POBRE MENINO!
CAPÍTULO I
Em dia fresco e de chuva miúda,
viajava eu na estrada de ferro Central.
Vinha de S. Paulo para o Rio de
Janeiro em trem que parecia, contra inveterados hábitos, dever chegar á hora
regulamentar.
A locomotiva como que se aprazia
a devorar o espaço — na frase consagrada — por tempo tão grato que dispensava
calor, poeira e grandes atrasos, e o jornadear, calculado por tabela oficial de
paradas certas, inflexíveis, sempre as mesmas, era relativamente agradável.
Na estação do Cruzeiro, onde
desde largos anos — ia dizendo séculos — imperam o porte dominados, a alentada
bengala, a enérgica gesticulação e as
barbas medievais e enchumaçadas do major Novaes, entrou uma família, regressando de Caxambu.
Pai, mãe, bastante moços, esta
ainda vistosa, bonita, um filho de 12 para 13
anos, visivelmente doente, duas criadas, uma branca, outra preta, e um
molecote, vestido de pagem, muitas
malinhas de mão, chales, cobertores, travesseiros, garrafas de leite e águas minerais, embrulhos
com restos, sem duvida, da matolotagem,
comida á descida da serra.
Tudo aquilo ás carreiras se
arrumou nos bancos vazios ao lado e ao redor de mim.
Afinal, apitou a máquina e partiu
o barulhento comboio.
Cansado de ler, esgotados os
jornais de S. Paulo, parcos de novidades, e um tanto aborrecido com um romance
de Charles Merouvel comprado no Garraux, que não me interessava, nem merecia
interesse, pus-me a observar os recém-chegados.
No rosto de todos, a inquietação,
concentrada no menino que, apenas
sentado, pedira para se deitar.
—Sinto-me tão fraco! Exclamou
dolente. Não tenho mais forças!...
E com muita solicitude, criadas e
molecote, auxiliando apressados os amos
e obedecendo-lhes ás indicações, arranjaram os meios de dar melhor
cômodo ao doentinho, cujos pés iam além
do banco e se contraiam de cada vez que passavam os empregados do trem.
Sim, doente, muito doente até. E
tão simpático, tão meigo, uma expressão
de tanta doçura na fisionomia, nos olhos bem rasgados, pestanudos,
negros, cintilantes, mais do que há vida normal, uns olhos de sofrimento e
febre!.... Os lábios como que reviam
sangue, de tão rubros; em compensação, as orelhas, muito grandes, desgraciosamente apartadas, da
cabeça, umas orelhas desmarcadas, como
as do malogrado Napoleão IV, mostravam-se brancas, diáfanas, num grão de
deplorável e significativo descoramento.
Impressionaram-me logo de
princípio os modos e as observações do
menino.
A cada momento, sorria para os
pais com imensa ternura, repassada de
melancolia, ainda que n’essa continua e comovedora caricia
transparecesse a vontade de lhes incutir coragem e esperanças.
— Apesar de tudo, disse todo
super-excitado, estou mais valente do que
homem. Assim mesmo não posso ainda estar olhando pela janela. Que pena!
Tinha tanto que ver! Apenas ficar bom
havemos de viajar a valer, não é? Levarei os meus cadernos de estudos e
lucrarei muito. Não deve haver melhor modo de aprender do que viajar. O livro vai sempre aberto diante
dos olhos... E eu, que fazia outra idéia da Mantiqueira... mais sombria, mais
cheia de buracões e pedras. Tão catita, que ela é!...
E buscando outra posição, gemeu
surdamente.
— Sentes muita febre, boi?
Perguntou a mãe com angústia.
— Muita, não... já disse á mamãe,
menos do que ontem; assim mesmo tenho cá dentro em fogo!... Mas que bonita a
serra desde o túnel até ao Perequê!...
— Talvez a frialdade da água te
tivesse feito mal, observou o pai; dous
copos cheios...
— Que mal, papai? Nunca bebi com
tanto gosto, nunca! Eram uns copinhos... parecia que aquela água devia curar-me
afinal...
E como que em subdelírio:
— Que bonita a descida! Como o
céu estava puro! Eu quisera poder, como
um passarinho, atirar-me de cabeça para baixo, voando, voando, por cima
de todas aquelas montanhas e dobras e
matarias! E o sol como brilhava, com um calor tão bom, de saúde; não como calor
de febre! Lorena, não é papai? Já em baixo, na
várzea, uns pontinhos brancos. Quanto é boa a vida, a vida... a gente
sentir-se valente, robusto... sem necessidade de tanto remédio amargo!
