CABEÇA E CORAÇÃO
(esboço psicológico)
CAPÍTULO I
— Repare, Betina, na pungente
diferença de idade que se interpõe entre nós e dolorosamente nos separa um do
outro. Nada de ilusões de ambos os lados. Eu
poderia ser, não já seu pai, mas até seu avô. Veja como a mão do tempo
me pesou sobre a pensadora cabeça, o
contraste dos meus cabelos brancos com a sua cabeleira negra, exuberante de
esplendor e seiva, verdadeiro diadema da mocidade. Como querer unir as sôfregas impaciências dos
primeiros anelos da primavera á meditada calma dos últimos dias do outono? O
presente não responde pelo futuro. Mil cousas imprevistas nos esperam nos
muitos meandros da existência. Por mais que a razão prepondere, por mais que
busque guiar-nos e conduzir com segurança,
cumpre contar sempre com as surpresas do destino. A vida é rio
misterioso em que não há piloto, por
mais prudente e experimentado que seja, capaz de prever todos os perigos e fatais correntezas, para lá de
breve curva que o olhar alcança... E quer Você que eu me constitua a causa da
perda de muitas ilusões suas, preciosas, repassadas de encanto e sonhos, quando
o viver se abre ante os seus passos tão
cheio de esperanças, promessas e alegrias? De orgulho se entumece, de
certo, o meu peito por conhecer hoje, tão de perto, a intensidade do afecto que
a sua generosidade me dedica; mas urge
que eu saiba resistir ao seu arrastamento... e ao meu, também. Eu desposá-la? Um velho, para
assim dizer, chegado quase aos sessenta
anos! Prendê-la a mim, formosa, cobiçada por tantos, rica, sedutora? Fera loucura de ambos... E que diria o mundo?
— Que me importa o mundo?
Replicou arrebatada a bela e nevrótica
donzela após curto silêncio. Não lhe incumbe, a ele, preparar-me a felicidade
que a sorte complacente me indica e que devo alcançar por mim mesma. Muito
tenho pensado, muito perscrutado nos
recessos mais íntimos da minha alma e no fim acho que, de todas as homenagens, reais ou
fingidas, prestadas pelos homens, só me fica a lembrança, viva, suave,
profunda, da sua superioridade, Antenor,
sobre todos. Conheci-o sempre tão diferente dos mais; Sinto, que a minha vida,
sem a sua presença, o seu contacto, o
seu apoio terno e varonil, de infinda e vibrante meiguice, se me tornará
tornará tão vazia, tão ôca, estéril e pesada, que só essa possibilidade me incute letal tristeza, desalento enorme
até ao fundo do coração. Que sentimento senão o da verdade me leva a falar-lhe
assim? Bem sabe, consigo não guardo segredos. Não poucos ambicionam a minha
mão, desde aqueles que só tem por si a banalidade da juventude, até aos que
buscam deslumbrar-me com as posições e honras conseguidas. Todos me tem falado
de amor; só o Sr, conservou a
originalidade do silêncio, embora há muito reconhecesse eu que, no
intimo, não era, não podia ser-lhe
indiferente...
— Oh! Sim, interrompeu ele com
sincero arrobo, quantas vezes me achei sem forças para reprimir ímpetos, que,
nem aos 25 anos, jamais me conturbaram?!
Por compaixão, não me coloque em posição difícil... ridícula, aos meus
próprios olhos...
— Até que invertidos os papeis,
continuou exaltada a moça, pude enfim arrancar-lhe o seu segredo. Já sei,
afianço-lhe o que é ser-se feliz! O que experimentei naquela tarde decisiva, em
que, após todos os seus acanhamentos e
resistências bem leais e valentes, o ouvi discorrer com máscula e
irresistível eloquência sobre o amor,
aplicando-o a nós dous, é indescritível... Não cerrei os olhos um só minuto; e
a madrugada me encontrou á janela triunfante, mas alquebrada, ardendo em
febre...
— Betina, Betina, implorava
Antenor no tom de brando e dorido queixume, quanto me arrependo de não ter
sabido vencer-me... Perdoa o sonho... mais calma!
— Que quer, meu bom amigo? Atua
em mim também a influencia do nome que
me deram. Será Você... serás... o meu Goethe!
