terça-feira, 17 de setembro de 2013

Almachio Diniz: "Neda"

NEDA
Manhãzinha.
A sala, de azuladas paredes seminuas, estava pobremente mobiliada: era no saguão da casa, e as duas mulheres entraram às tontas, até se abrirem de par em par as gelosias.
SAUL, de NEDA esposo, ficara a dormir na alcova.
E NEDDA, abismada com a indiferença dele que apenas lhe não dirigia um monossílabo desde a hora do fato, compreendeu logo que DONA LOURA, a sua mãe, era uma interprete das indisposições do genro...
Num canapé, as duas mulheres, DONA LOURA, arcaica nas suas vestias de capote e turbante, e NEDDA, deliciosamente matutina num roupão branco que descansava, sans-dessous, sobre a finíssima camiseta de cambraias,—sentaram-se, afundando em côncavos a palha flácida do cansado móvel...
—Esperava-te, mamã, qualquer das horas. Quando vejo Saul levando-me entre dentes e indisposto como um burguês dispéptico, silencioso como uma esfinge e entristecido como um beato sem almoço, adivinho logo que vens por aí como a mensageira da paz. E ele foi procurar-te ontem à tarde...
—Exatamente.
—Previ tudo isto. Ha cinco dias que nós não falamos, e, pensando-o na rua, ontem, vim ter aqui. Foi quando topei com ele, sentado naquela cadeira, lendo a Bíblia, ou folheando-a, apenas... Vendo-o, assustei-me e não contive um gritinho de susto. Mas tornei imediatamente sobre os meus passos. Ha quatro anos que somos casados e nunca passamos dois meses sem uma rusga. É sempre ele quem as promove com um ressaibo de mal-entendido ciúme. Aceito sempre o seu rompimento e nunca lhe dei a honra de capitular nas hostilidades. Quando elas são de nonada, aqui mesmo se resolvem; mas, quando avultam como agora, ele te vai buscar como intercessora. Já sei que vamos ter, como sempre, uma crise de amorosidades que me enfastiam. Lastimo é não conceber um filho desse homem para o embeiçar pela nova criatura e sentir-me menos jungida às suas intemperanças de... mal educado! Ás vezes, chego a ter nojo do senhor meu marido...
—Que blasfêmia, Neda! Dizes isto do teu esposo com um sangue frio que me pasma...
—Devias esperar isto. Casei-me contra a minha vontade ao depois de ter o assedio do seu amor por mais de cinco anos. Tudo inventei para que um tal matrimonio não se fizesse. Por ultimo espalhei, e fiz conhecer-se em casa, por torna-viagem, a mentira de que Saul é um tuberculoso. Tanto mais eu o aborrecia, quanto a senhora e o papá intervinham, patrocinando a causa do moço platônico. Dá-me, na verdade, um insistente desejo de rir muito quando lembro os idealismos dele, seguindo a minha sombra, porque nunca lhe deixei o direito de enfrentar-se comigo em parte alguma... Expus-lhe sempre que sonhos não me satisfaziam, nem eram para o meu temperamento homens vaporosos, poetas e doutores... Movi-lhe intensa guerra, apaixonando-me por Frederico Stöltze. Está! Com este provavelmente eu teria sido bem casada. O pobre «alemãozinho» levou o caso muito a serio e casou-se, logo que eu o abandonei, com uma defeituosa... Foi um despique, não ha a menor duvida, mas quem saiu perdendo foi ele. Saul é um temperamento de foca...
—Respeita o teu marido, minha filha!
—Pois não é, mamã?
—Essas coisas não se devem dizer...
—Não tratarei de ocultar o sol com a mão. Já disse e é mesmo: um temperamento de foca. Só quer hibernar sobre os livros, diante dos quais se abespinha como o animal sobre o gelo. Eu, porem, quero muito sol, muita luz, muito calor, muita atividade... Mamã, o que vocês velhos vêem no casamento é o interesse de colocar as filhas, porque ficando velhos receiam que nos tornemos muito sós no mundo. Por isso acontecem destas, casamo-nos com a vontade dos papás encarnada na figura de um homem que não é a correspondência de nosso instinto. Olha! Não intervirei nunca no casamento de ninguém: cada qual cometa a sua doidice como quiser, e, se escolher um lorpa como Saul, arrependa-se de si mesmo e não me culpe a mim.
