A DAMA PÉ-DE-CABRA
TROVA PRIMEIRA
CAPÍTULO I
Vós os que não credes em bruxas,
nem em almas penadas, nem em tropelias de Satanás, assentai-vos aqui ao lar,
bem juntos ao pé de mim, e contar-vos-ei a história de D. Diogo Lopes, senhor
de Biscaia.
E não me digam no fim: —
"não pode ser." — Pois eu sei cá inventar coisas destas? Se a conto, é porque a li num livro
muito velho. E o autor do livro velho leu-a
algures ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral em seus
cantares.
É uma tradição veneranda; e quem
descrê das tradições lá irá para onde o
pague.
Juro-vos que, se me negais esta
certíssima história, sois dez vezes mais
descridos do que S. Tomé antes de ser grande santo. E não sei se eu
estarei de ânimo de perdoar-vos como Cristo lhe perdoou.
Silêncio profundíssimo; porque
vou principiar.
CAPÍTULO II
D. Diogo Lopes era um infatigável
monteiro: neves da serra no inverno, sóis dos estevais no verão, noites e
madrugadas, disso se ria ele.
Pela manhã cedo de um dia sereno,
estava D. Diogo em sua armada, em monte selvoso e agreste, esperando um porco
montês, que, batido pelos caçadores, devia dar naquela assomada.
Eis senão quando começa a ouvir
cantar ao longe: era um lindo, lindo cantar.
Levantou os olhos para uma penha
que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dama: era a
dama quem cantava.
O porco fica desta vez livre e
quite; porque D. Diogo Lopes não corre, voa para o penhasco.
— Quem sois vós, senhora tão
gentil; quem sois, que logo me cativastes?
— Sou de tão alta linhagem como
tu; porque venho do semel de reis, com o tu senhor de Biscaia.
— Se já sabeis quem eu seja,
ofereço-vos a minha mão, e com ela as minhas terras e vassalos.
— Guarda as tuas terras, D. Diogo
Lopes, que poucas são para seguires
tuas montarias; para o desporto e folgança de bom cavaleiro que és.
Guarda os teus vassalos, senhor de Biscaia, que poucos são eles para te baterem
a caça.
— Que dote, pois, gentil dama,
vos posso eu oferecer digno de vós e de mim; que se a vossa beleza é divina, eu
sou em toda a Espanha o rico-homem mais abastado?
— Rico-homem, rico-homem, o que
eu te aceitaria em arras coisa é de
pouca valia; mas, apesar disso, não creio que mo concedas; porque é um
legado de tua mãe, a rica-dona de
Biscaia.
— E se eu te amasse mais que a
minha mãe, por que não te cederia qualquer dos seus muitos legados?
— Então, se queres ver-me sempre
ao pé de ti, não jures que farás o que dizes, mas dá-me disso a tua palavra.
— A la fé de cavaleiro, não darei
uma; darei milhentas palavras.
— Pois sabe que para eu ser tua é
preciso esqueceres-te de uma coisa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino
e que, estando para morrer, ainda te
recordava.
— De que, de que, donzela? Acudiu
o cavaleiro com os olhos chamejantes. — De nunca dar tréguas à mourisca, nem
perdoar aos cães de Mafamede? Sou bom cristão. Guai de ti e de mim, se és dessa
raça danada!"
— Não é isso, dom cavaleiro —
interrompeu a donzela a rir. — O de que eu quero que te esqueças é o sinal da cruz:
o que eu quero que me prometas é que nunca mais hás-de persignar-te.
— Isso agora é outra coisa —
respondeu D. Diogo, que nos folgares e devassidões perdera o caminho do céu. E
pôs-se um pouco a cismar.
E, cismando, dizia consigo: — De
que servem benzeduras? Matarei mais
duzentos mouros e darei uma herdade a Santiago. Ela por ela. Um presente
ao apóstolo e duzentas cabeças de cães de Mafamede valem bem um grosso pecado.
E, erguendo os olhos para a dama,
que sorria com ternura, exclamou:
— Seja assim: está dito. Vá, com
seiscentos diabos.
E, levando a bela dama nos
braços, cavalgou na mula em que viera montado.
Só quando, à noite, no seu
castelo, pôde considerar miudamente as formas
nuas da airosa dama, notou que tinha os pés forcados como os de cabra.
CAPÍTULO III
Dirá agora alguém: — Era, por
certo, o demônio que entrou em casa de D.
Diogo Lopes. O que lá não iria! Pois sabei que não ia nada.
Por anos, a dama e o cavaleiro
viveram em boa paz e união. Dois argumentos vivos havia disso: Inigo Guerra e
Dona Sol, enlevo ambos de seu pai.
Um dia de tarde, D. Diogo voltou
de montear: trazia um javali grande, muito grande. A mesa estava posta. Mandou
conduzi-lo ao aposento onde comia, para se regalar de ver a excelente preia que
havia preado.
Seu filho assentou-se ao pé dele:
ao pé da mãe Dona Sol; e começaram
alegremente seu jantar.
— Boa montaria, D. Diogo — dizia
sua mulher. — Foi uma boa e limpa
caçada. — Pelas tripas de Judas! — respondeu o barão. Que há bem cinco
anos não colho urso ou porco montês que
este valha!
Depois, enchendo de vinho o seu
pichel de prata mui rico e lavrado, virou-o
de golpe à saúde de todos os ricos-homens fragueiros e monteadores.
E a comer e a beber durou até a
noite o jantar.
CAPÍTULO IV
Ora deveis de saber que o senhor
de Biscaia tinha um alão a quem muito queria, raivoso no travar das feras,
manso com seu dono e, até, com os servos de casa.
A nobre mulher de D. Diogo tinha
uma podenga preta como azeviche, esperta
e ligeira que mais não havia dizer, e dela não menos prezada.
O alão estava gravemente
assentado no chão defronte de D. Diogo Lopes,
com as largas orelhas pendentes e os olhos semicerrados, como quem
dormitava.
A podenga negra, essa corria pelo
aposento viva e inquieta, pulando como um diabrete: o pêlo liso e macio
reluzia-lhe com um reflexo avermelhado.
O barão, depois da saúde urbi et orbi feita aos monteiros,
esgotava um quírie comprido de saúdes
particulares, e a cada nome uma taça.
Estava como cumpria a um
rico-homem ilustre, que nada mais tinha que fazer neste mundo, senão dormir,
beber, comer e caçar.