— Vamos pôr-lhe o termômetro?
Propôs a mãe para o marido com uma lagrima a cair-lhe da pálpebra.
Recalcitrou um pouco o
pobrezinho.
— Não, mamãe; sempre esta maçada!
Ficar parado um tempão... e para que, afinal? Esta febre não quer me deixar...
bem feliz se puder ir vivendo com ela... me acostumando aos poucos.
Resignou-se, porém, com gracioso
amuo e quedou se imóvel e silencioso,
com o bracinho esquerdo bem encostado ao peito.
E os olhos negros, pestanudos,
cintilantes, giravam de um lado para outro,
enquanto a ponta da língua em continua vaivém, molhava os lábios ressequidos
e gretados pelo ardor da terrível
consumpção.
Cruzaram-se os seus olhares com
os meus e tiveram como que um sorriso de simpatia e cordialidade, com uma
pontinha de vexame por estar assim doente, aniquilado, n’aquela inferioridade
da moléstia triunfadora, invicta.
Embora um tanto casmurro na
viagem e nada propenso a entabular relações
com adventícios companheiros de caminho, não me contive e, inclinando-me
para o lado em que estava a mãe, perguntei-lhe, abaixando a voz:
— Desde muito enfermo este
interessante menino?
Respondeu-me e senhora com
verdadeiro açodamento de quem acha uma
válvula de expansão a constante e incompreensível sobressalto.
— Muito não... uns quarenta dias.
Nem o senhor imagina como boi era forte e são... dormia como um chumbinho...
bom apetite sempre, ávido de movimento... Boi não parava..., travesso como um
cabritinho, muito bonzinho porém, sempre...
E boi isto e boi aquilo.
Chamava-o assim desde criancinha. A madrinha,
muito dada a leituras inglesas, lhe pusera essa apelido familiar...
— De que não gosto nada,
interrompeu o menino com engraçada seriedade.
Eu me chamo Alberto.
Mas a mãe continuava:
— Haviam feito, no mês anterior,
um passeio fatal á chácara de uns amigos
para os lados do Jardim Botânico, ele se agitara de mais com os
camaradas n’umas correrias sem fim, se
resfriara...
— Brincaram perto de uma vala
aberta de pouco, explicou o pai...
— A noite, perturbação de
digestão, e desde ai uma febre tenaz, rebelde,
que nada pudera atalhar. Tomara já quinino... um despropósito!... um
horror!... Depois continuas mudança, Gávea, Engenho Novo, Cascadura, Barbacena,
Caxambu, tudo sem resultado...
— Não há tal, contraditou o
pequeno, já estive pior... E não desanimarmos. Olhem, façam tudo para não me
deixarem morrer... Tenho tanto que aprender e estudar!... Que atraso este tempo
todo em pura perda! Como o Cardoso e o Souza
devem ter-se adiantado nas aulas!... Quando é que hei de pegá-los
agora?...
Não pensava n’outra cousa, ia-me
dizendo a mãe, enquanto as lagrimas, como que já por habito, lhe corriam a fio.
Tão boa crença, tão estimada de todos,
estudioso... tanto estimulo! Uma ambição insaciável de saber... Muitas
vezes se levantara ela da cama para apagar-lhe a vela e fazê-lo deitar-se...
Ardendo em febre, pedia os livros, queria seguir as lições, ouvir os
professores... Nunca se vira cousa igual... Tirara já bonitos prêmios... livros
muito dourados, com gravuras...
— Já mamãe está falando de mim,
interrompeu Alberto com ligeiro tom de repreensão. Este senhor há de
desculpar... é de toda a mãe. Não sou melhor do que tantos outros...
E o seu rosto ensombreceu-se.
— Pelo contrario, valem mais do
que eu, muito mais...
— Porque, meu amiguinho?
Perguntei comovido.
— Oh! Eles têm saúde; eu nunca
mais hei de tê-la, ainda que escape d’esta... Também, d’ora em diante saberei
arredar-me sempre de valas abertas...
Verdade é que me diverti tanto!
