SALVADOR
E MADALENA
Madalena
e Salvador não se encontraram senão duas vezes. Neste intervalo reside o
romance de toda a sua vida!
Ao
avistarem-se, da primeira vez, tudo parecia dizer esperança; ao separarem-se,
parecia tudo dizer amor! Ai de mim! Da segunda vez que se juntaram, quase um
ano depois, já se sentia o desgosto no olhar lutuoso que acompanhou as raras
frases que trocaram, e, ao apertarem-se — desta vez, que foi a última —, havia
tristeza no ar, e respirava-se morte!
Esta
história é a mais singela, a mais inocente, a mais natural do mundo, e todavia
a mais inacreditável dele: é a história de dois amantes.., em que nenhum deles
era enganado pelo outro!
Erro
infinito de amor, que se esquece às vezes de ser inverossímil,
descuidando-se.., até o sublime!
Nos fins
do inverno de 58, num dos últimos bailes do clube, Salvador, que principiava a
enfastiar-se, resolveu dançar. Formava-se uma quadrilha, e o mancebo espalhou a
vista pela sala, com a característica expressão dum homem perplexo. Ouviu então
uma voz possante e nervuda, duma afetação requebrada, presumida e ridícula, que
lhe disse:
—
Procura-me, sr. Salvador?
O
mancebo inclinou-se diante da baronesa de Vila Marim, senhora de 30 anos, se é
que não tinha 50; destas mulheres sem idade, cujo tipo viril desmente o encanto
do sexo amável: alguma coisa de masculina Safo, sem o olhar inspirado da
poetisa de Lesbos: fisionomia dilatada, difusa... prolixa: pele bexigosa, como
uma carta geográfica: ares presunçosos duma criatura que nasceu burguesa e
donzelona., que a fortuna procurou debalde tornar aproximável, e que se fez
beata, dando-se a Deus por não achar pecador a quem se desse! Salvador
estremeceu, à idéia de ir dançar com este enxerto de tambor-mor!
—
Procurava-a sim! — respondeu, aproveitando uma inspiração. — Ia pedir-lhe para
fazer companhia à minha prima, durante esta quadrilha, que vou dançar com minha
irmã!
—
Impossível! — retrucou a virago, no seu tom intrépido. — Estou acompanhando esta minha amiga, que se
obstina a não dançar esta noite!
Salvador
volveu a vista para uma senhora, que se achava, efetivamente ao lado da sua
interlocutora e, Deus santíssimo! dir-se-ia que renasceram nesse instante as
paixões súbitas, que com as xácaras e baladas pareciam haver fugido da terra! O
seu olhar fixou uma pálida fronte de mulher, cuja fisionomia, de expressão serena
e poética, prometia à alma um mundo ignorado de expressões e segredos!
— É a
senhora condessa de Foyos, a quem tenho querido apresentá-lo tantas vezes!
Lembra-se? — disse a granadeira com os seus ares pomposos... de guarda de
honra!
Salvador,
sacrificado por esta grosseria, mordeu levemente o bigode:
—
Senhora condessa — disse depois —, sinto agora o que houve de imprudência, em
não ter adivinhado mais cedo de que prazer seria para mim ganhar o conhecimento
de V. Exa.!
A
condessa inclinou levemente a fronte, com uma expressão delicada, suave e
afável. Era uma fisionomia de mulher que sofre, em que se desencerrava uma alma
expansiva que tinha necessidade do infinito, devorando-se em sonhos febris e
perigosos no centro desta sociedade de cifras, que só cuidava de lhe averiguar
a fortuna!
Salvador
trocou com a condessa algumas simples frases. Que foram simples, é certo: se
triviais, não sei; é de crer que não, porque ambos eles — diga embora o leitor
que isto é absurdo, falso, incrível! —, porque ambos num rápido sentimento de
atração adivinharam que iam amar-se. E as palavras, por estas ocasiões, são de
um valor, de um alcance, de um futuro, Deus piedoso! E a tíbia hesitação do
amor, que não nos deixa nunca dizer tudo, e refere mais do que tudo que disséssemos!
A cada frase balbuciante e tênue, não respondem então os olhos, mas o
coração... E não é a curiosidade, e não é o desejo... E a esperança! é o
exórdio do amor!