— Mas aquele era um gênio, um
ente privilegiado, a gloria de uma grande nação, o orgulho da inteligência
humana: tudo merecia, a admiração dos homens, as homenagens do mundo inteiro, o amor das
mulheres, a adoração de todas as idades. Subira passo a passo como sol ofuscado
em firmamento sem nuvens, tocara ao
zênite, cada vez mais rutilante, e ao acaso, a transmontar, iluminava com
deslumbrante fulgor o século em que vivera. Protestava-se a natureza intelectual
ante aquela força criadora, tão grande que parece impossível excedê-la. Fez,
com efeito, vibrar todas as fibras do coração; desvendou-lhe, como o divinal
Shakespeare, muitos dos seus
segredos; e abrangeu as mais árduas questões da ciência; resolveu por mera
intuição abstrusos problemas; revestiu todas as formas —
Proteu estupendo e sempre
admirável, ninguém o igualou na extensão e profundeza da inspiração e do
saber!...
— Serás o meu Goethe, insistia
Betina bebendo as palavras do seu
apaixonado e fitos nele os quebrados e amorosos olhos; cada qual vive e
se expande no circulo em que o destino o
fez nascer. Tivesses tido o palco que ele, o gênio, pisou, e a tua glória
houvera passado muito além dos limites que conseguiste.
Quem põe, assim mesmo, em duvida
a tribuna, o teatro, as letras, a justiça dos concidadãos? Serás o meu astro
vivificador, o meu sol... Felizes das que te viram e te deram o tributo do seu
amor em teu zênite. Para mim fora até demasiado forte o teu brilho de então.
Contento-me com os raios desse ocaso, já que tanto me falas nele... Aliás, que
sou eu senão simples prolongamento do teu espírito, da tua vida moral? Quem me
educou a alma, me infundiu o gosto e o gozo da leitura, ávida, insaciável? Quem me guiou no labirinto da
literatura, me fez viver a vida dos antigos,
me incuto o entusiasmo das obras primas, o amor do belo, da arte, do
honesto, do puro, do sublime? Que sou eu senão um filha da tua inteligência, do
teu gosto, das tuas inclinações ideais e
sentimentos? E com a felicidade ao alcance da mão hei de deixá-la escapar por preconceitos e
convenções que aborreço e a que não se dobra a minha altivez inata? Que fazer
de mim, se antepuseres os argumentos da fria
razão a todos os impulsos da nossa alma? Valerá tão pouco, aos teus próprios olhos, a criatura intelectual que afirmaste e
é obra exclusiva tua, que, em nome de um
enlace bem equilibrado segundo leis físicas, meramente materiais, a atires, sem
consciência nem remordimento, nos braços de qualquer peralvilho ridículo, nulo, brutal ou efeminado?
— Já vivi demais, objetava
Antenor com sensível ansiedade patenteando a
luta que se lhe travara no intimo, e o que sei da existência me ensinou
a desconfiar do que me resta viver...
Acostumam-se os passos do homem tanto a subir, quanto a descer, e agora só me
toca ir baixando, costas voltadas para o ponto culminante da parábola vital... Tenhamos ambos justa
compreensão das cousas... saibamos resistir a nós mesmos...
E com os olhos a brilharem de
emoção, dificilmente refreada:
— Calcule os esforços que me
custa este apelo. Imagina abandonada estatua em florido jardim a repelir, se
lhe fora possível, o pendão de rosas que busca engrinaldar-lhe a fria e
marmórea fronte...imagina viajante exausto da cansativa jornada a fugir da fonte fresca, pura,
sussurrante, que lhe vai estancar a sede e
restaurar-lhe as perdidas forças... Terei, porém, energia; afastar-me-ei
d’aqui, destes lugares que tanto estremeço, bem sabe a causa, deixá-la hei
neste ambiente de perfumes e mágicos encantos, do que a minha alma levará
sôfrega algumas parcelas para suavização
de imensas dores futuras... e depressa virá o
esquecimento, o olvido certo e merecido, dar-me razão. Rapidamente a
ausência me envolverá em densas trevas... Experimentemos, Betina...
— Fôra rematada loucura, indigna
da sua reflexão, contrária a tudo quanto
lhe ensina o conhecimento que tem do coração humano... Pelo menos, assim
se me afigura... Por mim quero julgá-lo.
São susceptibilidades de exagerado melindre, de exaltado e meticuloso
cavalheirismo, que mais o levantam aos meus olhos... Aliás, para que e como
discutir sentimentos?
— Dolosa conselheira é a
imaginação... Não se deixe enlevar por fugitivas ilusões.
