domingo, 14 de abril de 2013

D. João da Câmara: "A Burrinha Branca"


A BURRINHA BRANCA

Meu avô tinha uma burrinha branca, que parecia um macho.

Era branca e lustrosa como um cotãozinho de serralha, esbelta, com as mãozinhas muito finas, viva, com as orelhitas muito curtas. Uma estampa.

Quando o avô saía nela, não havia general em campo de batalha que mais garboso se apresentasse. Tic-tic! — lá iam os dois pelos caminhos. Vinham as mulheres às portas e era um coro:

— Benza-te Deus, burrinha!

É que tinha uns modos que prendiam o olhar de todos.

Homens havia que embirravam com o avô, por causa daquela fortuna, e diziam ao vê-los:

— Raios os partam!

Mas o velhote não cuidava de mulheres, desprezava invejosos e só pensava na burra.

Chamava-se Pomba, pomba por dentro e por fora, tão branquinha d’alma como de pêlo.

Muito meiga, quando o avô lhe levava a ração, esfregava nele a cabeça, mexia as orelhas e dava ao rabo, que é o modo por que os burros fazem festas à gente. O avô dava-lhe beijos.

Por todas essas aldeias, nunca vi gato nem cão, animalzinho mais querençudo.
Assim passaram muitos meses de muita paz e sossego.

Lá o nosso vizinho sapateiro é que se mordia de inveja. De amarelo que era fez-se verde, de magro um trinca-espinhas. Era dono dum cavalinho lazão, coxo, peludo, calçado de três pés e bebendo em branco.

Pois ainda queria comparar o diabo do homem!...

Ora isto da malha branca da testa correndo pelo focinho até ao beiço é de mau agouro. Diziam os mouros que os cavalos assim marcados tinham na cabeça a mortalha do cavaleiro. Até onde seja verdade não sei; mas vi mais de uma vez o lazão aos coices nas estrelas e o sapateiro no chão com as costelas amolgadas.

Pois, apesar disso, só para fazer rabiar o avô, dizia que não trocava!...

A Pomba era um apetite. Invejavam-lhe ovelhas a mansidão.

O avô calava-se, porque bem conhecia o sapateiro. Ria-se, sem que ninguém desse por isso, que eram tantas as rugas na cara que mais uma, menos uma não fazia diferença. Onde se lhe conhecia a alegria era nos olhos, uns olhitos pequeninos, já sem cor.

A burrinha a trote — tic-tic! — e ele:

— Bons dias, vizinho!

Então o cavalicoque escanzelado, muito malcriado, tinha o mau sestro de rinchar.

O avô não gostava do atrevimento; mas que havia de fazer senão conformar-se com o namoro desaforado de quantos quadrúpedes na terra havia? Era a linda cabecinha branca apontar entre os umbrais da cocheira e logo cada zurro de repicaponto, que, fosse a Pomba como certas mulheres, seria a aldeia um céu aberto.

Ela, muito dengosa — tic-tic! — olhava para todos de soslaio, mas nenhum encarava de fito.

Eu levava-a muita vez a pastar. E, como o avô não queria que ela perdesse um só ponto da reputação, dizia- me sempre:

— Não percas o animaizinho de vista. Não deixes de piar a burra.

Nem o mais pintado se lhe havia de chegar, que eu tinha sempre o olho nela e nunca as peias me haviam esquecido.

Entretanto chegou o mês de abril e toda a charneca se encheu de flores, desde as copas mais altas dos sobreiros até as ervinhas, que se escondem envergonhadas debaixo das moitas.

A burrinha abria muito as ventas, respirando o ar fresco da madrugada, que cheirava a alecrim e a rosmano, que nem eu sei encarecê-lo! Os estevais eram todos em flor e a charneca parecia um mar todo ele verde e branco, quando o vento cursava por essas mesas fora.

Ela gostava de ouvir os passarinhos, que até parece que os entendia. Não há como maus exemplos. Andava azougada e o avô inquieto.

Peia-me a burra — dizia sempre.

Iam tamanhos desaforos pela aldeia...!

Mas quem havia de pensar...?

* * *

Ora, por esse tempo, a Pomba fez quatro anos, o que é também a primavera na vida dos burros.

Uma certa manhã, o sol, depois de três ou quatro dias de chuviscos, apareceu de repente limpo de nuvens e com tanta luz, que as abelhas embebedaram-se todas. Era um zunir lá pelos ares, que até dava alegria à gente. E lá embaixo no montado, ao pé do rio, ainda os rouxinóis se não tinham calado, já os trigueirões andavam cantando. Era dia de festa tanto na terra como no céu!

Ora um homem pode ser marreca, aleijado e feio como eu sou, há coisas que lhe vão direitinhas à alma.

Larguei a burra no ferregial e fui-me deitar debaixo da figueira.

Dizem que o sol, quando nasce, é para todos: por que não havia de haver uns raios para mim? Tanta moça boa na aldeia e eu estropiado, sem me atrever...

Pus-me a olhar para aqueles montes, donde o sol vinha a subir. Um moinho ao longe bracejava, com as velas muito brancas, que mal se viam no céu todo em volta cintado de cor de sangue. Zuniam as abelhas, cantavam os pássaros, e o cheiro das flores, em que me tinha deitado, trepava-me à cabeça. Fechava os olhos encadeados com a luz do céu e punha-me a sonhar. O sol apareceu por detrás do monte, correu uma aragem, as florinhas do rosmano curvaram-se, escondendo-se na troca dos beijos. Passaram no ar duas borboletas brancas, uma atrás da outra, e pelas ervas andavam gafanhotos aos saltos. Eu pensava em muita coisa junta e cantarolava baixinho uma cantiga, que tinha ouvido de longe, num baile da véspera:

Qual a distância e a lonjura
Onde o sentido caminha,
Onde é que ele vai parar,
Isso ninguém adivinha.