De que
falaram eles? Para que dizê-lo, se falta o olhar e a voz que o estilo não pode
dar! Disseram qualquer coisa. Frases do baile: frases em que o intervalo é
tudo; porque o silêncio, então, diz mais ainda. Que olhos, sedutores de luz e
de fogo, os da condessa! Que cabelos negros e magníficos, em roda da sua
máscara de mármore! Que nobreza no perfil distinto e altivo dessa fronte
graciosa! Pálida e serena, fixava a vista naquele turbilhão de gente ávida de
Lanceiros, de sorrisos, de apertos de mão, de diálogos de instante —
felicidade, que ao primeiro alvor da madrugada empalidece como a luz do gás!
Depois baixava ainda mais o olhar, pregava-o vagamente num e outro objeto, com
a expressão sincera de uma alma melancólica que se esquece das vaidades do
mundo. Desconfio muito dos olhos que à falta do céu, procuram o teto e se
contentam com o fixar!
A música
devia produzir-lhe alguma grande comoção porque parecia fasciná-la
mergulhando-a no sonambulismo; as feições iluminavam-se-lhe por uma luz
interior, e os seus lábios encetavam num vago sorriso, como uma boca adormecida
que sorri às visões de um sonho... Creio que nessa hora o mundo desaparecia
para ela , se a sala do clube se devorasse num incêndio, continuaria a
arrolar-se nas ondulações da harmonia, até que a chama viesse queimar-lhe o
gaze das suas mangas...
A
concorrência era extrema. Estava reunida ali a elegância mais pura à nobreza
mais antiga. Realezas acatadas pela beleza, ou pelo espírito: celebridades de
todos os gêneros: ilustrações, cujo direito de império nasce do brilho dos
olhos, do alvejar dos dentes, do negrume de cabelos, da airosidade de formas,
do encanto de conversação, ou da melancolia insinuante de um silêncio que se
deixa adivinhar. Um paraíso de mulheres, de música, e de flores!
No meio
deste baile a aparição da condessa tinha alguma coisa de singular. À semelhança
das flores de um buquê, as senhoras num baile, quando a concorrência é imensa,
não podem todas ser vistas de improviso: mesclaram-se os lírios e as rosas,
ainda que a palidez de uns perto da rubra cor das outras deva engrandecer-lhes
a beleza. E todavia a condessa distanciava-se e era vista. Seria por freqüentar
raramente a sociedade, por viver afastada dela, e alcançar nessa noite os
primeiros triunfos da novidade? Acusava o vestuário dela as pretensões
excêntricas da província, quando tenta fazer-se notar em Lisboa? Ou era a sua
beleza de um tão especial assombro, que prendesse o olhar, atraindo-o, no
instante em que a fixavam?
Não sei
se era mais formosa; sei que era diferente das outras; sei que havia
especialidade, originalidade, singularidade naquela fronte que recordava o
gênio grego!
Dois
anos antes dessa noite, a condessa sofrera o dúplice golpe da morte de seu pai
e de uma irmã. Sob o peso de um desgosto profundíssimo, fora procurar refúgio
para a companhia da marquesa de Eyras, que ainda era sua parenta, e amiga
constante da sua família. A casa da marquesa era em Miragaia, e a condessa
deixou Lisboa desesperando talvez de encontrar jamais a felicidade! Durante a
vida de seu pai, Madalena sacrificara à obediência filial a sua existência e o
seu destino, que o egoísmo paterno afastara de todos os afetos que não se
concentrassem na família. Esta vida torturada, sufocada, aflita disfarçara-se
aparentemente pelas graças de uma amabilidade de índole, que lhe dava o aspecto
de uma criatura feliz. As lágrimas do desconforto e da angústia soltavam-se-lhe
apenas nas longas noites de insônia em que, a sós com Deus e a sua consciência,
parecia pedir perdão à sua alma da amargura a que tentava condená-la!
No dia
em que expirou seu pai, Madalena tinha 25 anos, e, se para o espírito há idade,
o seu espírito.., tinha 30!