E o alão cabeceava, como um abade
velho em seu coro, e a podenga saltava.
O senhor de Biscaia pegou então
de um pedaço de osso com sua carne e medula e, atirando-o ao alão, gritou-lhe:
— Silvano, toma lá tu, que és
fragueiro: leve o diabo a podenga, que não
sabe senão correr e retouçar.
O canzarrão abriu os olhos,
rosnou, pôs a pata sobre o osso e, abrindo a boca, mostrou os dentes
anavalhados. Era como um rir deslavado.
Mas logo soltou um uivo e caiu,
perneando meio morto: a podenga, de um
pulo, lhe saltara à garganta, e o alão agonizava.
—
Pelas barbas de D. From, meu bisavô! — exclamou D. Diogo, pondo-se em
pé, trêmulo de cólera e de vinho. -A perra maldita matou-me o melhor alão da
matilha; mas juro que hei-de escorchá-la.
E, virando com o pé o cão
moribundo, mirava as largas feridas do nobre
animal, que expirava.
— A la fé que nunca tal vi!
Virgem bendita. Aqui anda coisa de Belzebu." — E dizendo e fazendo, BENZIA-SE E
PERSIGNAVA-SE.
— "Ui!"— gritou sua
mulher, como se a houveram queimado. O barão olhou para ela: viu-a com os olhos
brilhantes, as faces negras, a boca torcida e os cabelos eriçados.
E ia-se alevantando, alevantando
ao ar, com a pobre D. Sol sobraçada debaixo do braço esquerdo: o direito
estendia-o por cima da mesa para seu filho, D. Inigo de Biscaia.
E aquele braço crescia,
alongando-se para o mesquinho, que, de medo, não ousava bulir nem falar.
E a mão da dama era preta e
luzidia, como o pêlo da podenga, e as unhas
tinham-se-lhe estendido bem meio palmo e recurvado em garras.
— Jesus, santo nome de Deus! —
bradou D. Diogo, a quem o terror dissipara as fumaças do vinho. E, travando de
seu filho com a esquerda fez no ar com a
direita, uma e outra vez, o sinal da cruz.
E sua mulher deu um grande gemido
e largou o braço de Inigo Guerra, que já tinha seguro, e, continuando a subir
ao alto, saiu por uma grande fresta, levando a filhinha que muito chorava.
Desde esse dia não houve saber
mais nem da mãe nem da filha. A podenga negra, essa sumiu-se por tal arte, que
ninguém no castelo lhe tornou a pôr a vista em cima.
D. Diogo Lopes viveu muito tempo
triste e aborrido, porque já não se atrevia a montear. Lembrou-se, porém, um
dia de espairecer sua tristura, e, em vez de ir à caça dos cerdos, ursos e
zebras, sair à caça de mouros.
Mandou, pois, alevantar o pendão,
desenferrujar e polir a caldeira, e provar
seus arneses. Entregou a Inigo Guerra, que já era mancebo e cavaleiro, o
governo de seus castelos, e partiu com lustrosa mesnada de homens d'armas para
a hoste del-rei Ramiro, que ia em fossado contra a mourisma de Espanha.
Por muito tempo não houve dele,
em Biscaia, nem nocivas, nem mensageiros.
TROVA SEGUNDA
CAPÍTULO I
Era um dia ao anoitecer: D. Inigo
estava à mesa, mas não podia cear, que grandes desmaios lhe vinham ao coração.
Um pagem muito mimoso e privado, que, em
pé diante dele esperava seu mandar, disse então para D. Inigo:
— Senhor, por que não comeis?
— Que hei-de eu comer, Brearte, se
meu senhor D. Diogo está cativo de mouros, segundo rezam as cartas que ora dele
são vindas?
—
Mas seu resgate não é a vossa mofina: dez mil peões e mil
cavaleiros tendes na mesnada de Biscaia:
vamos correr terras de mouros: serão os cativos
resgate de vosso pai.
— O perro del-rei de Leão fez sua
paz com os cães de Toledo e são eles que
têm preado meu pai. Os condes e potestades do rei tredo e vil não
deixariam passar a boa hoste de Biscaia.
— Quereis vós, senhor, um
conselho, e não vos custará nem mealha?
— Dize, dize lá, Brearte.
— Por que não ides à serra
procurar vossa mãe? Segundo ouço contar aos velhos, ela é grande fada.
— Que dizes tu, Brearte? Sabes
quem é minha mãe e que casta é de fada?
— Grandes histórias tenho ouvido
do que se passou certa noite neste castelo: éreis vós pequenino, e eu ainda não
era nada. Os porquês destas histórias, isso Deus é que os sabe.
— Pois dir-tos-ei eu agora.
Chega-te para cá, Brearte.
O pagem olhou de roda de si,
quase sem o querer, e chegou-se para seu amo: era a obediência e, ainda mais,
certo arrepio de medo que o faziam chegar.
— Vês tu, Brearte, aquela fresta
entaipada? Foi por ali que minha mãe fugiu.
Como e por que, aposto que já to hão contado?
— Senhor, sim! Levou vossa irmã
consigo..."
— Responder só ao que pergunto!
Sei isso. Agora cala-te.
O pagem pôs os olhos no chão, de
vergonha; que era humildoso e de boa raça.
CAPÍTULO II
E o cavaleiro começou o seu
narrar:
— Desde aquele dia maldito, meu
pai pôs-se a cismar: e cismava e amesquinhava-se, perguntando a todos os
monteiros velhos se, porventura, tinham lembrança de haverem no seu tempo
encontrado nas brenhas alguns medos ou feiticeiras. Aqui foi um não acabar de
histórias de bruxas e almas penadas.
Havia muitos anos que meu senhor
pai se não confessava: alguns havia,
também, que estava viúvo sem ter enviuvado.
Certo domingo pela manhã, nasceu
alegre o dia, como se fora de páscoa; e meu senhor D. Diogo acordou carrancudo
e triste, como costumava.
Os sinos do mosteiro, lã embaixo
no vale, tangiam tão lindamente, que era
um céu aberto. Ele pôs-se a ouvi-los e sentiu uma saudade que o fez
chorar.
— Irei ter com o abade disse ele
lã consigo — quero confessar-me. Quem sabe se esta tristura ainda é tentação de
Satanás?
O abade era um velhinho, santo,
santo, que não o havia mais.
Foi a ele que se confessou meu
pai. Depois de dizer "mea culpa", contou-lhe ponto por ponto a história do seu noivado.