— De que vive o amor, qual o seu
perene alimento, senão a fantasia? Deixe-
se de hesitações que afinal
acabam por deslocar-me, longe de mais, do meu papel natural. A mim não competia vencer
resistências dessas, sobretudo com o meu gênio altivo e independente... Quer
Você argumento superior a tudo? É este o ímpeto que me impulsiona, o meu desejo
supremo... e basta!
Prosseguindo com voz insinuante:
— Descanse em mim, Antenor.
Aceito o símile de que há pouco usou: coroarei de rosas e lírios os seus dias.
Entregue-os, sem receio nem vacilação aos
meus cuidados. Tomo compromisso solene, no momento em que eu suspeitar
de mim mesma, qualquer falha, o menor
desfalecimento na adoração que lhe consagro, abrir-lhe-ei o peito na mais
depuradora e completa confissão, achando novo alento nos seus conselhos, na sua direção
espiritual, no seu apoio tão cheio de experiência e meditação. Falte eu a esse juramento, bem
inútil e... deixarei de viver... Por ele respondam a minha salvação eterna e as
sagradas cinzas da minha pobre mãe, tão
cedo perdida!... Para que, porém, formularmos cruéis hipóteses em plena
alegria? Para que pensar em catástrofes e nos horrores de subversões morais,
quando tudo sorri em torno de nós?...
Cogitar em medonhos terremotos, cercados dos esplendores da natureza boa,
sugestiva, amante, toda ela hino de paixão exultante e criadora, na plena segurança da estabilidade
das cousas e da bondade divina, não será
tentar os céus?
E Betina, encostando a escultural
e imaginosa cabeça ao ombro do nobre e
esbelto varão, o escolhido da sua alma, ali ficou extática, sentindo as
pulsações de um coração em que cegamente confiava e de cuja lealdade tinha, já
de largos anos, todas as provas
possíveis.
Invadia-lhe o ser todo intenso
desvanecimento: inspirar amor profundo,
irresistível, a quem merecia da mais culta sociedade acatamento e
incontrastável prestigio por inúmeros dotes da inteligência e do caráter, e
haver sabido resguardar-se para esse ente excepcional, deixando que a razão e o
sentimento apontassem á sua escolha de entre os muitos que a requestavam e lhe
faziam solicita, ardente e zelosa corte, já pela inegável beleza, já pelos
avultados bens que mais realce davam á
formosura era raro cultivo de espírito!
Tempos depois, casavam-se Antenor
e Betina.
Duas ou três semanas, foi assunto
de todas as conversas o disparatado
enlace, cuja iniciativa, assim se dizia e cochichava, pertencera mais
diretamente á desposada; mas afinal,
acalmada a bisbilhotice, acabou a sociedade, por admirar, com surpresa e
inveja, a serenidade que protegia com as suas brancas azas o ditoso lar,
naquela união intima do fulgor da juventude com a majestade, ainda que decadente, de uma existência credora, certo
era, do respeito de todos.
CAPÍTULO II
Dous anos de profunda calma,
senão de real e bem acentuada felicidade.
Sentia Betina tanta paz de
espirito, tamanho sossego de corpo, como que misterioso e inquebrável silêncio
dentro e em torno de si, que aquilo lhe parecia mais torpor e adormecimento de todo o seu ser,
outrora tão irrequieto e caprichoso, do
que mesmo tranquilidade. Estabelecera-se natural prolongamento da
depressão que á mulher costuma trazer o casamento em sua iniciação física,
caracterizada, mão grado todas as
meiguices e cautelas, por um cunho feroz de lubricidade e violência. D’ai,
surpresas imensas, dolorosos retraimentos e cogitações deprimentes, que só
podem ser atenuados e vencidos pela impetuosidade e pelos ardores do noivado.