Não era
a mulher que conhece a vida, mas a mulher que a divisara através de um véu de
lágrimas! A desgraça é uma doença cruel, que tem o ímpio condão d nos fazer
adivinhar tudo que lá na existência de triste e de miserável! A condessa, que
não conhecia o mundo, adivinhou-o e criou-lhe medo: no dia em que seu pai lhe
faltou, ela perguntou à sua alma o que desejava, e a sua alma calou-se! A velha
duquesa disse-lhe uma vez, entre dois abraços:
— E de
recear para mim, que a tua companhia pouco tempo me dure! Tens 25 anos, e a
sociedade acha-te formosa! Quem te merecerá, Madalena?!
A
condessa sorriu com um leve ar de melancolia e um gesto desdenhoso e altivo
pareceu responder: — Ninguém!
Que
significava isto, pois? Era porventura uma alma fria que desconhecia o amor,
uma alma aflita que renegava dele, ou uma alma prudente que procurava
fugir-lhe? A duquesa dispôs debalde de toda a vasta perspicácia do seu fino
instinto de fidalga velha; ao fim de dois anos de intimidade, apenas alcançara
a convicção de que Madalena tinha pelos homens uma medíocre estima, senão
antipatia absoluta!
— Em que
tempo vivemos! — ponderava a si própria esta nobre dama, que florescera no
reinado da senhora d. Carlota Joaquina. — Em que tempo vivemos, para as meninas
de 25 anos terem os olhos vivos e a alma extinta!?
Uma
carta da baronesa de Vila Marim instou muito com a condessa, nessa ocasião,
para vir passar um mês em Lisboa na sua companhia. A instâncias da mtrquesa,
que esperava que esta estada na capital desse ao espírito de sua sobrinha um
novo curso de idéias, e uma feição nova de caráter, Madalena veio de visita à
sua amiga baronesa, com quem o leitor a avistou no baile.
— E parte, decididamente amanhã? — disse Salvador
à condessa, continuando um diálogo.
— Impreterivelmente!
—
Tenciona, porém, voltar no inverno próximo?
— Não
sei!
Foram
estas frases trocadas num tom rápido, como acusando que conheciam ambos a
necessidade de as dizer depressa. Depois, com voz humilde, o mancebo
acrescentou confuso, indeciso, ansioso:
— E
permitir-me-á V. Exa. escrever-lhe, a informar-me respeitosamente da jornada
que vai tentar?
Madalena
respondeu com uma simplicidade extrema.
— Por
que não?
Nesse
momento, Salvador viu sua irmã, que por um aceno mostrava querer falar-lhe: o
mancebo despediu-se por um instante das duas senhoras e foi ao encontro dela.
— Que
tens tu estado a conversar tanto tempo? — perguntou-lhe Maria Carolina, uma
menina de 16 anos, que aparecia nesta noite pela primeira vez em sociedade. —
Quem são aquelas senhoras?
— A
baronesa de Vila Marim! — respondeu Salvador, preocupado.
— A
baronesa de Vila Marim não é duas senhoras: quem é, pois? a outra?
— Dois
olhos magníficos!
— Dois
olhos... que se chamam?
— A condessa
de Foyos!
— Uma
fidalga de província?
— Uma
senhora, para toda parte!
— Estás
namorado, Salvador?
— Estou
tonto, Maria Carolina!
—
Precisas dançar. Aproveita esta valsa! Dá-me o teu braço.
— Achas
que faz bem ao coração dançar, Maria Carolina?
— Acho
que faz bem ao coração... fazer dançar sua irmã, Salvador!
— Tens
razão! E olha, é uma valsa de Strauss! A dois tempos!
— Ainda
bem!
Salvador,
no fim da valsa, volveu a vista para o sítio em que se achava a condessa, mas
os lugares das duas senhoras estavam desamparados. Haviam deixado o baile.