— Ui! Filho — bradou o frade —
fizeste maridança com uma alma penada!
— Alma penada, não sei — tornou
D. Diogo; — mas era coisa do diabo.
— Era alma em pena: digo-te eu,
filho — replicou o abade. — Sei a história dessa mulher das serras. Está
escrita há mais de cem anos na última folha de um santoral godo do nosso
mosteiro. Desmaios que te vêm ao coração pouco me espantam. Mais que ânsias e
desmaios costumam roer lá por dentro os pobres
excomungados.
— Então, estou eu excomungado?
— Dos pés até à cabeça; por
dentro e por fora; que não há que dizer mais
nada.
E meu pai, a primeira vez na sua
vida, chorava pelas barbas abaixo.
O bom do abade animou-o, como a
nina criança; consolou-o, como a um mal-aventurado. Depois pôs-se a contar a
história da dama das penhas, que é minha mãe... Deus me salve!
E deu-lhe por penitência ir
guerrear os perros sarracenos por tantos anos quantos vivera em pecado, matando
tantos deles quantos dias nesses anos tinham
corrido. Na conta não entravam as sextas-feiras, dia da paixão de
Cristo, em que seria irreverência trosquiar a vil relé de agarenos, coisa neste
mundo mui indecente e escusada.
Ora a história da formosa dama
das serras, de verbo ad verbum, como estava na folha branca do santoral, rezava
assim, segundo lembranças do abade.
CAPÍTULO III
No tempo dos reis godos — bom
tempo era esse! — havia em Biscaia um conde, senhor de um castelo posto em
montanha fragosa, cercado pelas encostas e quebradas de larguíssimo soveral. No
soveral havia todo o gênero de caça, e Argimiro o Negro (assim se chamava o
rico-homem) gostava, como todos os nobres barões de Espanha, principalmente de
três coisas boas segundo a carnalidade: da guerra, do vinho e das damas; mas ainda mais do que de
tudo isso, gostava de montear.
Dama, possuía-a formosa, que era
a linda condessa; vinho, não havia melhor adega que a sua; caça, era coisa que
na selva não faltava.
Seu pai, que fora caçador e
fragueiro, quando estava para morrer, chamou-o
e disse-lhe:
— Hás me de jurar uma coisa que
não te custará nada.
Argimiro jurou que faria o que
seu pai e senhor lhe ordenasse.
— É que nunca mates fera em cama
e com cria, seja urso, javali ou veado.
Se assim o fizeres, Argimiro,
nunca nas tuas selvas e devesas faltará em que exercites o mais nobre mister de
um fidalgo. Além disso, se tu souberas o que um dia me aconteceu... Escuta-me
que é um horrendo caso...
O velho não pôde acabar; porque a
morte lhe cravou neste momento as
garras. Murmurou algumas palavras emperradas, revirou os olhos e
feneceu. Deus seja com a sua alma!
Passaram depois anos: certo dia
chegou ao castelo do moço conde um mensageiro del-rei Wamba. Chamava-o el-rei a
Toledo para o acompanhar com sua mesnada contra o rebelde Paulo. Os outros
nobres-homens das cercanias eram, como ele, chamados.
Antes, porém, de partirem,
ajuntaram-se todos no castelo de Argimiro para fazerem uma grande montaria, com
mais de cem alãos, sabujos e lebréus, cinqüenta monteiros, e moços de besta sem
conto. Era uma vistosa caçada.
Saíram no quarto d'alva: correram
vales e montes: bateram bosques e
matos.Era, contudo, meio-dia e ainda não haviam alevantado porco, urso,
zebra ou veado. Blasfemavam de sanha os cavaleiros, praguejavam e depenavam as
barbas.
Argimiro, que, por longa
experiência, conhecia os sítios mais profundos da espessura, sentiu lã por dentro uma tentação
do diabo.
"Os meus hóspedes — pensava
ele — não partirão sem beberem alguns
canjirões de vinho sobre uma ou duas peças de caça. Juro-o por alma de
meu pai."
E, seguido de alguns monteiros,
com suas trelas de cães, afastou-se da
companhia e deu a andar, a andar, até que se lançou por um vale abaixo.
O vale era escuro e triste:
corria pelo meio unia ribeira fria e mal-assombrada. As bordas da ribeira eram
penhascosas e faziam muitas quebradas.
Argimiro chegou à primeira volta
do rio; parou, pôs-se a olhar de roda e
achou o que procurava. Abria-se uma caverna na encosta fragosa, que
descia até a estreita senda da margem por onde o cavaleiro caminhava. Argimiro
entrou na boca da cova e, a um aceno, entraram após ele monteiros, moços de
besta, alãos, sabujos e lebréus, fazendo grande matinada.
Era o covil de um onagro: a fera
deu um gemido e, deixando as suas crias, estendeu-se no chão e abaixou a
cabeça, como quem suplicava.
— "A ela!" — gritou
Argimiro, mas gritou voltando a cara.
A matilha saltou no pobre animal,
que soltou outro gemido e caiu todo
ensangüentado.
Uma voz soou então nos ouvidos do
conde, e dizia:
— Órfãos ficaram os cachorrinhos
do onagro: mas pelo onagro tu ficarás desonrado.
— Quem ousa aqui falar agouros? —
gritou o rico-homem, olhando iroso para os monteiros. Todos guardavam silêncio;
mas todos estavam pálidos.
Argimiro pensou um momento:
depois, saindo da cova, murmurou:
— Vá com mil Satanases!
E, com alegres toques de buzina e
latidos da matilha, fez conduzir ao castelo a preia que tinha preado.
E, tomando o seu girifalte prima
em punho, ordenou aos monteiros fossem dizer aos nobres caçadores que dentro de
duas horas voltassem, porque achariam em seu paço comida bem aparelhada.
Depois, seguido dos falcoeiros,
começou a encaminhar-se para o solar, lançando nebris e falcões e ajuntando
caça de volateria, que a havia por aqueles montes mui basta.
CAPÍTULO IV
Dobrava a campa da torre de
menagem no castelo do conde Argimiro: dobrava pela linda condessa, que seu
nobre marido havia matado.
Andas cobertas de dó a levam a
enterrar ao mosteiro vizinho: os frades vão atrás das andas, cantando as
orações dos finados: após os frades, vai o rico-homem vestido de grossa
estamenha, cingido com uma corda, e rasgando pelas sarças e pedras os pés que
levava descalços.
