JESUS
A casa de José, o carpinteiro, em
Nazaré, ficava à margem do caminho que leva a Tiberíades. Pequena e humilde,
mais humilde parecia, ainda, pela ancianidade, e por não ser possível ao dono
reconstruí-la. Edificada por Jacó, primogênito de Matran, tornara-se, por morte
deste, propriedade do esposo de Maria, filha de Ana, da casa de Davi. E como o
carpinteiro já se encontrasse velho e alquebrado de forças, ia deixando que o
casebre se desmoronasse, açoitado pelos grandes ventos que sopravam no verão,
das bandas do golfo de Caifa, e no inverno, da alta cordilheira que orna o país
de Sichen. Sem cercas que a defendessem, era a casa rodeada de limoeiros, que
embalsamavam o ar, e que a afogavam, com a suas frondes de um verde escuro,
como punhados de manjericão em torno de uma rosa fanada.
Era à sombra de um desses
limoeiros José trabalhava, quando fazia bom tempo, manejando, trêmulo, o seu
serrote e a plaina primitiva. E era sob a copa de todos os outros que
brincavam, a manhã toda, e a tarde inteira, as crianças das casas vizinhas.
Atraídas para ali pela frescura do local, vinham elas, isoladamente, ou duas a
duas, ou três a três, com o seu perfil judaico, os olhos muito vivos e chegados
um ao outro, para as correrias habituais. Trazia-as, muitas vezes, João, filho
de Zacarias, antigo sacerdote do Templo, em Jerusalém. O senhor, entre elas, da
casa e dos limoeiros, era, porém, Jesus, filho do carpinteiro, mais moço do que
João quase um ano, e que era ainda seu parente, pois que Maria, esposa de José,
e Isabel, esposa do velho sacerdote, eram primas e, apesar da diferença de
idade, amigas e confidentes.
As duas famílias, a de Zacarias
como a do carpinteiro, traziam no espírito, constantemente, duas preocupações.
Segundo a palavra dos Profetas, o povo de Israel teria de cair sob o jugo do
estrangeiro, do qual o livraria, no entanto, um grande Rei, que viria
disfarçadamente à terra, com o sangue de Davi. A primeira parte das profecias
estava cumprida. Os sucessores dos Macabeus haviam ateado a guerra civil na
Judéia, e invocado, em certo momento, o auxílio dos romanos, que tinham
escolhido entre eles um rei, de nome Herodes, o qual reinava em Jerusalém. E a
outra, a mais grave e difícil, parecia, agora, em via de realização.
Efetivamente, nove anos antes,
achando-se Zacarias sozinho no Templo, em Jerusalém, incensando o altar, Ouvira
um ruído, que lhe parecera o de um grande pássaro em vôo. Volvera, lento, o
rosto, e estacara, surpreso. Diante dele, vestido de uma túnica diáfana, e que
parecia feita com o fumo do turíbulo, estava um mancebo de fisionomia
resplandecente, de cujas espáduas saíam grandes asas, e que lhe dissera, em
palavras sem mistérios, que sua esposa, Isabel, lhe daria, dentro de alguns
meses, um filho varão. Dissera isto, e desaparecera.
Suspeitando dos próprios olhos e
dos próprios ouvidos, duvidava o sacerdote do próprio entendimento. Se a
espôsa, na mocidade, não lhe dera um filho, como lho daria, agora, quando os
dois, ele e ela, já se sentiam velhos? Que fazer, pois, naquela emergência?
Narrar o sucedido? Contar à mulher, e aos íntimos, a ocorrência do Templo?
Melhor seria, talvez, não pecar pela palavra, quem já pecava, incrédulo, pelo
pensamento. E desse dia em diante, aguardando os acontecimentos de cada hora,
os seus lábios se selaram para o mundo, enquanto a sua alma se descerrava,
inteira, para os olhos de Deus.
Semanas depois, o mesmo Enviado
aparecia, belo e fulgurante, na casa do carpinteiro, em Nazaré. Levava àquele
outro lar uma notícia idêntica. Maria, esposa de José, seria mãe. e o seu
filho, neto de Reis, seria o Rei da Judéia.