Já os
primeiros clarões do dia despontavam, e dançava-se ainda no clube. Eram seis
horas da madrugada, Salvador, numa das salas pequenas, encostado a uma mesa de
wist sem jogar, sem falar nem ouvir falar, pregava vagamente a vista nos
objetos que tinha em frente de si. O dia amanhecera lindíssimo, e suscitou-se
ali a idéia de partir do baile para Cintra. Um dos seus amigos instou muito
Salvador, para que se associasse; o mancebo procurou debalde recusar, porque
ninguém prescindia dele para uma festa em vendo probabilidade de o alcançar! Às
sete horas meteram-no numa caleche. Julgaram-no contrariado, ao princípio;
triste e enamorado, depois. Ao chegar a Cintra ele exigiu, primeiro que tudo,
um quarto: em seguida, desculpou-se’ com os seus amigos de não assistir ao
almoço: finalmente, pediu-lhes também que fossem passear sem ele.
— Mas é
então para isso que vens a Cintra?
— Sim —
respondeu Salvador, querendo dormir, e entrando para o quarto que pedira.
Então,
como os amigos de Salvador concluíssem que ele nem estava triste nem enamorado,
porém tinha sono, almoçaram e foram passear sem ele.
Se o
leitor ainda não fez 30 anos, adivinhou já que Salvador, tão depressa se
encontrou só no seu quarto do Victor, não quis dormir, mas... escreveu. Foi uma
extensa carta, das que dez vezes se principiam, dez vezes se riscam, dez vezes
se recomeçam. E possível que Camões não fizesse borrão para Os Lusíadas, mas
aposto que empregaria este cauteloso processo da epistolografia amorosa na
primeira carta que escrevesse a Catarina! Na nossa época mesmo, em que o estilo
é o passaporte literário dos escritores sem idéias, tendo visto estilistas, que
a nomeada aclama, tornarem-se pálidos de susto ao arredondar o primeiro período
de uma declaração amorosa.
E que
escrever uma carta de amor é puramente fazer literatura, e literatura da mais
difícil! Ser simples é parecer frio; ser verdadeiro é não saber redigir; ser
exato é parecer grosseiro! Mentir! Mentir ao acaso! Mentir de propósito!
Exagerar ridiculamente, escandalosamente, para ter ares de sincero! Ser
charlatão, para aparentar de sublime!
Alguns
dias depois, Madalena recebia em Miragaia a carta de Salvador. Era simples,
respeitosa, e de uma trivialidade que afetava o tom sincero. A condessa
respondeu a esta carta, por algumas vulgaridades também: que o mundo era
pequeno, que havia almas infelizes, que a idéia de Deus era aqui a única
esperança, etc., etc., etc.. A estas cartas seguiram-se outras; seguiram-se
muitas. O tom menor do estilo de Salvador principiou a avultar, e algumas
flores retóricas medrando. Ao fim de dois meses de uma correspondência curiosa
pela arte de ataque do mancebo, e arte de defesa da condessa, Salvador numa
carta permitia ao seu estilo este período gravemente arriscado:
“E para
mim uma coisa decidida e segura que há algum misterioso influxo que me vence e
me conduz para si!” Madalena respondeu que queria fugir-lhe, porque a sua alma
abatida e exausta não tinha que dar ao amor. — “Diz-me que tens sofrido!” —
ponderava o mancebo em resposta a isto. — Mas se eu não lhe tivesse lido nos
olhos e nas faces, pensa porventura V. Exa. que me haveria interessado assim? A
nobreza da existência é os sofrimentos. São, por assim dizer, ‘diplomas de
vida’!”
Havia
desde muito tempo entre Madalena e a baronesa de Vila Marim, uma
correspondência constante e ativa. A proporção, porém, que da parte da condessa
aumentou a efetividade de correio para Salvador, diminuiu para com a sua amiga.
Há apenas um ciúme mais violento e mais danado que o de uma mulher por um
homem, é o de uma mulher.., por outra mulher! A baronesa teve ciúmes de
Madalena, e conseguiu saber que era Salvador quem lhe roubava os extremos dela.
Foi uma luta surda e implacável, desde esse instante, e eu faço votos para que
Deus defenda o leitor de conhecer um dia as sensaborias de tal situação, se
cair no abismo de ter por concorrente ao coração de uma senhora... outra
senhora!