Em lugar, pois, de experimentar
do objetivo alcançado intensas alegrias tão esperadas e prometidas pela
imaginação, via nele, pelo contrario, motivos de desalento e desengano, com que de certo não
contara. E por essas falhas do
sentimento sincero e violento que a envolvera toda á maneira inteiriça e
inatacável couraça, se lhe ia insinuando, lenta, mas insistentemente, inexplicável
tédio da vida, desgosto de si mesma e,
mais que isto, a impressão de um castigo por falta, ou erro, e erro
irreparável, inconscientemente cometido. Buscava analisar o que lhe ia n’alma e
afigurava-se-lhe que penetrava sem guia, nem fio, em um labirinto
inexplorável, cujas voltas de todo
desconhecia e que a deixavam perdida em densas trevas, sem mais orientação
possível. “Que tenho?” perguntava com certo terror a si mesma nos rápidos
momentos em que ficava a sós e livre da solicitude, aliás tão inteligente
e estremecida do esposo, todo carinho e
suavidade. “Porque não me sinto completamente feliz? Que me falta? Quero sê-lo;
quero, eis a minha vontade, e nada a ela resiste. “Punha, portanto, esforçado
empenho nisso, mas o desanimo caminhava a par das mais valentes intenções;
d’onde, alguma irritação já contra a serenidade que Antenor dispusera ao
derredor deles dous com tanta discrição,
quanto zelo. Parecia-lhe um desencontro. Teria talvez, quem sabe? achado
mais adequada a inversa, expandir-se em festas e no ruído do mundo. Aspirava
ele a concentração cada vez mais intima, na identificação de todos os gostos
e preferências, ao passo que Betina
experimentava nesse circulo, que lhe parecia apertado demais, desilusões vagas,
pouco definidas e no intimo apelava para mais alguma agitação afora, afim de
dissipar o tão inesperado e inconcebível mal-estar. E com isso iam despertando,
inquietos, atentos, malévolos, os singulares e contraditórios ímpetos do
nervosismo que desde menina tão imperiosamente a haviam dominado.
Deixando-a apática,
retraíra-se-lhe a imaginação como pérfido ou descuidoso companheiro que, depois
de levá-la arriscado passo, de repente se sumira, trêfego, desleal,
abandonando-a sozinha em perigoso lance. Buscava ver só razões de aplauso no
enlace que formara, muitas vezes enumerava, ainda com orgulho, as qualidades
que, aos olhos de todos, tanta preeminência davam a Antenor; e já lhe iam nascendo impaciências
por encontrá-lo tão perfeito, segundo o que lhe podia exigir a alma com esfera
pura e elevada.
Toda essa evolução, porém, em
extremo lenta, morosa e a se arrastar, como insidioso réptil, de um dia para
outro, formando uma só cadeia de elos tênues
irrompível.
Quis Betina voltar-se para o
passado e nele estudar a historia da paixão que
a avassalara com tanto império, fazendo-a vitoriosa de não poucos
tropeços, resistência do tutor,
conselhos e rogos dos irmãos, das amigas e até daquele que afinal se tornara seu esposo, e ficou pasma
de haver posto tão grande violência a
cousas que agora lhe pareciam, senão de todo mortas, quase indiferentes.
Embora aborrecendo os livros
naquela quadra fatal, ela que devorara quantos lhe haviam caído debaixo da mão,
releu pausamente as obras do marido e releu-as com os olhos da critica prevenida
e disposta a severidades e não mais com
os arrastamentos e simpatias do coração. Achou-as corretas, em puro
estilo; mas, como de fato eram, frias,
alambicadas, demasiado polidas, sem esse colorido, essa espontaneidade que
atrai, agarra e dá á idéia vida original, brilhante e por vezes imortal. Pareceram-lhe então as pesas de
Antenor, na sua perfeição métrica e
rítmica, reflexo pálido, esbatido, de versos de outrem, já lidos, não
sabia quando, há muito tempo, cuidadosamente açacaladas, mas sem fibra, nem
estro; assim essas figuras aéreas, subtis, insubsistentes, destituídas de
formas e contornos claros, que espelhos
combinados de longe e em certa inclinação chegam a reproduzir no espaço e fazer flutuar como fantásticas
visões. Na exuberância de tropos, na difusa
abundância de palavras, faltavam os músculos, nervos, circulação de
fluido intenso, cálido, vivificante,
aquelas evocações. Aparições como que de uma existência anterior, já passada, já extinta, a
suscitarem só saudades na indecisa e ansiada
aspiração á realidade.
As intermináveis palestras,
repassadas de tamanho encanto em que tanto havia aprendido, a ouvir Antenor
discorrer horas inteiras sobre um sem numero de
assuntos com suave eloqüência e indiscutível saber, agora lhe pesavam na
sua feição de legitimas conferencias sem razão de ser nem cabimento. E, na
indeterminação do que mais podia agradar-lhe naquela fase de inexprimível
displicência, ora as cortava por modo repentino, quase áspero, desagradável.
Preso não pouco tempo o seu espírito
á direção e influencia exclusivas de
Antenor, aspirava, quando menos convinha, a reconquistar a liberdade, a
readquirir independência e autonomia no
modo de encarar as cousas e questões. Por isto também achava prazer especial e
acre em contrariar, a principio timidamente, mas depois bem de frente, opiniões
e sentimentos que, contudo, no fundo e na essência, reconhecia justos e indiscutíveis.