—Tu vês no homem uma excitação, Neda, quando devias ver uma satisfação.
—Deixasses eu escolher como tivesse querido, e estarias livre hoje dessas trabalheiras de paz... Saul, antes de meu marido ser, sofreu toda a minha repulsa. Casada fui tolerante. Ele, no entanto, não sabe aproveitar-se de minha tolerância e quer subserviência, servidão, ou coisa semelhante... Está enganado! Devias ter sancionado a minha repulsa logo de principio. Lembras-te do convescote dado aos chilenos, nas Salinas? Tu não foste, e Saul, que era apenas meu pretendente sem a menor esperança, moveu contra mim uma intriga terrorosa, porque viu, no campo, o primeiro tenente Santander amarrar os cordéis de minha botina que estavam dificultando-me o andar. Deves recordar-te de como energicamente o reprimendei, quando soube que lhe cabia a autoria do contado... Note-se que era apenas um pretendente, como muitos havia, todos sugestionados pela minha beleza pouco comum neste bairro de mulheres feias. Afinal, mamã, que te disse ele desta vez?
—Saul compreende o amor como uma extasia, minha queridinha, e tu o compreendes como um devaneio. Isto é próprio para as meninas. Tu te esqueces, e nisto eu lhe dou razão, que és uma senhora escrava da moral esponsalícia. Contou-me o teu marido um fato em que ele te surpreendeu. Realmente, se as cousas se passaram como podem ser supostas, e ele não quer crer, tu andaste mal.
—Tu o ouviste, ele contou o acontecido a seu jeito... Ouve, agora, como tudo se deu...
—E dispensável Neda. O passado está passado. O que é preciso é que não dês lugares a aleives e que poupes os amuos. A alma dos homens também caleja. Os amuos fazem pequenos calos, mas tempo virá em que, calejada a alma, o amuo será definitivo.
—Que teria isso?
—Um escândalo, minha filha!
—Para adquirir a minha liberdade mamã, que tu sacrificaste, eu não me pouparei a um grande escândalo.
—Toma juízo, doidinha. É preciso acabares com estas zangas e receberes o teu marido como o teu senhor...
—Hein?... Não me zangarás, mamã, podes ridicularizar-me como entenderes... Não me darei por achada.
—Não promovo senão o teu bem. Resolve a crise e sê... mulher de teu marido.
— Já estás julgando o feito?
—Tu tens toda a razão, ele tem igualmente toda a razão. Harmonizem-se e sejam felizes.
—Pareces-me uma juíza a Salomão, com a diferença de que o rei hebreu ouvia ambas as partes em conflito, e tu julgas com a audiência de uma só...
—Interpretas muito mal o meu gênio.
—Não te interessa conheceres a injustiça de que sou acusada pelo sr. meu marido?
—Fala, minha filha! Mas tem a certeza de que, fosse qual fosse a acusação, eu nunca seria contra ti.
—Obrigada, mamã! Quero, entretanto, justiça, e que, como Saul, não julgues pelas aparências. Daria a vida para saber como ele te referiu o que se passou...
—Deixa o que ele me disse. Narra o que tu sabes...
—Pois bem! Na terça-feira, mamã, de combinação com Saul, resolvi passar uma temporada num arrabalde. E, devidamente autorizada por ele que me falou pelo telefone, fui à Barra correr uma casinha vaga e que nos serviria. De caminho, encontrei-me com o dr. Eduardo que, ao depois de saber ao que eu ia, daquele modo desacompanhada, teve a gentileza de oferecer-se-me para o serviço de abrir e fechar portas. Aceitei e foi ele quem tomou as chaves na taverna da esquina... Vê tu!... Não fosse ele e teria eu de entrar numa taverna, sozinha, arriscada a ouvir qualquer indecência... Ao depois, o dr. Eduardo foi quem abriu a porta... Como eu me ataria de luvas de camurça para fazer essa diligencia?... Umas chaves muito pouco asseadas... Corremos