Mil
meios se empregaram, para impedir o nó desse amor: conselhos, insinuações, denúncias,
calúnias... Infelizmente, tudo isso chegou tarde, e já se amavam demais para se
abandonarem sem provas! Madalena disse apenas à sua amiga que a dispensava da
menor admoestação sobre este assunto; e, tempo depois, numa carta a Salvador,
escrevia-lhe: “Da nossa amiga baronesa, tenho tido cartas duas vezes por
semana. Pode ser que tu gostes de saber se ela me tem falado em ti: nem mais
uma palavra. Eu, que nunca tive segredos para ela, não quero dar-lhe lugar a
dizer-me uma coisa menos agradável. A4nda que a fé que eu hoje tenho em ti te
proteja no meu conceito, não quero, se a minha ventura se aniquilar um dia, que
seja pela minha mão!”
Foi um
período de afetos• leais, que ambos atravessaram, como raramente é dado
experimentar neste mundo. Nos primeiros tempos, Salvador, que não adquirira a
convicção de que era amado, e a quem apenas guiava a veemência da sua
esperança, sentia-se a cada momento embaraçado pela sua timidez, senão pelo
misterioso terror que os homens de imaginação experimentam ao momento da
realização dos seus sonhos, e que não é mais do que o receio confuso de se lhes
quebrar o encanto! Mas depois! Quando o amor iluminou as cartas de Madalena,
que de sensações, que de ansiedades, que inquieta alegria, que felicidade
melancólica, única que é doce!
Ele saía
muitas vezes para Cintra sem o dizer’ a ninguém, sem o haver dito a si próprio
sequer uma hora antes de partir! Que ia lá fazer, assim de repente, no outono,
quando Deus não queria que fosse em plenos dias de inverno? Ora! ia escrever a
Madalena, respondendo-lhe a uma carta no meio da triste solidão das tardes do
outono no campo: havia sido em Cintra que pela primeira vez o fizera, em
nenhuma parte lhe sabia tão docemente à alma escrever de amor como ali! Não o
acusem, oh! não o acusem de pueril, porque o amor é, como a natureza, grande
principalmente nas coisas pequeninas!...
A
distância oprimia-o. Ele sonhava a cada instante com Madalena, e não a via
nunca! Teria de ser sua? Eis no que mal pensava, apesar de morrer por ela. O
presente era tudo para o seu coração, com as indecisas bonanças de momento. A
sua alma ardente precisava sofrer, para sentir que vivia. Pode ser que a
felicidade o enfastiasse!
As
cartas de Madalena incendiavam-lhe a inquieta aspiração ao impossível, que
nenhuma realidade satisfaz. Sentia-se poeta no seu amor, Madalena adorava-o, e
era adorada por ele. A sua imaginação empreendia o desenho de mil quadros
amenos. Em Cintra, ás noites, ao ver cintilar a neve da serra sob os raios
azuis da lua, sentia uma devoradora tristeza de não ter Madalena a seu lado
como Werther tinha Carlota, para embeberem as suas almas na contemplação da
natureza adormecida.
Estavam
ambos no mais belo período do amor. A esperança afagava-os com as suas brancas
asas! Eram felizes pelo presente e pelo porvir. Confiavam um no outro.
Foi
nesta ocasião que Salvador, procurando um jornal antigo, remexeu todas as
gavetas, e atirou para cima da sua secretária alguns dos papéis que lhe vinham
á mão.
Entre
esses papéis uma carta.
Uma
carta fechada, mas com o sobrescrito em branco.
Como o
leitor não tem muita pressa talvez, não vejo inconveniente em que eu explique
que esta carta havia sido escrita, muito tempo antes, a uma primadona do teatro lírico, a quem
Salvador fizera corte; como havia tido o destino de ser entregue mão por mão,
não tinha sobrescrito: e como não chegara a ser entregue, tinha voltado para
casa na carteira e fora lançada na gaveta donde agora se tirou. — “Amo-te” —
escrevia o mancebo á cantora, que ia partir; “amo-te e não amo mais ninguém,
porque só tu no mundo és digna de ser adorada; tu, que és a inspiração, tu que
és a harmonia, tu, que és o amor.” E continuava neste tolíssimo estilo,
enriquecido de juramentos pantafassudos e melodramáticos!