E recomeçava o subdelírio:
Cada qual nascera com a sua
sorte. O Carlinhos, que caíra dentro do fosso
e se molhara dos pés á cabeça não tivera nada... e ele!... Quanto se
rira, que boas gargalhadas dera, vendo o companheiro atolado... Saíra sujo de
lama, que era uma miséria... E a
borboleta azul que estavam perseguindo fugira, fugira; subindo muito alto... E
as azas tinham-se aberto largas, imensas, como um manto... tomando d’ali o
pouco o céu todo, de ponta a ponta... Também, que lembrança, querermos pegar o
céu... o céu!
Ai, fazendo um esforço sobre si,
perguntou impaciente:
— Papai, não é tempo de tirar o
termômetro? Está me incomodando. Além da febre e sede... esta caceteação!...
Era tempo.
— Quantos graus? Indagou a mãe
com dolorosa sofreguidão.
— 38º e 8, respondeu o pai. Hoje,
bem melhor d o que ontem, pois a esta hora Alberto tinha 39 e 2.
Via-se porém, que encobrira a
verdade, pois destoavam as aquietadoras palavras com o ar de desalento que
simultaneamente se lhe estampava no rosto. Ao guardar o termômetro no estojo de
metal, fez-me imperceptível sinal.
Levantei-me e fingi que ia
refrescar o rosto no cubículo ao lado, poeirento e sujo toilete
do vagão.
Daí a pouco, chegava o homem.
— 39 e 8, foram as suas primeiras
palavras, pontuadas de terror.
E, acabrunhado, pôs-me a contar o
caso, banal, diário, tão comum, mas sempre pungitivo da sua imensa desgraça.
Esse menino, a alegria da sua vida, a
vida da sua mulher, ricos eles, sem mais objetivo algum na existência.
Agora, aquela febre invencível, que
zombara de tudo e lhes estava matando a adorada criança, debaixo dos olhos, dia por dia. Mudem de
ares, era o incessante conselho dos médicos; o recurso único que lhes restava.
E não faziam outra cousa; de um lado
para outro, semanas inteiras. Para onde mais ir? E os terrores em
lugares distantes, ermos, sem recursos,
sem para quem apelar, quando vinham acessos de estupenda violência!...
Ao tomar então nos braços o
filho, parecia que o tirava de um braseiro... queimava... Como poderia por mais
tempo resistir organismo tão delicado?... Que
cruel expiação era essa? E expiação porque? Afinal, nem ele, nem a
mulher tinham culpas ou crimes a pagar?
Porque os esmagava, tão dura, a mão de Deus? De que o acusava a justiça eterna? Confessava Ter sido sempre bastante orgulhoso
dos haveres herdados e sobretudo
d’aquele filho tão perfeito... Mas quem o fizera assim? Não fora a própria
natureza? Casara-se por amor com uma moça pobre, rejeitando propostas de
enlaces ricos. Nunca se arrependera, porém... haviam, até pouco, sido tão
venturosos! Parecia que a felicidade era um crime. A vida devia ser triste,
agoniada, passada em lagrimas e travada de amargos desgostos...
E ao dizer tudo isso, apesar de
violento esforço, tinha as pálpebras
molhadas. Via-se que aquele homem sofria cruelmente, sobretudo na
altivez inata, ao ter que abrir o peito,
por irresistível impulso, a um desconhecido que arvorava, na conturbação da sua dor, em amigo e amigo
intimo.
Pouco se importara, a principio,
com a tal febre, não pelas afirmações,
sempre tranquilizadoras, dos muitos médicos consultados, a mestrança,
portanto, graças a Deus, podia pagá-los generosamente; mas afigurava-se-lhe
impossível, fora de toda a ordem, lei e
justiça, que a vida do seu Alberto pudesse perigar. Nem de leve lhe passara isso pela mente...
nunca!...
Um menino destinado a tanta
cousa! Havia de ser, por força, homem excepcional, conquistar as mais altas
posições no Brasil, dando prestigio á enorme fortuna que lhe era destinada...
Herdeiro universal do avô riquíssimo, com duas tias solteironas, de que era o
ai-Jesus, ambas com muitas posses, quem podia contar com futuro mais
brilhante?... Eles, os pais, tinham de renda mensal nada menos de cinco contos
e gastavam-na com regra e prudência, fazendo ás vezes apertadas economias, para
que o Alberto na sua carreira política jamais se preocupasse com o dinheiro,
encontrando-o sempre á mão... Tudo isso, tudo seria debalde? Arredava do espírito
á possibilidade de irremediável desastre...mas...
E a custo lhe saiam as
palavras... mas a morte a nada atende... a nada! É inexorável!
Prorrompendo então em
soluçoso pranto, agarrou-se a mim, convulsivamente.