Por que matou ele sua mulher, e
por que ia ele descalço?
Eis o que, a esse respeito,
refere a lenda escrita na folha branca do santoral.
CAPÍTULO V
Dois anos duraram guerras del-rei
Wamba: foram guerras mui de contar.
E por lá andou o rico-homem com
seus bucelários, que assim se diziam então acostados e homens d'armas. Fez
estrondosas façanhas e cavalarias; mas voltou coberto de cicatrizes, deixando
por campos de batalha gasta e consumida a sua valente mesnada.
E, atravessando de Toledo para
Biscaia, seguia-o apenas um velho escudeiro. Velho e cheio de cãs e rugas
também ele era, não de anos, mas de penas e de trabalho.
Caminhava triste e feroz no
aspecto; porque de seu castelo lhe eram vindas
novas d'entristecer e raivar.
E, cavalgando noite e dia por
montes e por charnecas, por bosques e por jardins, imaginava no modo como
descobriria se eram falsas ou verdadeiras essas novas de mau pecado.
CAPÍTULO VI
No solar do conde Argimiro, um
ano depois da sua partida, ainda tudo dava mostras da mágoa e saudade da
condessa: as salas estavam forradas de negro; de negro eram os trajos dela; nos
pátios interiores dos paços crescera a erva, de modo que se podia ceifar: as
reixas e as gelosias das janelas não se haviam tornado a abrir: descantes dos
servos e servas, sons de saltérios e harpas tinham deixado de soar.
Mas ao cabo do segundo ano tudo
aparecia mudado: as colgaduras eram de prata e matiz; brancos e vermelhos os
trajos da bela condessa; pelas janelas do paço restrugia o ruído da música e
dos saraus; e o solar de Argimiro estava por dentro e por fora alindado.
Um antigo vílico do nobre conde
fora quem destas mudanças o avisara.
Doíam-lhe tantos folgares e contentamentos; doía-lhe a honra de seu
senhor, pelo que ele via e pelo que se murmurava.
CAPÍTULO VII
Eis aqui como se passara o caso:
Longe do condado do ilustre barão
Argimiro o Negro, para as bandas de
Galiza, vivia um nobre gardingo — como quem dissesse infanção —
gentil-homem e mancebo chamado Astrigildo Alvo.
Contava vinte e cinco anos; os
sonhos das suas noites eram de formosas damas; eram de amores e deleites: mas,
ao romper da manhã, todos eles se
desfaziam, que, ao sair ao campo, não havia senão pastoras tostadas do sol
e das neves e as servas grosseiras do
seu solar.
Destas estava ele farto, Mais de
cinco tinha enganado com palavras; mais
de dez comprado com ouro; mais de outras dez, como nobre e senhor que
era, brutamente violado.
Com vinte e cinco anos, já no
livro da justiça divina se lhe haviam escrito mais de vinte e cinco maldades.
Uma noite sonhou Astrigildo que
corria serras e vales com a rapidez do
vento, montado em onagro silvestre, e que, depois de correr muito,
chegava alta noite a um solar, onde pedia gasalhado.
E que formosa dama o recebia, e
que em poucos instantes um do outro se enamorava.
Acordou sobressaltado e, durante
o dia inteiro, não pensou em outra coisa senão na formosa dama que vira naquele
sonhar da madrugada.
Três noites se repetia o sonho:
três dias o mancebo cismava. Encostado à varanda de um eirado, na tarde do
terceiro dia, olhava triste para as montanhas do norte, que via lá no
horizonte, como nuvens pardacentas. O sol começou a descer no poente, e ainda ele estava embebido no seu
melancólico cismar.
Por acaso, volveu então os olhos
para o terreiro que lhe ficava por baixo; um
onagro da floresta estava aí deitado, como se fosse manso jumento; era
inteiramente semelhante àquele com que havia sonhado.
CAPÍTULO VIII
Sonhos de três noites a fio não
mentem: Astrigildo desceu à pressa ao terreiro. Sem bulir pé nem mão, o onagro
deixou-se enfrear e selar; e, a Deus e à ventura, o mancebo cavalgou nele e
deitou pela encosta abaixo.
Cumpria-se tudo à risca: o onagro
não corria, voava. Mas o céu começou de toldar-se com o anoitecer: a escuridão
cresceu e desfechou em vento, trovões, chuva e raios. O mancebo perdia a
tramontana, e o onagro dobrava a carreira e
bufava violentamente. Parou, enfim, a horas mortas. Sem saber como,
Astrigildo achou-se junto das barreiras de um solar acastelado.
Tocou a sua buzina, que deu um
som prolongado e trêmulo, porque ele tremia de susto e de frio. Apenas cessou
de tocar, a ponte levadiça desceu, muitos escudeiros saíram a recebê-lo entre
tochas, e as salas dos paços iluminaram-se.
Era que também a condessa tinha
por três noites sonhado!
A clepsidra aponta a hora de
sexta noturna, e ainda dura o sarau no solar do conde de Biscaia; porque a
nobre condessa e o gentil Astrigildo assistem às danças e aos jogos dos libertos e servos, que, para
eles espairecerem, trabalham lá na sala d'armas. Mas, num aposento baixo do
solar, um homem está em pé com um punhal na mão, olhar furibundo e o cabelo
eriçado, parecendo escutar longínqua toada. Outro homem está diante dele,
dizendo-lhe:
— Senhor, ainda não é tempo para
punir o grande pecado. Quando eles se
recolherem, aquela luz que vedes acolá há-de apagar-se. Subi então, e
achareis desimpedido o caminho secreto
para a câmara, que é a mesma do vosso noivado.
E o que falava saiu, e daí a pouco
a luz apagou-se, e o homem dos cabelos
hirtos e do olhar esgazeado subiu por uma íngreme e tenebrosa escada.
CAPÍTULO IX
Quando pela manhã cedo o conde
Argimiro, do seu balcão principal,
ordenava que levassem o corpo da condessa a um mosteiro de donas, que
ele fundara para aí ter seu momento, ele e os de sua casa, e dizia aos homens
de armas que arrastassem o cadáver de Astrigildo e o despenhassem de um grande
barrocal abaixo, viu um onagro silvestre deitado a um canto do pátio.
— Um onagro assim manso é coisa
que nunca vi — disse ele ao vílico, que estava ali ao pé. — Como veio aqui este
onagro?
O vílico ia a responder, quando
se ouviu uma voz: dir-se-ia que era o ar que falava.