Depois
de encontrar o jornal que procurava, Salvador enviou-o ao seu destino, e pôs-se
a escrever a Madalena. No fim, fechou a carta, remexeu os papéis que estavam
sobre a mesa, a procurar o lacre, que finalmente achou; viu diante de si uma
carta com o sobrescrito em branco, escreveu: “Exma. sra. condessa de Foyos,
Miragaia,” E mandou para o correio.
Decorreram
alguns dias, sem o mancebo receber carta da condessa. Ao fim de uma semana,
numa noite em que Salvador recolhia do teatro, ao chegar a casa dirigiu ao
criado a clássica pergunta de cada noite:
— Veio
carta?
— Não,
senhor.
— E
alguém, veio?
Um moço
de almocreve, que trouxe uma caixa.
Salvador
entrou no seu quarto, abriu a caixa indicada, e encontrou.., as suas cartas a
Madalena.
Debalde
perguntou mil vezes a si próprio: Que significa isto? Procurou entre as dele
alguma carta da condessa, mas não vinha uma só letra dela? Esperou alguns dias
a explicação deste sucesso, mas a explicação não chegou.
— Não me
ama já! Que remédio lhe hei de dar!? O amor é um sentimento involuntário, que
vem sem se saber por que, e da mesma sorte foge! Ninguém tem culpa de já não
sentir uma atração! Capricho infinito de uma imaginação de mulher! Para que me
jurava então amor veemente e santo que me oferecia enquanto eu o quisesse?
Quebrar, sem um adeus nem uma saudade! Oh! em amor a coragem... é do que sente
menos!
Passou-se
mais de um mês nesta ansiedade, até que, de uma ocasião em que estava
inventariando os seus papéis, e varrendo a secretária de jornais antigos e
cartas inúteis, encontrou uma fechada e com o sobrescrito em branco. Esta
circunstância ganhou-lhe curiosidade de ler, antes de a atirar às chamas desse
auto de fé. Á primeira linha da carta, dizia: “Minha querida Madalena..”
A alma
de Salvador assombreou-se, num ruim presságio, de toda a vaga tristeza de
alguma grande desgraça.
— Poder
infernal do acaso! — exclamou. — Por que me adivinha o coração, que fui eu
próprio que criei a desventura de nós ambos?!...
Na
situação que o oprimia toda a esperança era inútil; todo o expediente,
impossível. A amargura devorava-o implacável, sem que no horizonte da sua
existência fulgisse um raio de luz; já não podia aspirar ao amor de Madalena,
porque aquela nobre alma julgava-se enganada!
Nem ele
procurava vê-Ia preferindo a resolução do Ícaro atirando-se ao mar, ao
sentir-se cair do céu, em vez de viver condenado a voar eternamente nas regiões
intermediárias!...
Uma
carta de um dos seus amigos do Porto preveniu-o, porém, neste momento que a
condessa estava ali. Era uma ocasião excelente de se encontrarem, e Salvador
não teve ânimo de a perder. Três dias depois chegava ao Porto, indagava
notícias da condessa, e alcançava saber, dali a instantes, que Madalena estava
nesse momento na rua Cedofeita, de visita à sua amiga d. Piedade. O mancebo
teve o tempo apenas de se vestir, e caminhar para lá.
D..
Piedade era uma dama de 40 anos: não é um crime: só os anos ficam sempre nos
15, por ser a idade eterna que lhes deu o Senhor, Vivia cercada de amigas;
criaturas enfastiadas, que iam entreter o dia com ela, e que diziam num tom
presumido e lânguido: — A roda do carro da vida saiu dos seus eixos; em que
havemos nós de ocupar-nos?!
Madalena
estava mal entre estas senhoras que aspiravam a ter estilo, porque só ela não
cuidava disso. O estilo de Madalena eram os seus olhos admiráveis de luz e de
encanto, o oval harmonioso da sua fronte, os seus braços elegantes, os seus
dedos longos e finos; o estilo de Madalena eram a beleza e a graça; o estilo de
Madalena era a doce serenidade do ideal antigo!
