sábado, 31 de agosto de 2013

Antônio de Alcântara Machado: "O Lírico Lamartine"

O LÍRICO LAMARTINE

(Desembargador Lamartine de Campos)


Desembargador. Um metro e setenta e dois centímetros culminando na careca aberta a todos os pensamentos nobres, desinteressados, equânimes. E o fraque. O fraque austero como convém a um substituto profano da toga. E os óculos. Sim: os óculos. E o anelão de rubi. É verdade: o rutilante anelão de rubi. E o todo de balança. Principalmente o todo de balança. O tronco teso, a horizontalidade dos  ombros, os braços a prumo. Que é que carrega na mão direita? A pasta. A divina  Têmis não se vê. Mas está atrás. Naturalmente. Sustentando sua balança. Sua balança: o Desembargador Lamartine de Campos. 

Aí vem ele.

Paletó de pijama sim. Mas colarinho alto.

— Joaquina, sirva o café.

Por enquanto o sofá da saleta ainda chega para Dona Hortênsia. Mas amanhã? No entanto o desembargador desliza um olhar untuoso sobre os untos da metade. O peso da esposa sem dúvida possível e o índice de sua carreira de magistrado. Quando o desembargador se casou (era promotor público e tinha uma capa espanhola forrada de seda carmesim) Dona Hortênsia pesava cinqüenta e cinco quilos. Juiz municipal: Dona Hortênsia foi até sessenta e seis e meio. Juiz de  direito: Dona Hortênsia fez um esforço e alcançou setenta e nove. Lista de  merecimento: oitenta e cinco na balança da Estação da Luz diante de testemunhas. Desembargador: noventa e quatro quilos novecentas e cinqüenta gramas. E Dona  Hortênsia prometia ainda. Mais uns sete quilos (talvez nem tanto) o desembargador  está aí está feito Ministro do Supremo Tribunal Federal. E se depois Dona Hortênsia num arranque supremo alargasse ainda mais as suas fronteiras nativas? Lamartine  punha tudo nas mãos de Deus.

— Por que está olhando tanto para mim? Nunca me viu mais gorda?

— Verei ainda se a sorte não me for madrasta! Vou trabalhar.

A substância gorda como que diz: Às ordens.

Duas voltas na chave. A cadeira giratória geme sob o desembargador. Abre a pasta. Tira o Diário Oficial. De dentro do Diário Oficial tira O Colibri. Abre O Colibri.  Molha o indicador na língua. E vira as páginas. Vai virando aceleradamente. Sofreguidão. Enfim: CAIXA DO O COLIBRI. Na primeira coluna: nada. Na segunda:  nada. Na terceira: sim. Bem embaixo: PAJEM ENAMORADO (São Paulo) — Muito  chocho o terceto final do seu soneto      SEGREDOS DA ALCOVA.  Anime-o e volte querendo.

Não?

Segunda gaveta à esquerda. No fundo. Cá está.

Então beijando o teu corpo formoso
Arquejo e palpito e suspiro e gemo
Na doce febre do divino gozo!

Chocho?

Releitura. Meditação (a pena no tinteiro). Primeira emenda: mordendo em  lugar de beijando.

Chocho?

Declamação veemente. Segunda emenda: lebre ardente em lugar de doce febre.
  
Chocho?

Mais alma. Mais alma.

A imaginação vira as asas do moinho da poesia.


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Nota:
Alcântara Machado: "Laranja-da-China" (1928)

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