— Foi nele que veio Astrigildo:
será ele que o levará. Por ti ficaram órfãos os filhinhos do onagro, mas por
via do onagro ficaste, oh conde, desonrado. Foste cru com as pobres feras: Deus
acaba de vingá-las.
—
"Misericórdia!" — bradou Argimiro, porque naquele momento se
lembrou da maldita caçada.
Neste comenos os homens do conde
saíam com o cadáver sangrento do
mancebo: o onagro, apenas o viu, saltou como um leão no meio da turba,
que fez fugir, e, travando do morto com os dentes, arrastou-o para fora do
castelo, e, como se tivesse em si uma legião de demônios, foi precipitar-se com
ele do barrocal abaixo.
Era por isso que o conde ia
cingido de corda e descalço, após os frades e a tumba. Queria fazer penitência
no mosteiro por haver quebrado o juramento que tinha feito a seu pai.
As almas da condessa e do
gardingo caíram de chofre no inferno, por terem deixado a vida em adultério,
que é pecado mortal.
Desde esse tempo as duas
miseráveis almas têm aparecido a muita gente nos desvios da Biscaia: ela
vestida de branco e vermelho, assentada nas penhas, cantando lindas toadas: ele retouçando aí
perto, na figure de um onagro.
Tal foi a história que o velho
abade contou a meu pai, e que ele me relatou a mim, antes de ir cumprir sua
penitência nessa guerra de mouros que lhe foi tão fatal.
Assim concluiu Inigo Guerra. Brearte,
o pagem Brearte, sentia os cabelos
arrepiarem-se-lhe. Por largo tempo ficou imóvel defronte de seu senhor:
ambos eles em silêncio. O moço rico-homem não podia engolir bocado.
Tirou por fim da escarcela a
carta de D. Diogo para a tornar a ler. As misérias e lástimas que o rico-homem
aí recontava eram tais, que D. Inigo sentiu o pranto gotejar-lhe abundante
pelas faces abaixo.
Então ergueu-se da mesa para se
ir deitar. Nem o barão nem o pagem pregaram olho toda a noite; este de medroso,
aquele de desconsolado.
E nos ouvidos de Inigo Guerra
soavam contínuo as palavras de Brearte: "Por que não ides à serra procurar vossa
mãe?" — Só por encantamento seria, de feito, possível tirar das unhas dos
mouros o nobre senhor da Biscaia.
Rompeu, finalmente, a alvorada.
TROVA TERCEIRA
CAPÍTULO I
Mensageiros após mensageiros,
cartas sobre cartas são vindas de Toledo a Inigo Guerra. El-rei de Leão
resgatava todos os dias cavaleiros seus por cavaleiros mouros, mas não tinha wali ou kayid cativo,
que pudesse dar em troca por tão nobre senhor como o senhor de Biscaia.
E muitos dos redimidos eram das
bandas das serras; e estes, trazendo as
mensagens, contavam ainda mais lástimas do velho D. Diogo Lopes, do que,
se é possível, essas de que rezavam as cartas.
— A porta do aguião, em Toledo —
diziam eles — tem a mourisma um grande
campo, todo mui bem apalancado. Aqui fazem grandes festas, guinolas e
touros nos dias dos seus perros santos, segundo lá lhos pregam e determinam khatibs e ul-máis. — Gaiolas de bestas-feras
muitas há aí, coisa mui de ver e pasmar: os tigres e leões não as rompem; rompê-las mãos de
homens, fora pequice tão somente imaginá-lo.
— Numa destas prisões, quase nu,
com adovas de pés e mãos, está o ilustre rico-homem, que já foi capitão de grandes
e lustrosas mesnadas.
— Corteses costumam ser mouros
com seus cativos fidalgos. Fazem esta perraria a D. Diogo Lopes, porque já são
passados três anos, e não há ver seu resgate.
E os peregrinos que vinham do
cativeiro e relatavam tais coisas, bem ceados
e agasalhados no castelo, iam-se no outro dia com Deus, levando provida a
escarcela, e em boa e santa paz.
Quem não ficava em paz era D.
Inigo:
— "Por que não vais tu à
serra"' — dizia-lhe uma voz ao ouvido.
— "Por que não ides procurar
vossa mãe?" — repetia-lhe o pagem Brearte.
Que lhe havia de fazer? Uma noite
inteira levou em claro a pensar nisso. Pela manhã, a Deus e à sorte, ei-lo que,
enfim, se resolve a tentar a aventura, bem que de seu mau grado.
Benzeu-se vinte vezes, para não
ter lá de persignar-se. Rezou o Pater, a
Ave e o Credo; porque não sabia se em
breve essas orações seriam coisa de recordar-se.
E, seguido de um mastim seu
predileto, a pé e com uma ascuma na mão, foi-se através das brenhas, por uma
vereda que dizia para os píncaros tristes e ermos onde era tradição que a linda
dama tinha aparecido a seu pai.
CAPÍTULO II
Trinam os rouxinóis nos
balseiros; murmuram ao longe as águas dos regatos; ramalha a folhagem
brandamente com a viração da manhã: vai uma linda madrugada.
E Inigo Guerra galga, manso e
manso, os carris empinados, trepa de
barrocal em barrocal e, apesar de seu muito esforço, sente bater-lhe o
coração com ânsia desacostumada.
Onde as matas faziam alguma
clareira ou as penhas alguma chapada, D. Inigo parava um pouco, tomando fôlego
e pondo-se a escutar.
Muito havia que andava
embrenhado: o sol ia alto, e o dia calmoso: ao canto do rouxinol seguira o
rechinar da cigarra.
E encontrou uma fonte que
rebentava de rochedo negro e, saltando de aresta em aresta, vinha cair em
almácega tosca, onde o sol parecia dançar no bulir das ondazinhas que fazia o despenho da
cascata.
D. Inigo assentou-se à sombra da
rocha e, tirando a sua monteira, matou a
sede que trazia, e pôs-se a lavar o rosto e a cabeça do suor e pó, que
não lhe faltava.
O mastim, depois de beber,
deitou-se ao pé dele e, com a língua pendente,
arquejava de cansado.
De repente, o cão pôs-se em pé e
arremeteu, com um grande ladro.
D. Inigo volveu os olhos: um
jumento silvestre pascia na orla da clareira junto de um frondoso carvalho.
— Tárik! — gritou o mancebo. —
Tárik! — Mas Tárik ia avante e não escutava.