No
momento em que o criado anunciou o nome do Salvador, ela procurou debalde
ocultar a impressão que sentira. O mancebo, pela sua parte, traiu-se no momento
de a fixar. Também em que estado encontrava ele a condessa! Os olhos pareciam
ter perdido o brilho, e nos seus olhos já não resplandecia a fresca púrpura de
outrora! Extenuada, abatida, e de uma pau- dez sepulcral, Madalena era ainda
bela, mas bela como o anjo da morte; a sua magreza era tal, que um diadema lhe
serviria de cinto: ao vê-la mudar de atitude, cuidava a gente que ela ia
quebrar-se toda! Era a segunda vez que se encontravam, e — como eu o disse ao
leitor no primeiro período deste conto — havia tristeza no ar, e respirava-se
morte!
D.
Piedade, depois de apresentar Salvador às suas amigas, dirigiu a conversação
acerca de Lisboa, e pediu notícias dos espetáculos e bailes da capital.
— Oh!
imagine V. Exa. — respondeu o mancebo — que eu não vou aos teatros há perto de
um mês e aos bailes há perto... de um ano!
As
senhoras entoaram um grito de horror shakespeareano.
—
Lembro-me bem — continuou Salvador, dirigindo-se a Madalena, que permanecera
grave e séria — que foi justamente no último baile em que apareci que eu tive a
fortuna de fazer conhecimento da senhora condessa!
Madalena
estremeceu ligeiramente.
Ah!
conhecem-se de Lisboa? — exclamou d. Piedade.
— Sim! —
respondeu a condessa, erguendo-se — encontrei este senhor no clube.
— Que
fazes? Partes já?
— Sim,
minha amiga; a mágoa deve ser toda minha de não poder ficar mais tempo.
— Um
instante, apenas! Um simples instante!
— Não!
Não!
D.
Piedade olhou de lado para Salvador, que não despregava a vista da condessa, e
disse-lhe com um sorriso de intenção:
— Olhe,
sr. Salvador, quer ver o que a minha cara Madalena me fez a graça de escrever
no meu álbum?
A
condessa procurou impedi-la mas d. Piedade prosseguiu:
— Eu
pedia-lhe um desenho, mas isso fatigava-a muito e preferiu escrever.
— E
escreveu? — perguntou Salvador.
— Uma
simples frase! — acudiu Madalena, tomando o álbum de cima da mesa e
estendendo-o cautelosamente. — Queres fazer-me arrepender da minha imprudência,
Piedade?
—
Imprudência! Como, imprudência! Uma frase linda, menina! Uma frase linda, que
hás de consentir que eu leia!
A
condessa, cedendo, entregou o álbum.
— Depois
de eu partir! — disse ela.
Apenas
Madalena saiu da sala. Salvador travou do álbum, procurou a folha em que ela
escrevera, e leu, trêmulo, estas duas linhas:
A
desgraça tem conservado vidas, que a felicidade teria extinto!
O
mancebo não pôde impedir que os seus olhos se umedecessem de lágrimas, e ficou
por instantes contemplando estático a triste frase da condessa.
Quem
sabe se a tornaremos a ver — disse d. Piedade, espiando que impressão produziam
em Salvador estas palavras.
— A
condessa vai partir? — perguntou ele ansioso.
— Embarca
amanhã. Os médicos aconselham-lhe ficar algum tempo na ilha da Madeira, na
esperança de a salvarem ainda da afecção pulmonar que a devora!
O
mancebo conseguiu apenas reprimir o grito de angústia que lhe exalou do peito.
— Oh!
pobre Madalena! — disse ele à sua alma. — Pobre Madalena!
Salvador
procurou a condessa nessa tarde, mas não foi recebido. Escreveu-lhe, mas
devolveram-lhe a carta. Foi a bordo, na esperança de lhe falar, mas Madalena
recusou-se a vê-lo. O espetáculo das suas lágrimas distraiu d. Piedade, que
voltou a bordo no mesmo bote que ele contemplando com curiosidade a angústia
devoradora que o oprimia. Era uma senhora de espírito que se contentava em
avistar nos outros as paixões, as manias, e as misérias da existência
civilizada. Os horrores para ela eram a melhor das suas distrações, à
semelhança de certos casos raros e monstruosos, que fazem a alegria dos
naturalistas!
---
Nota:
Júlio
César Machado: “Contos ao Luar”, publicados originalmente em 1861, extraídos da
edição de 1974, da Editora Três, da Coleção “Obras Imortais da nossa
Literatura”
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