— Ah! Meu filho, Alberto! Quanto
é castigada a minha soberba! Está
perdido... perdido!... E por quanto tempo, por quantos dias ainda o hei
de possuir?
Sacudi-o com certa energia:
— Silencio! Sua senhora pode
ouvi-lo! Olhe, lave o rosto; esconda os sinais
da sua comoção. Naturalmente exagerava o perigo...
O desconsolado pai abanou a
cabeça; mas obedeceu-me opresso e alquebrado.
CAPÍTULO II
Quando voltamos aos nossos
bancos, parecia Alberto presa de agitado sono. Pelo menos, tinha as pálpebras
caídas, como que prostradas por vontade
alheia ao organismo.
Via-se que febre intensa lhe trabalhava nas
veias — faces escarlates, beiços rubros,
estremecimentos repetidos por todo o corpo, fulgurantes. Relâmpagos de frio —
assim nos dissera — lhe zigzagavam pela espinha dorsal, contraindo-lhe, de cada vez, os bracinhos magros,
descarnados.
— Água, água, murmurou a custo,
depois de algum tempo e abrindo com
sofreguidão os lábios secos, ávidos.
O molecote, Apresentou-lhe rápido
um copinho de leite, cortado com água mineral.
— Mió, nhonhô? Perguntou baixinho com
expressão de tocante e inquieto interesse,
miósinho.
Com um gesto de dedo, respondeu
não o pobre do menino.
Em extática e inexcedível
desolação, o contemplava a mãe, achegando os
cobertores, quando um movimento mais impacientado e vivo do doente os
atirava ao chão, n’aquelas crudelíssimas
alternativas de algidez e de inaturável calor.
— Apenas chegarmos ao Rio — disse
ela para o marido, que, sorumbático,
olhava pela janela a fugitiva paisagem — devemos logo embarcar, fazer
uma longa viagem de mar, talvez até á Europa...
Entreabriu Alberto os olhos e, em
tom de ligeira malícia, objetou:
— Ora, a malvada embarcará
conosco... Está dentro de mim; não me largará mais...
E o trem corria, corria! Entre
Mendes e Rodeio, engolfou-se no túnel grande,
acordando barulhos ensurdecedores, de fantásticos ferros a se chocarem,
sopros gigantescos, estalos enormes e sufocadora fumaça.
— Mamãe... mamãe! Chamou o menino
com indizível angustia.
E ela, inclinando-se toda sobre o
malsinado, como que a defendê-lo de misterioso inimigo, a chorar, o acalentava,
qual criancinha de berço.
Ia então desembocando em
ofuscadora claridade a locomotiva, triunfante e a apitar estridente e
galhofeira.
— Como é boa a luz, como é boa!
Exclamou Alberto erguendo nervosamente a cabeça e com ar de verdadeira
exultação. Pensei que ia morrer. A morte deve ser assim; um túnel, do qual a
gente não sai mais nunca, comprido, comprido e tão escuro, Santo Deus!... E
onde a boa mamãe para animar o filhinho... só, abandonado!...
Não sei por que, julguei dever
intervir, como que desvendar consoladora clareira ás negras idéias d’aquele
menino tão combalido e ameaçado.
— Não, Alberto, repliquei com
involuntária gravidade e imposição, na morte há também muita luz, muita
esperança, muito céu, o verdadeiro céu, sempre azul e grandioso... Na morte, mil alegrias e gozos
esperam a alma, como a vida não as pode
dar...O túnel acaba logo... começa depois sem demora a realidade, eterna, cheia de encantos e esplendores... Ilimitada
é a bondade do imenso Criador!
E estaquei, vexado do que acabara
de expender na vivacidade espontânea
daquela espécie de preleção tão descabida.
Mostrara Alberto certa surpresa
ao ouvir essas palavras, e, encarando-me muito sério, respondeu com resignado
desalento.
— Pode ser, pode bem ser... mas
eu não quero ainda morrer!...
E retraiu-se ao silêncio. De vez
em quando tiritava, encolhendo-se todo e a bater os queixos. Buscava, porém,
cauteloso, dominar manifestações que impressionassem mais os pais, atentos ao
menor sintoma de agravação, tão atentos quanto impotentes e vencidos; pobres,
pobres pais!
Passada a estação de Belém, já
noite escura, observou a mãe, para dizer qualquer cousa, que o trem não parava
mais senão no Rio, no campo da
Aclamação.
