — disse ela, entrando. — o meu  papá disse ainda agora que era infeliz em todos os sentidos. Não me queixo;  mas esqueceu-se de mim..  Já me tem dito que eu sou a sua consciência e a sua  vontade...  Pois  então,  se  eu  sou  a sua  vontade,  deixe ficar  o seu  filho  nesta  casa...

— É impossível. Não conheces o gênio da tua mãe?

— Não se diz à mãe quem este senhor é; diga-lhe que é filho de um o seu  caseiro da  quinta  de  Arnosa.  Conhece-se  que está muito  doente  —  dizia  Piedade olhando compadecidamente para o irmão. — Quando o mano Heitor  veio  do Cruzeiro,  vinha  assim.  Precisa  de ser tratado  com  desvelo.  Eu  encarrego-me disso, que sou sempre a enfermeira nesta casa.  

Estas palavras comoveram  Álvaro.  Sentia  agora  o  coração que estivera  atrofiado  face  a  face do pai.  Não  era  a  irmã:  era a  mulher formosa.  Nestes  conflitos  é que a  natureza  costuma  fazer prodígios.  Borbulharam-lhe  as  lágrimas, e disse balbuciando:

— A minha senhora, a sua compaixão e a compaixão da minha mãe ser-me-iam um divino amparo, se eu pudesse viver.  

— Tem mãe? — perguntou Maria da Piedade.

— Sim, tenho, a minha senhora.

— Ah!, tem?! — e olhou para o pai, como a interrogar-lhe mudamente o  coração. — E não pode estar com ela... porque são pobres?

Álvaro, abaixando os olhos, fez um gesto afirmativo.

— Deixe estar..  — disse ela —, tudo se há de remediar... Está no Senhor  do Monte, não está?

— Sim, a minha senhora.  

— Deixa-me lá ir amanhã, papá? É um passeio... Vou visitar o meu mano  Álvaro...

— E estendeu-lhe a mão, que ele levou aos lábios. — Tem febre!..  Que  mão tão quente!

Amanhã conversamos, sim?

— Mas que vais tu fazer ao Bom Jesus? — interveio o visconde. — Eu sei  o que é; mas podes cumprir o teu desejo sem lá ir.

— Posso; mas se o papá consente, quero lá ir...

— Vai.

— Que caminho segue a vossa Excelência? — perguntou Álvaro Afonso.

— Ora a vossa excelência? «Que caminho segue a mana Piedade?» é como  deve dizer. Vou daqui às primeiras capelas a cavalo na burrinha do caseiro; se  me parece, dou a volta a cavalo; senão, subo as escadas.

— Eu virei esperá-la às primeiras capelas — disse Álvaro.  

— Pois sim; mas veja lá que se não fatigue.

Ouviu-se então no interior da casa uma voz áspera, gritando:

— Não se almoça hoje nesta casa? Onde está metido o Sr. Visconde e a  Piedade?

— Lá vamos, mamã! — respondeu Maria.  

Álvaro, apertando a mão do pai, beijou-lha e disse-lhe:  

— O ouro já não pode dar a felicidade a vossa Excelência. Quem tem esta  filha perdeu o direito a esperar outra riqueza.

***

Quando Maria da Piedade avistou o pórtico do Santuário, viu parado um cupé  com dois  criados na almofada.  Perguntou ao  escudeiro se conhecia  aquele  trem.

— É de um brasileiro que está no Bom Jesus há oito dias. Ainda ontem à  tarde o vi neste carro na Senhora à Branca. Parece-se muito com o mano da vossa Excelência.

— Com o mano Heitor?!

— Sim,  a  minha senhora,  principalmente  quando veio de África, há  seis  anos.

Maria, insensivelmente, sofreou as rédeas do jumento, que dou se a olhar para  o escudeiro e a dizer pausadamente:

— Parece-se com o mano Heitor?

— E como um retrato. Há casos assim, a minha senhora.

Ia perturbada.

A pouca  distância  do cupé,  viu abrir-se  a  portinhola por  dentro e  descer  Álvaro.

Soltou uma exclamação e retraiu-se dos braços que lhe ofereciam amparo para  apear-se.