Ora, os versos que eu cantava, a burra também os sabia. Tinha-me esquecido peá-la e, quando voltei a mim, não vi da burra nem rastos!

E ali fiquei eu, não sei que tempos, como um simplacheirão, de queixos caídos e mãos a abanar, sem achar uma idéia que me alumiasse, sem ver remédio de vida, a tremer das fúrias do avô.

Depois, muito cozido com as paredes, fui até a cocheira. Talvez a Pomba tivesse tomado o caminho de casa.

O avô, satisfeito como um gato ao borralho e descansando em meu cuidado, assentara a barba sobre o peitilho, e no pátio, sentado no banco de pedra, dormia ao sol.

A burra não estava.

Fui para a charneca. Onde via esteva pisada, procurava achar um rasto. Levava numa palhinha a medida certa da ferradura; mas as poucas horas de sol naquela manhã tinham endurecido a terra.

O sol foi subindo e até ao meio dia andei léguas. O coração batia-me tanto, que me fazia doer. Não parei. Ia a doida, sem destino. Bateram na vida ave-marias. Dei por mim a quatro léguas da aldeia. Calaram-se os pássaros; as papoulas das estevas enrolaram-se para dormir; anoiteceu, e eu deixei-me ficar toda a noite na charneca, a tremer de susto e de frio. Toda a santa noite um mocho piou e eu pensei na coça que me esperava. Se não fosse a marreca, tinha fugido para assentar praça. Uma daquelas só pela fortuna! E toda a noite tive nos ouvidos a mesma cantiga... Mas quem podia adivinhar...?

Era quase madrugada, quando cheguei a casa.

Mal o avô me avistou, bateu-lhe o queixo como em terçãs, e até os beiços se lhe fizeram brancos.

— E a burra? — perguntou.

— Por felicidade, nessa altura, a Pomba entrou no pátio, a passo, de orelha muito murcha, como quem traz peso na consciência.

Foi o que me valeu. Eu, que tanta praga durante a noite lhe rogara, tive até vontade — palavra! — de desatar aos beijos á minha salvadora.

Mas já o avô a tinha agarrado. O desgosto não lhe havia feito esquecer o costume, pelo contrário, e uma melhor matadela de bicho tornava-o ainda mais terno.

O que ele disse á burra! O que ele lhe disse!

* * *

Mas embora o velho perdoasse, o mal estava feito. Breve disso se convenceu. Primeiro foram apenas suspeitas, passados dias uma certeza.

O avô andava envergonhado. Já, quando passava em frente da porta do sapateiro, não largava chalaças para a loja. O caso tinha sido falado. Isto de más-línguas na aldeia!... O avô parecia-lhe que a honra da burra tinha o que quer que fosse com a honra dele. Dantes sempre cantando — tiro-liro-liro! — andava matuto agora. “Quem se ria?... Vão lá saber!” Nasceu-lhe um ódio enorme a todas as cavalgaduras a quem pudesse atribuir a desgraça. Desafogava comigo e dava-me bofetadas, cada vez que dizia “não a peaste!” O asno do moleiro era amarelo com uma cruz nas costas e tinha fama de reqüestado. Nunca mais o pude ver. Contra todos tinha uma pedra no sapato e, quando o lazão rinchava, dizia: “Desavergonhado !“ Mas não desconfiava dele. Tão feio!...

Quis ver se a Pomba se traía. Quando passeava pela aldeia na burrinha, ia-lhe sempre observando qualquer gestozinho das orelhas. E ela muito séria... tic-tic!...

* * *

Uma madrugada vim dar parte ao avô de que havia mais um machinho na cavalariça.

Nem sequer acabou de engolir o copinho de aguardente e atravessou como doido o pátio.

Um macho! Um macho!... Mas então quem?... quem?

A luz da alvorada mal coava pelos intervalos da telha vã, cobertos de teias de aranha, onde se balouçavam palhas. Foi preciso que eu acendesse a candeia.

Como a Pomba enternecida lambia o filhinho!

Era um machinho lazão, muito feio, calçado de três pés, bebendo em branco.

Quando o avô lhe não deu ali um estupor, é porque já não morre.

O caso, é claro, fez bulha, ainda mais do que o primeiro.

Eram quase dez horas da manhã, quando o avô, que se fora encostar na cama, ralado pelo desgosto, ouviu uma voz alegre, que lhe gritava:

— Parabéns!

Veio a porta furioso e mostrou o punho ao sapateiro, que se afastava, findo, a chouto, no lazãozinho coxo peludo, calçado, dos três pés e com a tal malha de mau agouro...

Ora o que desconsolou o avô foi o que me deu alegria para a vida. Aquilo do cavalico que animou-me, porque a burra estava despeada e foi até onde muito bem lhe pareceu. São gostos. Pobrinho duma figa n’alma, no corpo e na algibeira, vivi desde então com uma esperança.

* * *

Quando o marrequita acabou de contar a história, a Caetana que andara servindo os fregueses, pôs-se vermelha.., vermelha...

— Até mais logo — disse ele, saindo.

O diabo do marreca tinha sorte!


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Nota:
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900, extraído da edição de 1974 da Editora Três

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