Contrariou-a Alberto com
inesperada alacridade e, nos olhos subitamente
acesos, pareceu Ter singular prazer em assentar incontestável verdade:
— Não, senhora; pára ainda em
Cascadura.
E como suscitasse duvida o que
afirmava, eu mesmo opinando contra ele,
mostrou bastante resolução e jovialidade em sustentar a sua asseveração.
— Você não se lembra, José, que o
trem de São Paulo costuma parar em
Cascadura? Perguntou para o molecote, levantando-se a meio.
— Iô, nhonhô? Respondeu o
pagenzinho todo assarapantado, iô, não... ué!
E tal a figura atrapalhada do
negrinho pela obrigação de interpor juízo no
debate, que não pudemos, todos nós, deixar de sorrir.
— Que tolinho! Exclamou Alberto.
E deu uma risadinha gostosa.
Depois caiu novamente em comatoso
abatimento.
E, á luz vacilante, cheia de
vaivéns, quase sinistra das fumosas lâmpadas, o íamos observando, cada qual
entregue a penosas meditações que se concentravam, em doloroso acordo, n’um
ponto único.
Identificado, como se fosse velho
amigo, ou, mais ainda, parente chegado
d’essa gente, que eu nem de longe conhecia, cujo nome ignorava e nem
sequer procurava saber, sofria com eles n’uma contenção dura, cruciante, numa
afinidade afetiva de maior intensidade e violência.
Que viagem interminável! Que hora
aquela! Tudo tão sombrio em torno de nós! Cessara a chuva; mas as trevas
úmidas, gotejantes, se condensavam
carrancudas, caliginosas, como que palpáveis. E a cada estação eram
apitos e assobios de perfurarem os
ouvidos, ou então clamores angustiosos e um bater de sino melancólico, lúgubre, a dobrar finados.
— Ainda por cima este agouro,
murmurou uma das criadas num como
muxoxo.
Em Cascadura parou, com efeito, o
expresso, e um trem de subúrbios com
ele cruzou n’um estrondear ensurdecedor de fragorosos gritos, uivos e sibilos,
como que a anunciarem pavoroso e irremediável desastre, choques horríveis,
encontro medonho.
— Boi,
boi, clamou a mãe simulando certo júbilo, você é que tinha razão! Olha...
— Nhonhô, nhonhô, avisou por seu
turno o molecote achegando-se e puxando de leve o doentinho por um braço, tá hi Cascadura.
Conservou-se Alberto inerte,
indiferente, suspirou apenas com mais força.
— O túnel... o túnel... Depois
vem luz e céu... Bem me disse o homem...
— Não será bom ver o termômetro?
Propôs a mãe com respiração cortada,
ofegante.
— Não, mamãe, pelo amor de Deus,
poude ainda implorar o pequeno.
Já ai entraremos na zona dos
subúrbios e os lampiões de gás, cada vez
mais chegados, indicavam a proximidade da capital. As estações todas
iluminadas, cheias de burburinho e animação populares. Numa d’elas tocava uma
banda de musica saltitante peça e o contraste d’esses alegres compassos mais me
apertou o coração.
Revoltava-se, contudo, o meu
egoísmo. Que necessidade essa de me
associar a todo aquele drama intimo, que me trazia tão consternado
enquanto me abalava o sistema nervoso? Por que não mudava de logar, não
procurava outro qualquer vagão? Afinal,
não era aquilo tão comezinho? Não assistira a tantos episódios de agonia e
morte? Mais uma criança que desaparecia no báratro insondável... para dar razão ás estatísticas.
Que importância no desenrolar geral da
existência? Gota d’água pura e cristalina a cair no abismo... Não era,
mesmo por isto, um afortunado da sorte? Saía da vida sem as misérias e
desilusões que a vão assaltando... limpo de toda a poeira e lama...
Procurava distrair o espírito;
mas ai se me prenderam as vistas insistentes, teimosas, hipnotizadas aos olhos
então largamente abertos de Alberto, não mais
desassossegados e em tresvario, mas num movimento lento de oscilação,
como que destacados das orbitas a se
mexerem um tanto ao acaso. De quando em quando
parecia que se sumiam, caídos, sem mais apoio, dentro do crânio vazio,
oco. E me diziam, assim mesmo, tanta
cousa, me falavam de tantos mistérios, me interpelavam com tamanha ansiedade!...