— Vejo  que  a  minha  irmã somente aceita  de  bom rosto a  mão dos seus  irmãos  pobremente vestidos!  —  dizia ele sorrindo.  —  Tem  a  bondade de  continuar o seu passeio na minha sege?

Piedade desceu, aceitou-lhe o braço e entrou na carruagem.  Na  perturbação  com  que entrara,  deixou cair no  tapete de zibelinas  um  lenço  branco que  continha cuidadosamente atado pelas pontas um voluminho pesado.  

Álvaro levantou-o,  e,  como ela  se  desse  pressa  no receber,  negou-se  a  entregar-lho.

— Que é isto? Saibamos, mana Piedade; o que aqui está parece-me que é a  prova real do seu sobrenome — é a piedade fraternal; é uma esmola que vai  aqui para um irmão doente e pobre, não é?.. 

— Eu pensei que... — balbuciou Maria.

— Pensou que já se não faziam romances, principalmente de homens ricos  a  fingirem-se pobres?  Tem razão,  mana  Piedade, eu sou um  desmentido a  todos os  costumes.  Agora,  dê-me licença  que eu examine todas estas coisas  que são as minhas — e desatava as pontas do lenço.

— Não veja — acudiu ela —, não, veja.., peço-lhe.. 

— Não verei, mas guardo-as: isto é o meu, Se tenho alguma riqueza que  me enche a alma, é isto. Olhe, Piedade, olhe para mim... Não lhe parece que  estou melhor? Veja o que é a felicidade! Não me dói o peito, não tenho febre,    e até sinto — desculpe-me a prosaica franqueza —, sinto vontade de jantar..   Tenho  saúde!  Quer que eu lhe diga  tudo  o que se  vai formando  na  minha  inteligência, na minha consciência e no meu coração?  

Entrei aqui há  oito  dias sem fé,  achava  tudo isto uma  irrisão da  desgraça.  Sinto-me  agora  religioso.  Preciso de  orar..   Hei  de  ir ajoelhar-me diante  da  imagem de Jesus Cristo, há de ir comigo, sim? Peço-lhe que me dê saúde, que  me deixe viver  para  poder  amá-la,  a  minha  querida  irmã;  peça-lho  a  chorar,  como eu estou chorando...

E,  soluçando,  abafava  o rosto  no  lenço  que continha  as joias  de Maria  da  Piedade.

Quando apearam no terraço do Hotel da Boa Vista, uma senhora gravemente  vestida de seda escura avizinhou-se da carruagem.  

— É a minha mãe — disse Álvaro; e, descendo, beijou-lhe a mão.

***

As lágrimas da fé, se Deus não existisse, fariam comover o Nada.  

Maria  da  Piedade e a  mãe  de Álvaro  choraram prostradas à  cruz de Jesus  Cristo.

Pediram a saúde do filho e do irmão, abraçadas aos pés do Redentor.  

Álvaro restabeleceu-se.

Foi a felicidade que o salvou? Foi aquele amor de irmão, amor indefinível e  santíssimo, que o distraiu da morte e o encheu das forças vitais que a ciência nega ao milagre e concede ao mistério?

Eu, espírito  apoucado,  tenho a  audácia  de  me erguer até Deus, e não faço  grande  conta  das ciências médicas quando me não dizem  porque processo  fisiológico se salvou o enfermo que elas me asseveraram moribundo.

Álvaro Afonso da Granja deu pelas joias de Maria da Piedade as quintas do  visconde de Agilde penhoradas pelo Banco Hipotecário. Piedade fez presente  das quintas ao seu pai, com a condição da deixar viver seis meses de cada ano  em Lisboa  com  o seu mano Álvaro.  Tomásia  chama-lhe  a sua  filha;  e D.  Leonor de Mascarenhas,  quando fala  de Álvaro,  chama-lhe o bastardo.  O  visconde de Agilde nunca mais viu a filha do boticário; mas, se um dia puder  furtar-se à vigilância da esposa, há de ir ajoelhar-se-lhe aos pés, a confessar a  saudade e aliviar o peso da vergonha e do remorso.

S. Miguel de Seide, 25 de Setembro de 1876.


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Nota:Camilo Castelo Branco "Novelas do Minho" (1875-1877) 

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