Nessas ocasiões ainda a pungia o
olhar surpreso e magoado de Antenor, que
buscava logo, prudente e cavalheiroso, impedir qualquer causa de azedume e dissidência entre ambos, por mais passageira
que fosse.
Mas a cautelosa e meiga
condescendência do marido se, nos começos, lhe
levava ao intimo certo travo de remorso, depois se lhe foi tornando
motivo de mais irritação.
Quisera encontrar impugnações
varonis que lhe desbaratassem os caprichosos e premeditados argumentos e dessem
curso diferente aos pensamentos. A
increpação de injusta que lhe irrogava a própria consciência foi-se curiosamente
transmudando em propósito formal de Antenor para afirmar cada vez mais o
assinalamento da sua superioridade.
E tudo isto, que se desenvolvia
lenta e gradualmente nos recessos mais recônditos da alma, em vez de
desvendá-lo com leal e nobre franqueza ao esposo, conforme tanto prometera, incobria-o
acautelada, possuída talvez do vexame de si mesma.
Por tal forma, porém, serena a
superfície do formoso lago, que ninguém
poderia sequer desconfiar das correntes encontradas que se moviam
nas profundezas da massa liquida. No exterior,
tão somente toques de sensível melancolia, sombras, embora leves, como que de
longínquas nuvens a perpassarem adelgaçadas sobre o disco do sol.
Nessas duvidas e agitações,
conheceu Betina que já era mãe.
CAPÍTULO III
Terríveis os meses de gravidez.
Despertou vivaz, impetuosa, a imaginação
de Betina, sujeitando-a, em longas semanas de impossível descanso, a
agudo e assustador sofrimento.
Não pensava senão em desgraças e
morte, quando não era na perda completa da beleza, na insanável deformação do
corpo e dos encantos físicos, hipótese ainda mais intolerável ao conturbado espírito.
Desenvolvia Antenor, punha em
pratica todos os recursos da solicitude e da
paciência, da razão e do sentimento, para combater e dissipar essas
tétricas apreensões, que revestiam mil formas caprichosas e de feroz
nereustemia; mas, não raro, já no intimo se reconhecia cansado de tarefa tão
ingente, em que não lograva senão mui
parcialmente os justos fins.
Começava, aliás, a entrar-lhe a
convicção de que naquele enlace não se
dera, nem mais podia dar-se a sonhada e indispensável identificação das
duas naturezas, moral e física, e d’ai
razões de inquietação, embora cuidadosamente refreada e comprimida nas mais
vagas cogitações.
Zelava as menores aparências de
um estremecimento, que, apesar de toda a
sincera intensidade, no fundo o fadigava, desviando-o, com imperiosa e
constante exigência, dos estudos literários e das pesquisas filosóficas, que
lhe eram tão caros e tanto lhe haviam
antes amenizado e embelecido a existência. Verificava, então, com sobressalto,
que se enganara, ele também, havendo já de muito passado a idade, transposto os limites, em que a mulher
é absolutamente tudo, o ídolo, o culto exclusivo, a origem, o centro dos mais
extraordinários e absorventes sacrifícios e dedicações. Amava, de certo,
profundamente a esposa, de cuja posse
experimentava tanta ufania, mas quisera nela encontrar uma fonte de
levantadas inspirações intelectuais, e
não uma causa de perene perturbação, a girarem ambos n’um circulo de apertadas
idéias, sempre as mesmas e sempre a renascerem, quando pareciam desvanecidas e
até sufocadas.
No meio de todos os sustos e
terrores, um consolo tinha Betina; a inabalável certeza de que o filho (pois
obrigatoriamente, no seu entender, havia de ser um menino) traria dos mundos
desconhecidos gênio e beleza irresistíveis, destinado, como devera ser, a futuro raro, bem raro, nos
anais dos fados humanos. E com a exageração que em tudo punha, uma vez abertas
as azas á imaginação, já o via no pináculo da glória, cercado de resplendente
aureola, ilustrando de modo ofuscador o nome dos pais, guindado ás mais altas e
cobiçadas posições sociais. Que poeta
havia de ser, que orador e estadista! Ninguém o sobrelevaria em
talentos, majestade e formosura, além da inata distinção. Com a singular
condescendência de mãe, aprazia-lhe ao pensamento a idéia de que mulher alguma
poderia resistir á sedução de ente tão
superior.