Interrogavam supliques, meigos,
quem, em boa hora, lhe dera do mundo de além idéia outra, que não de simples
terror e aniquilamento para sempre, n’aquele instante tão próximo da suprema
partida.
Sim, deveras, lá, fora d’aqui,
também soes, também flores, esperanças,
carinhos? Também o aconchego doce, protetor de entes bons, superiores,
compassivos? Palavra?! Podia confiar? Não o quisera enganar... A levá-lo d’ali
a pouco, longe, longe, pela imensidade na desconhecida viagem, o regaço de
algum anjo, faria vezes da estremecida
mãe? Para que, porém, deixá-la? Para que despedaçar o coração d’aqueles
fulminados pais? Amavam-n’o tanto, tanto!
Quem incutira, porém, a esse
homem desconhecido o poder de saber quanto se passava da outra banda da vida? Talvez
fosse um d’esses anjos destinados a carregá-lo, não era?... Ah! o disfarce
mostrava-se bem claro! Por que, porém,
não se deixava enternecer? Não via a pungente dor dos que o cercavam? Pedisse a
Deus misericórdia... consentisse-lhe o viver... A ninguém, nunca fizera mal
algum... Prometia tudo... não por ele, mas pelos pais... Passaria os anos a
estudar, a dispensar o bem, o amor, a pagar a divida solene de interminável
gratidão! Senta quieto, refletido,
honesto, caridoso, a sacrificar-se pelos outros, por todos...amigo dos humildes, dos mendigos e desgraçados!...
Mas tivesse pressa... do contrario não o acharia mais na terra... Bem sentia a
morte...sim, a morte...
Passou mais um trem de subúrbios
com assustador estampido:
Ouvisse, ouvisse!... Ai vinha
ela... Que medo!... E já estava como que sozinho... via-se na cova estreita com
um mundo de terra por cima do seu corpinho tão batido pela moléstia!
— Não, não! Havia de Ter
coragem... dominava o seu terror, embora bem justo, bem natural!... Criança, saberia
morrer como homem... Poderia estar chorando nos braços de pai e mãe, mas para
que? Para torturá-los mais? Quem sabe se não haviam de morrer também ali!
Viessem, viessem para cobrirem de flores o cantinho que eternamente o acolheria
no cemitério, alvo, consolador com tantos cruzes e anjinho de mármore a rezarem.
Debalde buscava eu fugir à
obsessão. Duas vezes me levantei; mas irresistivelmente voltava a conversar com
aqueles olhos, cada vez mais resignados,
penetrantes e de dolorosa eloquência, cheios de surpresas, desconsolos e
revoltas, com energia sopitados...
É preciso, é preciso; que fazer?
Bem quisera estar pensando, como
menino, em cousas fúteis e risonhas e da
sua idade, mas tinha por força que cuidar no que há de mais serio e triste, na morte... morte!
E já as pupilas negras, virando
de vez em quando, se escondiam sob as
arcadas orbiculares, buscando ver além, para dentro do pobre organismo
combalido... E já se fixava, no bater lento das paloebras pesadas, plúmbeas,
impenetrável, o branco das escleróticas, como alvacento pano caído de cena
finda, acabada...
E os bicos de gás iluminavam de
fora, intermitentemente, o vagão, como que em fantasmagórica visita, dando
repentina luz a todos os recantos ou deixando-o de súbito em completa escuridão...
Íamos chegando, e no rostosinho
de Alberto se desdobrava o palor dos últimos instantes. Desbotava-se a rúbidas
das faces incendidas e afilava-se, a mais
e mais, o nariz correto, aquilino.
Já a luz elétrica chegava até
nós.
E o trem estacou com o baque de
definitiva parada, salteado pelos carregadores em grita: “Malas, malas!
Bagagens! N. 20, n. 53!”
— Leve ao ombro o seu filho,
disse eu para o pai, ele está...
E a palavra “expirando” ficou-me
atravessada na garganta.
Parado, imóvel, os vi partir, a
todos. O pai, na frente, com o sagrado fardo, a
mãe, trôpega, fora de si, no braço das criadas em soluços, atrás o
molecote com cobertores e chales...
E no vagão vazio, como que continuei a fitar
aqueles olhos ardentes, indagadores, tão suaves no ingente desespero, na duvida
do problema eterno...
Poor boi, alas!
---
Nota:
Visconde de Taunay: "Ao Entardecer" (1901)
---
Nota:
Visconde de Taunay: "Ao Entardecer" (1901)
Nenhum comentário:
Postar um comentário