De acordo com o anunciado, Isabel
tivera, em verdade, um filho, que tomou o nome de João. E Maria concebera
outro, que era, agora, essa triste criança, de seis anos, sob cujos olhos, de
uma estranha doçura, as outras vinham, de longe, brincar à sombra cheirosa dos
limoeiros.
Desde o nascimento do menino, em
Belém, quando iam àquela cidade para serem recenseados por ordem de Augusto, o
carpinteiro e a esposa se haviam convencido dos altos destinos do filho.
Daquele infante dependia, desde aquela hora, a sorte do Povo de Deus. Daí os
cuidados de que o rodeavam, a cautela com que o vigiavam dia e noite, o susto
com que acompanhavam as suas menores enfermidades. Naquele pequenito moreno, de
olhos claros e fisionomia meiga, estava, não apenas o filho único, mas o Rei;
não unicamente o rebento miraculoso de um casal que ia desaparecendo sem prole,
mas o Salvador de uma raça, prometido pelas profecias do fundo remoto dos
séculos.
Jesus havia nascido, entretanto,
tão alegre como os outros meninos de Nazaré. Ao se lhe enrijar o pequeno corpo,
de linhas modelares e puras, procurara correr, como os outros, e, como os
outros, subir às árvores, roubar o ninho aos pássaros, ou banhar-se no lago,
quando a família ia a Genezaré ou a Tiberíades. Mal, porém, tentava ia dessas
distrações infantis, a mãe acorria aflita, ou acorria o pai, preocupado,
detendo-lhe o gesto ou o desejo. E essa diferença de tratamento acordava-lhe
dúvidas no espírito e no coração. Por que, sendo o mundo tão vasto, e a vida
tão boa, só lhe não cabia, a ele, a alegria de ser livre como as crianças?
Aquelas ondas cariciosas do lago, e aqueles ninhos de rouxinol dos olivais,
teriam sido feitos unicamente para Mateus, filho de Marta, para Barnabé, filho
de Manassés, para Eleazer, filho de Josué, ou, mesmo, para João, seu primo, tão
violento que só procurava brinquedos de guerra, em que sempre saía vencedor?
Por que, ainda, a curiosidade de toda a gente, em torno da sua pessoa: o
sorriso de zombaria de uns, ao apontá-lo de passagem, e o respeito comovido de
outros, - alguns dos quais chegavam, até, a ajoelhar na poeira dos caminhos
para beijar-lhe, chorando, a fímbria grosseira da túnica?
Sob os limoeiros copados, cujas
ramas, aqui e ali, roçavam o chão, as crianças brincavam, correndo em
algazarra, simulando combates de judeus e romanos. Por cima das ramagens, o céu
era todo azul e ouro, e uma brisa fresca soprava, como uma carícia, das bandas
do lago. Balouçado por ela, o limoal escrevia em hebraico, aqui e ali, no solo
pedregoso, com letras de luz abertas na sombra, pequenos poemas misteriosos.
Tudo era, em torno, festivo e jovial. As próprias aves, tontas de luz, cantavam
mais alto.
Sentado junto ao muro limoso de
um poço, Jesus, ele só, estava triste.
— Pai, — havia pedido, momentos
antes, ao carpinteiro, — deixa-me brincar com os outros!
— Não, meu filho; não podes, —
respondera, paternal, o ancião, passando a mão trêmula e rude pelos seus
cabelos castanhos. — E se caísses, em uma dessas correrias, que seria de nós, e
do teu Povo?
Aquelas palavras eram, para ele,
um mistério. Que significavam elas? Que Povo era esse, que era seu, e que ele
não conhecia?
Os seus olhos, doces, e mansos,
encheram-se de sombra. Uma lágrima correu, lenta e límpida, parando aqui e ali,
pela sua face morena, vindo deter-se ao canto da boca miúda, pondo, nela, um
desagradável gosto de sal.
Jesus de Nazaré começava a
sofrer, nesse dia, a tristeza de ter nascido Deus...
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Nota:
Humberto de Campos: "O Monstro e outros contos" (1932)
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