Nasceu, com efeito, um menino;
porém, só em parte realizava as douradas
esperanças; se tinha notável correção e delicadeza na graciosa miudeza
dos traços fisionômicos, pela debilidade geral e melindrosa complexão mostrava
que não viera á luz apercebido dos meios
para as lutas da vida. Pode, graças a cuidados nunca vistos, resistir ou antes definhar uns treze
meses; mas afinal partiu para o céu. Nem
havia como prendê-lo por mais tempo á terra.
Indescritível a dor de Betina.
Esteve entre a vida e a morte e quase acompanhou o filhinho. Vencida, por fim,
a agudeza da crise, que não pouco durou, de todo o crudelíssimo período lhe
ficou singular impressão, o direito de irrogar; lá de si para si, formal acusação ao marido. A ele
incumbia Ter incutido alento e força,
valentia orgânica e vitalidade ao ente que haviam criado, a ela beleza e
graça; e se um cumprira a sua missão, o outro ficara muito aquém. E ai,
refletia com pungente insistência na
diferença de idade, que lhe haviam todos, anos antes, apontado como irreparável
desacordo, emergindo dessa dolorosa meditação medo imenso de ver renovados os desenganos e as provações da
maternidade.
Com a injustiça própria do
caráter humano, achou que a resistência de
Antenor não fora, por egoísmo, bastante leal e vigorosa; talvez mais um
meio de fortalecer e acender pela contrariedade
o capricho e a teimosia, as violências da imaginação, o amor de cabeça, em
suma, que a levara ao casamento. Fazia-se então de vitima imolada ao interesse
de outrem. Fuzilavam-lhe até na mente feias e deprimentes conjecturas que,
indignada consigo mesma, buscava a todo o transe abafar e reprimir. Quem sabe
se aquele homem... aquele velho, não havia
particularmente visado á sua fortuna, aos bens que lhe constituíam
quantioso dote?
E, apesar de todo o empenho em
desviar-se desse resvaladiço declive, via-o sempre aberto á meditação, a
atrair-lhe os passos, tão fácil é a insuflação de malévolo pensamento, perigoso
gérmen, pronto logo a crescer e deitar fundas raízes.
Por esse tempo, julgou Antenor
dever recorrer á agitação da sociedade para
dar derivação e lenitivo á acabrunhadora tristeza da mulher. Não foi,
porém, sem custo quer conseguido arrancá-la ao marasmo e levá-la a bailes,
teatros, concerto e festas.
Como radiosa e incomparável
revelação apareceu então Betina aos olhos do
mundo, realçada a peregrina beleza pela simpática melancolia, que lhe
ensombrava o demasiado fulgor. Surpresa e um tanto ourada do movimento que
tamanho contraste fazia com o modo de
viver passado, docemente a acariciaram logo as homenagens de que se viu
jerarquia, já, e ainda mais, pela admiração dos homens.
Também, em pouco tempo, mão grado
as relutâncias do marido que via
ultrapassado o objetivo colimado, entregou-se ela de todo ás complicadas
e intermináveis imposições da convivência social, sem mais se importar com as
censuras tácitas de Antenor bem acentuadas pelo cansaço físico, que a este não
era mais dado ocultar.
De volta de brilhante baile,
prolongado até a madrugada, nesse mesmo dia
havia que tomar-se parte em pomposo e longo banquete e, logo depois
seguir para algum teatro ou concerto, em
que se tornava obrigatório o comparecimento de todo o high-life
– uma roda viva, enfim!
Para longe, a tranquilidade do
lar, as horas plácidas, iguais, mas tão suaves, consagradas ao sossego a ás
doces expansões da vida interna e de família! Com avassalador despotismo e no meio do ruído e de
mil leviandades, era agora o mundo que
regulava a vertiginosa existência daqueles dous entes, mal lhes dando tempo para respirarem.
A Betina, de certo, não faltaram
adoradores que sem rebuço, aspiravam á sua
conquista, tributando-lhe incessante e entontecedora côrte. Conservou-se, porém,
superior a todas as tentativas e a qualquer desfalecimento e, em certa ocasião,
chegou a entregar ao marido cartas de um dos seus mais ardentes apaixonados, escritas com a sincera eloqüência
de um sentimento veemente, incoercível.
Nessa difícil e delicada
emergência, procedeu Antenor com tão imediata decisão, tanto tino e melindroso
apreço dos seus direitos e interesses, que granjeou os aplausos gerais da sociedade
e mais se levantou na estima de todos. Ficou-lhe grata a esposa por tê-la
desembaraçado tão jeitosa e energicamente daquela comprometedora assiduidade, que do seu lado
repelira com toda a altivez.