— Ai, deixa-o correr, meu filho!
Não é para o teu mastim levar a melhor
desse onagro.
Isto dizia uma voz que, lá em
cima no alto da penha, começou de soar.
Olhou: linda mulher estava aí
assentada e, com gesto amoroso e sorriso d'anjo, para ele se inclinava.
— Minha mãe! Minha mãe! — bradou
migo Guerra, alevantando-se: e lá
consigo dizia: — Vade retro! Santo Hermenegildo me valha!
E como molhara a cabeça, sentiu
que os cabelos se lhe iam alçando de
arrepiados.
— Filho, na boca palavras doces;
no coração palavras danadas. Mas que importa, se és meu filho? Dize o que
queres de mim, que será tudo feito a teu talento e vontade.
O moço cavaleiro nem acertava a
falar com medo. Já a este tempo Tárik
gemia uivando debaixo dos pés do onagro.
— Cativo está de mouros há anos
meu pai D. Diogo Lopes — disse por fim titubeando. — Quisera me ensinásseis,
senhora, o modo como hei-de salvá-lo.
— Seu mal, tão bem como tu, eu
sei. Se pudesse, ter-lhe-ia acorrido, sem que viesses requerê-lo: mas o velho
tirano do céu quer que ele pene tantos anos
quantos viveu com a... Com a que sandeus chamam Dama Pé-de-Cabra.
— Não bíasfemeis contra Deus,
minha mãe, que é enorme culpa —
interrompeu o mancebo, cada vez mais horrorizado.
— Culpa?! Não há para mim
inocência nem culpa — replicou a dama, rindo às gargalhadas.
Era um rir de dormente, triste e
medonho. Se o diabo ri, como aquele deve
ser o rir do diabo.
O cavaleiro não pôde dizer mais
palavra.
— Inigo! — prosseguiu ela — falta
um ano para cumprir-se o cativeiro do
nobre senhor de Biscaia. Um ano passa depressa: mais depressa eu to
farei passar. Vês tu aquele valente onagro? Quando uma noite, acordando, o achares
ao pé de ti, manso como cordeiro, cavalga nele sem susto, que te levará a
Toledo, onde livrarás teu pai. — E bradando acrescentou: — Estás por isto,
Pardalo?
O onagro fitou as orelhas e, em
sinal de aprovação, começou a azurrar; começou por onde, às vezes, academias
acabam.
Depois, a dama pôs-se a cantar
uma cantiga de bruxas, acompanhando-se
de um saltério, de que tirava mui estranhas toadas:
Pelo cabo da vassoura,
Pela corda da polé,
Pela víbora que vê,
Pela Sura, e pela Toura;
Pela vara do condão,
Pelo pano da peneira,
Pela velha feiticeira,
Do finado pela mão;
Pelo bode, rei da festa,
Pelo sapo inteiriçado,
Pelo infante dessangrado
Que a bruxa chupou à sesta;
Pelo crânio alvo e lustroso
Em que sangue se libou,
E do irmão que irmão matou,
Pelo arranco doloroso;
Pelo nome de mistério
Que em palavras se não diz,
Vinde lã precitos vis;
Vinde ouvir o meu saltério!
E dançai-me, aqui na terra,
Uma dança doudejante,
Que entonteça dum instante
O meu filho Inigo Guerra.
Que ele durma um ano inteiro,
Como em sono de uma hora,
Junto à fonte que ali chora,
Sobre a relva deste outeiro.
Enquanto a dama cantava estas
cantigas, o mancebo sentia um quebrantamento nos membros que
crescia cada vez mais e que o obrigou a assentar-se.
E logo, logo, ouviu-se um ruído
abafado, como de trovões e de ventanias engolfando-se em covoadas: depois
o céu começou de toldar-se, e cada vez era mais cris, até que, enfim, apenas
uma luz de crepúsculo o alumiava.
E a mansa almácega refervia, e os
penedos rachavam, e as árvores torciam-se, e os ares sibilavam.
E das bolhas da água da fonte, e
das fendas dos rochedos, e d'entre as ramas dos robles, e da vastidão
do ar via-se descer, subir, romper, saltar... O quê? — Coisa muito espantável.
Eram mil e mil braços sem corpos,
negros como carvão, tendo nos cotos uma asa, e na mão cada um uma
espécie de facho.
Como a palha que o tufão alevanta
na eira, aquela multidão de candeias cruzava-se, revolvia-se, unia-se,
separava-se, remoinhava, mas sempre com certa cadência, como que dançando a
compasso.
A D. Inigo andava a cabeça à
roda: as luzes pareciam-lhe azuis, verdes e vermelhas: mas corria-lhe pelos
membros uma languidez tão suave, que não teve ânimo para fazer o sinal da cruz
e afugentar aquele bando de Satanases.
E sentia-se esvaecer e, pouco a
pouco, adormecia e, dali a pouco, roncava.
Entretanto, no castelo tinham
dado pela sua falta. Esperaram-no até à noite; esperaram-no uma semana, um mês,
um ano, e não o viam voltar. O pobre Brearte correu por muito tempo a serra;
mas o sítio onde o cavaleiro jazia, isso é que não havia lá chegar.
CAPÍTULO III
Inigo acordou alta noite: tinha
dormido algumas horas: ao menos, ele assim o cria. Olhou para o céu, viu estrelas:
apalpou ao redor, achou terra: escutou, ouviu ramalhar as árvores.
Pouco a pouco é que se foi
recordando do que passara com sua mal-aventurada mãe; porque, a princípio, não
se lembrava de nada.
Pareceu-lhe então ouvir respirar
ali perto: afirmou a vista: era o onagro Pardalo.
— Já agora meio enfeitiçado estou
eu pensou ele: — corramos o resto da aventura, a ver se posso salvar meu pai.
E pondo-se em pé, encaminhou-se
para o valente animal, que já estava enfreado e selado: cujos eram os arreios,
isso sabia-o o diabo.
Hesitou, todavia, um momento:
tinha seus escrúpulos — a boas horas vinham
eles — de cavalgar naquele corredor infernal.
Então ouviu nos ares uma voz
vibrada, que cantava muito entoado. Era a voz da terrível Dama Pé-de-Cabra:
Cavalga, meu cavaleiro,
No alentado corredor;
Vai salvar o bom senhor;
Vai quebrar seu cativeiro.
Pardalo, não comerás
Nem cevada nem aveia,
Não terás jantar nem ceia,
Rijo e leve voltarás.