o primeiro andar da casa, e, quando passamos ao sótão, o meu gentil cavalheiro se lembrou de, por segurança, fechar por dentro a porta da rua... Subimos. Mal chegávamos em cima, começaram de bater numa porta. Poderia eu suspeitar que o meu marido, tendo ordenado que eu fosse, porque ele não teria oportunidade de acompanhar-me, logo depois resolvesse o contrario, e estivesse a bater na porta da rua? E foi por um acaso que nós o vimos. Chegamos inesperadamente a uma janela do sótão e percebemos que era ele quem batia. O dr. Eduardo, desculpando-se por já ter eu cavalheiro, despediu-se de mim, desceu as escadas, e, quando abria a porta, foi insolentemente agredido por Saul, que lhe negou a mão para o cumprimento do estilo... Só tu vendo, mamã, a fúria com que o sr. meu esposo investiu contra mim! Felizmente, desafiado pela minha calma, ele não teve animo para iterar o qualificativo mau com que me mimoseou. Dei-lhe as costas e, se ele quis, fechou sozinho a casa e veio só...
—Devias ter evitado tudo isto, Neda.
—Evitado, como?
—Não aquiescendo à companhia de um homem de má fama, como é o dr. Eduardo.
—Adivinhasse eu que ele viajaria para a Barra naquele mesmo bonde em que eu fui... Hora de trabalhos na cidade...
—Recusasses os favores oferecidos.
—Ora, mamã! Deixa-te de coisas! Qual é a mulher que se anima à grosseria de recusar gentilezas de um moço de distinto trato?...
—Conforme o renome desse moço.
—Tem má fama o dr. Eduardo?
—Não sei, não. Dizem.
—Se tem má fama, tem maus costumes. E como é que Saul, tão zeloso de sua honra, admite, no seu convívio e nas suas recepções, um homem mal visto? Penso que os frequentadores de nossos salões, os habitués de nossa intimidade, sejam pessoas dignas de acompanhar-me a um ponto qualquer, e, se não fosse assim, a primeira privação deles, seria a do nosso convívio...
—Neste ponto és razoável, sou eu a primeira a reconhecer... Mas, Saul referiu-me que estavas sem chapéu...
—De fato. Ao depois que o dr. Eduardo se despediu, esbarrei na telha van do sótão, e enchi as flores do chapéu de teias... Sabendo que o sr. meu marido ali estava para auxiliar a reposição, tirei o chapéu e asseei prestamente...
—Diz mais ele que estavas empurpurada e que te confundiste com a sua chegada, ao ponto de não saberes repor o chapéu...
—Saul é um mentiroso.
—Não te zangues, Neda.
—Injuriou-me.
—Não dês importância a isto e resolve-te a aceitá-lo pacificamente...
—E ele o quer?
—Porque perguntas?
—Porque tão honrado ele não deveria aceitar mais a coabitação da esposa desonesta.
—Não deves dizer assim, minha filha!
—Aceita-me ele?
—Que tolice, Neda!
—Mamã, Saul deveria ter agora a minha repulsa definitiva, e não a faço em atenção aos teus bons ofícios...
—Fazes muito bem.
—Lá vem ele descendo...
—Trata-o bem, minha queridinha! Um lar que não tem esposo...
—Desculpa-me, mamã: só agora reparo que estou muito à vontade para nos encontrarmos os três...

Arrepanhando, então, o belo roupão desabotoado, por cujas rendas e decotes se viam as carnes lucíferas de NEDA, a mulher de Saul se escapuliu, desenhando escorreita o seu impecável corpinho de escultura grega...

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Nota:
Almachio Diniz: "Mundanismos" (1911)

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Advertência:
Alguns termos inseridos neste conto podem apresentar sentidos obscuros, podendo ser o resultado de erros no processo de digitalização da obra ou mesmo  termos específicos  atreladas ao contexto histórico no qual viveu o autor. Assim, caso possa contribuir para o esclarecimento de algumas dessas dificuldades ortográficas, por gentileza entre em contato conosco, no e-mail: iba@ibamendes.com

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