Nem por isto, porém, cedeu menos
ao arrastamento dos bailes e das soirées.
Numa dessas noites, foi que, pela
primeira vez viu e conheceu Fernando de Aguiar,
há pouco chegado da Europa. Apresentado por uma amiga entre duas quadrilhas, com ele dançou umas voltas de
cerimoniosa valsa e trocou algumas palavras
indiferentes.
Sem saber pelo que, porém,
sentiu-se toda perturbada, com repentino aperto, quase dor, de coração,
angustiada, como que presa de grave e indefinível mal e deu-se pressa em
regressas á casa. Deitada, só pode conciliar agitados momentos de sono, quando os raios da aurora
acariciaram doce e palidamente as janelas do seu belo e senhoril palacete de
residência.
CAPÍTULO IV
Para Betina começou então uma
existência de continuo suplicio. Invadira-lhe o ser
todo, de repente, de momento, como cidade tomada de assalto, por
indomável horda, a mais violenta paixão, um d’esses movimentos de irrefreável
impetuosidade, que não consentem a menor
resistência, um só minuto de reflexão, a mais simples contrariedade, a mais leve objeção intima. Era
cousa fatal, infalível, que se impunha como
ordem sobrenatural, a que não havia senão curvar-se e obedecer.
Imagine-se vasta represa de água,
cujas falhas no muro de sustentação quase
lineares e invisíveis de súbito de abrissem como brechas enormes, deixando que toda a massa liquida irrompesse louca,
devastadora, em ondas, catadupas e medonhos torvelinhos.
Tanto buscara ela outrora estudar
o arrastamento que a pouco e pouco, passo a passo, a levara aos braços de
Antenor, tanto analisara em todas as faces a meiga influição d’aquele doce afeto, declive
caro aos seus instintos, quanto, agora, impossível lhe era ter mão no
pensamento, guiá-lo, dirigi-lo e calcular qualquer das conseqüências desse novo e tão diverso
sentimento.
Amava porque amava, não achava
outra razão; vassalagem a uma lei de irresistível império e lei como que meramente
física, pois se afirmava pela dor acerba,
teimosa, intolerável, no organismo todo, — pontadas, sobretudo, finas, agudas,
terebrantes no coração, a penetrar-lhe as fibras mais secretas, sufocações que quase a faziam desmaiar, a sós, no fundo
do seu quarto, ardendo em febre e rolando
convulsamente sobre o leito, que lhe não dava um instante de repouso.
Era todo o seu corpo presa de
verdadeiro abrasamento, arredada da conturbada
e estupefata mente qualquer lembrança que não fosse ele, só ele! Não queria, ou
antes, não podia examinar, por pouco que fosse, a origem de tamanha absorção, esse aniquilamento de toda a posse
sobre si mesma, ficando-lhe vedado indagar se Fernando de Aguiar valia tanto,
tanto assim e porque acendera tão violentas chamas.
De certo, não tinha o ideal de
tão ardentes sonhos nada que o salientasse particularmente do comum dos homens,
nem sequer o físico, mais para o insignificante e o vulgar do que para a
excepção. Ah! Sim, possuía a mocidade, e d’ela emergia pujante, vitorioso, como
um hino de saúde e força, esses prestigio imenso que Betina, anos atras,
capitulara de simples banalidade da juventude. De quanta posse, porém, essa pretendida
banalidade! Que de regalias e privilégios na encantada primavera que floresce uma vez só e
não mais se renova e volta! O brilho vivo, cintilante, dos negros olhos de
Fernando de Aguiar, bem rasgados e um tanto audazes, o acetinado da cútis, a
arrogância do sedoso bigode arqueado sobre os lábios rubros e úmidos, valiam então mais, mil
vezes, do que os mais belos versos e as palavras mais doces e convincentes de
Antenor, veladas pela melancolia dos anos já passados.
Ai era o coração que decidia,
entorpecidos a razão e o raciocínio, naquela dolorosa e acabrunhadora hipnose.
E cada vez mais se acentuavam os
sofrimentos físicos de Betina, cuja saúde começou a ressentir-se seriamente de tamanhos
abalos. Emagreceu, tornou-se misteriosa, concentrada, numa constante e
tristonha passividade, quer em casa, quer no turbilhão das festas. E se não
fugia d’elas, era unicamente para poder ver e encontrar o objeto do tresloucado amor,
empenho tão claro e insistente que a sociedade
e o mesmo Antenor afinal não poderão deixar de nele reparar.