Nem açoite, nem espora
Requer ele, oh cavaleiro!
Corre, corre bem ligeiro,
Noite e dia, a toda a hora.
Freio ou sela não lhe tires,
Não lhe fales, não o ferres,
Na carreira não te aterres,
Para trás nunca te vires.
Upa! Firme! — avante, avante!
Breve, breve, a bom correr!
Um minuto não perder,
Bem que o galo ainda não cante.
— "Vá!" — gritou Inigo
Guerra, com uma espécie de frenesi que nele produzira aquele cantar estranho; e
de um pulo cavalgou no quedo onagro.
Mas apenas se firmou na sela,
pst! — ei-lo que parte!
CAPÍTULO IV
Posto que em paz com os cristãos,
os mouros de Toledo têm pelas torres, cubelos e adarves seus atalaias e vigias, e
nos montes que dizem para a fronteira de Leão seus fachos e almenaras.
Mas se o rei leonês soubesse como
descuidosa jaz Toledo; como, ao anoitecer, se deixam dormir vigias, se deixam
de acender fachos, quebraria seus
juramentos, e faria contra aquelas partes um repentino fossado.
Salvo ter de ir depois ao seu
confessor dizer confiteor Deo, e peceavi; porque o quebrar o juramento, ainda que seja a cães
descridos, dizem ser feio pecado.
Era a hora do lusco-fusco: ao sol
posto os de Toledo, mirando para a banda do Norte, viram, lá muito ao longe,
vir correndo uma nuvem negra, ondeando e fazendo voltas no céu, como a estrada
as fazia na terra por entre os montes: dir-se-ia que vinha embriagada.
Era primeiro um pontinho; depois
crescera e crescera: quando anoiteceu,
estava já perto e cobria um grande espaço.
O almuadem, subindo à torre da
mesquita, chamava os crentes de Mafamede para a oração da tarde.
Mas com a sua voz esganiçada
misturou-se o estrondear dos trovões: era como um tiple e um baixo.
E passou um tufão de vento, que,
embrenhando-se e remoinhando nas barbas longas e brancas do almuadem, lhe
fustigou com elas a cara.
Começou então a cair uma corda de
chuva, que nem moços nem velhos se
lembravam de ter visto coisa semelhante em nenhuma parte.
Aqui veríeis os esculcas a
aninharem-se nas guaritas das torres; os roldas e sobre-roldas a fugirem pelos
adarves; os facheiros a sumirem-se debaixo das almenaras; os hajibes a
acolherem-se às mesquitas molhados até os ossos; as velhas, que tinham saído ao vozear do almuadem,
levadas pelas torrentes das ruas tortuosas e estreitas, bradando por Mafoma e
por Allah. E a água caindo cada vez mais!
Dois únicos movimentos fazem
então os moradores de Toledo: uns fogem, outros agacham-se. E a água caindo
cada vez mais!
O pavor quebra todos os ânimos:
os cacizes esconjuram a procela: os
faquires penitentes gritam que se acaba o mundo, e que lhes deixe os
seus haveres aquele que quiser salvar-se. E a água caindo cada vez mais!
A salvação de Toledo foi não se
terem fechado suas portas: se assim não sucedesse, dentro do recinto dos muros
morria toda a mourisma afogada.
Na prisão estava D. Diogo
encostado às grades de ferro. O pobre velho
entretinha-se a ouvir aquele medonho chover; porque a noite era
comprida, e ele não tinha que fazer mais
nada.
Mas, como o terreiro ante a sua
gaiola de feras era rodeado de muros, a chuva não podia escoar-se toda, e vinha
crescendo de modo que já elo sentia os
pés molhados.
E também começou a ter medo de
morrer, apesar da sua miséria. Bem sabia
D. Diogo que a morte é a maior delas todas; que não era o senhor de
Biscaia ateu, filósofo, nem parvo.
Mas lá divisa um vulto alvacento
que salvou por cima do palanque, e sente ao mesmo tempo no meio do terreiro — plash! —
E ouviu uma voz que dizia:
— "Nobre senhor D. Diogo,
onde é que vós vos achais?"
— "Que vejo e ouço! —
exclamou o velho. — Um trajo que não alveja não é trajo d'ismaelita; uma voz
que não fala algaravia não é d'infiel; um salto de tal altura não é de
cavaleiro do mundo. Por vossa fé dizei-me, sois anjo ou sois Santiago."
— "Meu pai, meu pai! Acudiu
o cavaleiro — já não conheceis a fala de Inigo? Sou eu, que venho
salvar-vos."
E D. migo descavalgou e, travando
das grossas reixas, tentava aluí-las: a
água dava-lhe já pelos artelhos, e ele não fazia nada.
Cheio de aflição, o mancebo quis
invocar o nome de Jesus; mas lembrou-se de como ali viera, e o bento nome
expirou-lhe nos lábios.
Todavia, Pardalo pareceu adivinhar
o seu íntimo pensamento; porque soltou um gemido agudo e pronto, como se lhe
houvessem tocado com um ferro em brasa.
E, empurrando com a cabeça D.
Inigo, voltou a anca para a grade.
Pau! — foi o som que se ouviu. Com um só couce a reixa estava no
chão, e as ombreiras de pedra tinham voado em mil rachas. Quer mo creiam, quer
não, di-lo a história: eu com isto não
perco nem ganho.
D. Diogo, esse ficou-o crendo:
porque uma lasca de pedra bateu-lhe nos dois últimos dentes que tinha e
meteu-lhes pela goela abaixo. Por isso, ele, com a dor, não podia dizer
palavra.
Seu filho fê-lo cavalgar ante si,
e, cavalgando após ele, bradou:
— "Meu pai, estais
salvo!"
E Pardalo de um pulo galgou de
novo o palanque. Pois tinha bons quinze
palmos!
Pela manhã não havia sinal de
chuva; o ar estava limpo e sereno, e quando os mouros foram ver o que sucedera
a D. Diogo Lopes, não lhe acharam sequer o rasto.
CAPÍTULO V
D. Inigo e seu pai, o velho
senhor de Biscala, passam as portas de Toledo com a rapidez da flecha: num
abrir e fechar d'olhos ficam-lhes para trás muros, torres, barbacãs e atalaias.
A bátega vai diminuindo: rasgam-se as nuvens, e vêem-se já reluzir algumas
estrelas, que parecem outros tantos olhos com que o céu espreita através do
negrume o que se passa cá em baixo.
