NA BIQUEIRA
Ela tem uns olhos azuis tão bonitos!...
Mas se eu vi! Ele a olhar para cima... e ela a fazer
sinaizinhos com o lenço!... Vi; ninguém mo veio dizer... Fui eu que vi!
E estas cartas que me escreveu! Talvez em nenhuma fale
verdade. Esta última é toda mentira com toda a certeza. Quando a escreveu, já
foi depois de ter polcado com ele... E chama-me seu anjo a infame!
Como pode um homem baixar até morrer por uma mulher assim!
Morrer, sim, está resolvido.., vou matar-me.
Meu pobre pai, coitado! Sempre com tantos sacrifícios por
minha causa! O que dirá, quando souber que me suicidei? Pobre velhinho! I capaz
de morrer de desgosto! Tinha vontade de lhe escrever; mas não tenho ânimo. Nem
ânimo nem papel. Gostava de me despedir... O resto do papel ainda o gastei a escrever
àquela desgraçada!
Ah! mas vou afinal vingar-me!... Hei de atribular-lhe a
vida com remorsos!
Custa-me tanto morrer!... Dizem que só os cobardes é que
se matam. E eu acho que é preciso ter ânimo, muito ânimo!
Mas está decidido.
Vou morrer enforcado... Dizem que não dói nada... Mas
morrer! Quem foi que disse que não dói? Aqui está a corda. Exatamente do
tamanho preciso para que, de manhã, quando ela abrir a janela, me veja
pendurado, em frente dos seus olhos, na biqueira do meu telhado.
É preciso não hesitar... Infame! Mas que mulher tão
infame! E tem uns olhos tão bonitos!... Que besta... o outro!
Bem! agora ponho-me a chorar! São saudades de meu pai.
Aquela biqueira tentou-me. de zinco, parece muito forte,
algum tanto virada para cima.
Vamos.
Está frio cá fora... Chovisca... A noite é escura!...
Ali estão as janelas do quarto dela, donde tanta vez olhou
para mim, donde tanta vez me falou e me atirou beijos com as pontinhas dos
dedos!... Que mentira! Agora faz o mesmo ao outro!
Está frio! Será bom vestir o sobretudo.
Assim estou melhor, mais conchegado... para morrer!
Cá estou outra vez a chorar!
Amanhã, quando abrires as tuas janelas, hás de ver, mesmo
em frente, o meu corpo, balouçando-se ao vento soturnamente.
O pior é se fico com a língua de fora... J tão feio uma
língua de fora! Eu fico tão feio!... E os olhos...! Os olhos dum enforcado...!
Mas está decidido, está decidido. O enforcado é o mais
limpo dos suicidas.
Se não fosse o medo já lá estava. Um suicida é um valente!
Atemos a corda. Mau! o telhado escorrega...! Se eu caísse
lá abaixo!... Só pensá-lo me arrepia todo!
Dali é que ela erguia os olhos tanta vez para a minha
trapeira!
Devagar... Assim... Parece-me que o laço está bem dado...
Quase que não vejo com as lágrimas... Está bem dado, está; está seguro.
O melhor é descer pela corda, e depois, lá embaixo, quando
tiver chegado ao fim, meto o pescoço no laço, segurando a corda, devagarinho,
muito devagarinho... e deixo apertar.
Como é triste morrer assim tão novo, tão cheio de vida!...
Morrer!... Chega a ser estúpido...! porque afinal eu tinha um futuro talvez
brilhante... Um praticante de farmácia... Morrer assim tão novo!
Mas como isto faz chorar!
Está frio!
Ela dorme...! Se adivinhasse...!
Não pensemos mais nisto. Sejamos homem!
Devagarinho...!
Estou suspenso sobre o abismo! Uma altura de cinco
andares...! Sinto um frio na espinha...! Se as mãos se me escapassem...!
Não me despedi bem do meu quarto. Devia de voltar para
cima. Afinal fui ingrato com ele. Tive ali momentos bons.
A corda dá-me cabo das mãos. Devo estar quase na ponta...
Cá está o laço, Estou mesmo, mesmo em frente das janelas. Se me balouçasse um
bocadinho, tocava-lhe com a ponta do pé nos vidros.
Púnhamos o laço ao pescoço. Foste tu, mulher devassa, que
me fizeste esta gravata!... Agora deixemos apertar devagarinho.
Apre! E áspera a corda!
E horrível morrer-se assim! Se ela me visse, se
arrependesse e me salvasse!
Já tenho os braços cansados...! Que tentação de voltar
para cima!
Morrer...! Mas é uma desgraça!... uma tolice!
Hein? Que é isto? Pareceu-me sentir estalar o zinco da
biqueira!...
Talvez fosse engano... Mas o.melhor é voltar..,
verificar...
Não, não é engano, que horror! Estalou, é certo. Ao mais
pequeno movimento estala e dobra! Se verga demais, o laço escorrega e eu
esmigalho-me lá embaixo nas pedras da calçada.
Quem me ac...!
E se ela aparece à janela?
Doem-me os braços, já não posso mais!
Mas então é certo!... Mas então vou morrer! Mas não quero,
dessa morte horrível não quero!
E não poder subir...! Talvez com um esforço grande,
apoiando os pés à parede...
Mas o zinco estala cada vez mais, dobra-se todo...!
Se eu batesse as palmas ao guarda-noturno...? Mas como?
Para bater as palmas seria preciso largar a corda...
Se me pudesse segurar com uma só mão, despir-me com a
outra e bater as palmas no...
Mas nem sei o que penso! Não posso suster-me só com um
braço... Sinto faltarem-me as forças!... E se ela abrisse a janela e me visse
nessa posição ridícula?
Agora é que é certo! agora é que tenho de morrer!... E
ninguém, ninguém me salva!
Tenho as mãos a arder; não posso mais.
Quem me dera ter ânimo para gritar!...
Ainda que queira subir já não posso...
E o zinco verga cada vez mais, ao mais pequeno movimento!
Parece-me que sinto passos...! É preciso estar muito
quieto...! Valha-me Deus! O laço já correu um bocadinho...
Os passos aproximam-se... É uma patrulha!
O camaradas!... camaradas!... Pchiu!
Não são ladrões que tenho em casa, não senhor. Não vêm que
estou pendurado?... Acudam depressa!... O zinco está todo dobrado! Depressa!...
Sim, senhor, acompanho-os à esquadra.
E o laço a escorregar!...
Depressa! A porta lá embaixo está aberta.
É só preciso arrombar a cá de cima.
Tolice! Por que não a deixei eu aberta também?
E se alguém me quisesse acudir?
Os passos aproximam-se...
Graças a Deus!... está a porta arrombada!
Acuda! acuda depressa!
Obrigado camarada!... Não ponha o pé no
Meu Deus!
O meu pai, coitadinho!
Que horror!
Ela tem uns olhos azuis tão b...!
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Nota:
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900, extraído da edição de 1974 da Editora Três
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900, extraído da edição de 1974 da Editora Três
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