Ruía por terra antes as vistas,
desiludidas para todo sempre, o edifício da felicidade que julgara poder
levantar, ainda que nos alicerces tivesse, com a observação das cousas humanas,
entrado, desde principio, certa descrença e algum desalento. Buscou medir a extensão do mal,
mas, á primeira tentativa, não ousou aprofundá-lo. Recolheu-se então, como
ultima salvaguarda e recurso extremo, á proteção de uma idéia fixa — a
impossibilidade de vir a perigar a sua honra.
Tudo quanto se passava não iria
além de um capricho da exaltada imaginação
de Betina. Oh! Bem conhecia do quanto era capaz! Não tardaria, porém, muito e cairia em si, abrigando-se á segurança
do lar, pronto para acolhê-la no arrepiar carreira em senda de leviandades, já
um tanto comprometedoras.
Fatos anteriores davam-lhe bem
segura garantia.
Não fôra tão espontânea a entrega
daquele maço de cartas? E tratava-se então de um cavalheiro distinto, hábil, de
inteligência reconhecida, com grandes recursos
de espírito e de salão e não poucos hábitos de sedução, ao passo que Fernando de Aguiar... qual! Que absurdo! Um
ente tão fútil, tão nulo! Não, aquele entusiasmo não repousava em base alguma,
tinha que desaparecer tão facilmente como havia surgido, por mero erro de
apreciação: abusões dissipados sem esforço algum, á maneira de névoas que
ensombram formosa paisagem, sem poderem obscurecê-la.
Ah! Quanto se enganava a
experiência d’aquele homem!
Em certa manhã, desapareceu Betina
do seu rico e senhoril palacete de residência. Havia, rompendo com todos os
deveres e princípios, tomado passagem num
vapor transatlântico e fugido com o amante para a Europa.
A corajosa altivez com que se
portou então o infeliz marido, a energia com que tratou de vencer e recalcar
sua dor e repelir de si o imerecido labéu, o pronto divorcio que conseguiu,
destacando o intemerato nome do da culpada esposa, a quem, sem demora, mandou
entregar, com a mais escrupulosa exatidão e minudência, os bens que havia trazido consigo,
tudo isso, praticado sem a mais ligeira hesitação ou sombra de céptica
jactância, impediu que o ridículo de leve salpicasse a levantada personalidade de
Antenor. E para mais erguê-lo no conceito publico, meses depois, publicava um livro da
mais ampla esfera moral, que girava, mais
ou menos, em torno da melindrosa tese que lhe fôra peculiar; e ai o escalpelo imparcial
e cuidadoso do analista tudo dissecara,
fazendo justiça inteira a quem tinha ou
não tinha por si a razão e o direito; obra de cunho verdadeiramente original e
escrito por pena vigorosa, mas d’onde por vezes decorrera muito pranto amargo.
Guardavam-lhe ainda o travo não
poucas páginas.
Quanto á Betina, meses após o
irreparável ato de loucura, via-se a braços, com o mais cruciante
arrependimento.
Extinto o fogo da paixão, como
sempre acontece, tinha de suportar vencida e humilhada, as conseqüências da posição
equivoca a que se atirara, mas que o mundo jamais perdoa, ao lado de quem
brutalizando-a logo, malbaratava a fortuna, que não lhe pertencia, no jogo e
com as mulheres de ocasião.
Dentro em breve, reconhecia que
para Fernando de Aguiar tornara-se peso quase inaturável.
Quantos golpes, a todos os
momentos do dia, no seu orgulho, anos antes tão suscetível e tirânico!
Diante da miséria se abria longo,
indefinido, interminável, um futuro árido, medonho, sinistro em todo o seu
mistério, como ilimitado deserto, sem uma sombra, uma fonte, uma arvore, o menor lenitivo ás
agruras de martirizante viagem, para no fim encontrar, como terminação de
indizíveis agonias, a morte, só, desamparada, motivo de chacota e de desprezo,
repelida por todos!
Desgraçado destino! Dia e noite
chorava sobre si mesma todas as lagrimas da sua alma, tão mal guiada, já pela cabeça,
já pelo coração!...
---
Nota:
Visconde de Taunay: "Ao Entardecer" (1901)
---
Nota:
Visconde de Taunay: "Ao Entardecer" (1901)
Nenhum comentário:
Postar um comentário