A estrada, pelas descidas e
subidas dos recostos, converteu-se em leito de torrente, nos plainos
converteu-se em lago.
Mas, quer pelos lagos, quer pelas
torrentes, o valente onagro rompia avante, bufando como um danado.
Não subiram bem um monte, já
descem pelo outro recosto abaixo; ainda bem não chegaram a uma clareira, já
sentem em profunda floresta gotejarem-lhes
em cima os ramos agitados das árvores.
Pouco mais é de meia-noite, e os
topos nevados do Vindio recortam o chão estrelado do céu já limpo, semelhantes
aos dentes de uma serra gigante capaz de dividir cérceo o hemisfério austral do
hemisfério boreal.
E Pardalo investe, sempre em
galope desfeito, com as montanhas
disformes, e desce aos vales temerosos, e, cada vez mais ligeiro, como o
seu nome o indica, parece menos quadrúpede que pássaro.
Mas que ruído é esse que
sobreleva o do vento? Que é isso que, lá ao longe, ora alveja, ora reluz nas
trevas, como uma alcateia de lobos envoltos em sudários brancos, com os olhos
só descobertos, e despregando em fio pelo fundo do vale abaixo?
É um rio caudal e furioso, com o
seu manto de escuma, e com as escamas angulosas de seu dorso eriçado, onde
batem e chispam os raios das estrelas em mil reflexos quebrados.
Negreja sobre o rio uma ponte, ao
meio desta um vulto esguio. — "Será um marco, uma estátua? — pensaram os
cavaleiros. Pinheiro não pode ser; não consta que em pontes nasçam."
Pardalo ria-se de rios; pontes,
fazia tanto cabedal delas como de um retraço de palha. Todavia, bem que pudesse
de um pulo saltar vinte ribeiras como aquela,
foi-se direito à ponte; porque não era animal que fizesse áfricas
escusadas.
Semelhante a relâmpago, se
arrojou o onagro àquele passo estreito... Mas, tá.... Ei-lo que de repente
pára.
E tremia como varas verdes, e
arquejava com violência: os dois cavaleiros
olharam.
O vulto esguio era um cruzeiro de
pedra alevantado a meia ponte: por isso Pardalo emperrava.
Então, dentre uns altos choupos,
que da margem dalém se meneavam, um pouco mais abaixo daquele sítio, ouviu-se
uma voz fadigosa e trêmula que cantava:
Para trás, para trás, a galgar.
Já!
De redor, de redor, vem passar
Cá!
Que não há nada aqui que te
empeça.
Bus,
Nem palavra, vós dois! Fugi dessa
Cruz!
— "Santo Nome de
Cristo!" — exclamou D. Diogo, benzendo-se ao escutar aquela voz que bem
conhecia, mas que, depois de tantos anos, não esperava ali ouvir, porque seu
filho não lhe dissera que meio achara para o salvar.
Apenas o grito do velho soou,
assim ele como D. Inigo foram bater contra o poial do cruzeiro, onde ficaram de
bruços, envoltos em lodo. O onagro, ao sacudi-los de si, soltara um rugido de besta-fera.
Sentiram então um cheiro intolerável de enxofre e de carvão de pedra inglês,
que logo se percebia ser coisa de Satanás.
E ouviram como um trovão
subterrâneo; e a ponte balouçava, como se as
entranhas da terra se despedaçassem.
Apesar do seu grande terror, e de
chamar pela Virgem Santíssima, D. Inigo abriu um cantinho do olho para ver o
que se passava.
Nós os homens costumamos dizer que
as mulheres são curiosas. Nós é que o somos. Mentimos como uns desalmados.
Que veria o cavaleiro? Um fojo
aberto, bem próximo deles sobre a ponte, e que depois rompia pela água.
E depois pelo leito do rio; e
depois pela terra dentro, dentro; e depois pelo teto do inferno, que outra
coisa não podia ser um fogo muito vermelho que
reverberava daquela profundidade.
Tanto era assim, que ainda lá viu
passar de relance um demônio com um desconforme espeto nas mãos em que levava
um judeu empalado.
E Pardalo descia remoinhando por
esse boqueirão, como uma pena caindo em
dia sereno do alto de uma torre abaixo.
Aquela vista fez perder os
sentidos a D. Inigo, que, indo também a chamar por Jesus, achou que não podia
proferir este nome sagrado.
De terror, tanto o velho como o
moço ficaram ali em desmaio.
Quando tornaram a si, com o
romper do sol claro, conheceram o sítio em
que se achavam. Era a ponte próxima à aldeia de Nustúrio, no alto da
qual campeava o castelo construído por D. From, o saxónio, avoengo de D. Diogo
Lopes e primeiro senhor de Biscaia.
Nenhum vestígio restava do que
ali se passara; os dois, moídos e cheios de lodo e pisaduras, foram-se
arrastando como puderam até encontrar alguns vilãos, a quem se deram a
conhecer, e que os levaram a casa.
Festas que em Nustúrio se fizeram
por sua vinda, coisa é que vos não direi;
porque não tarda a hora de cear, rezar e deitar.
CAPÍTULO VI
D. Diogo pouco tempo viveu: todos
os dias ouvia missa; todas as semanas se
confessava. D. Inigo, porém, nunca mais entrou na igreja, nunca mais rezou, e não fazia senão ir à serra caçar.
Quando tinha de partir para as
guerras de Leão, viam-no subir à montanha armado de todas as peças e voltar de
lá montado num agigantado onagro.
E o seu nome retumbou em toda a
Espanha; porque não houve batalha em que entrasse que se perdesse, e nunca em
nenhum recontro foi ferido nem derribado.
Diziam à boca pequena em Nustúrio
que o ilustre barão tinha pacto com Belzebu. Olhem que era grande milagre!
Meio precito era ele por sua mãe;
não tinha que vender senão a outra metade da alma.
Por oitenta por cento de lucro no
recibo de um egresso, a dá aí inteiro ao demo qualquer onzeneiro, e crê ter feito uma
limpa veniaga.
Fosse como fosse, Inigo Guerra
morreu velho: o que a história não conta é o que então se passou no castelo. Como não quero
improvisar mentiras, por isso não direi mais nada.
Mas a misericórdia de Deus é
grande. A cautela rezem por ele um Pater e um Ave. Se não lhe aproveitar, seja
por mim. Amém.
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Nota:
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)
Alexandre Herculano: "Lendas e Narrativas" (1851)
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