domingo, 14 de abril de 2013

As Estrelas do Cego: "As Estrelas do Cego"


AS ESTRELAS DO CEGO


Noite de Natal.

Terminara a missa. Repicavam sinos e o povo descia alegre os degraus em ruína da larga escadaria.

A noite era cheia de estrelas, luzes do altar imenso sob o imenso dossel de veludo azul, O céu muito frio parecia rir-se, a piscar os olhinhos alegres.

Ainda nos ecos da alta abóbada em berço ressoavam os últimos cheios do órgão do convento. Pela porta aberta de par em par, onde a multidão se acotovelava à saída, vinha de dentro da igreja um perfume religioso de flores, de fumo de incenso, de cera queimada.

O altar reluzia ao fundo, e as luzes inquietas enchiam de ziguezagues rútilos as lentejoulas e os fios de seda nos mantos bordados da Santa Família e na colcha de damasco do berço pequenino, em que o Menino Jesus dormia.

Tocavam sinos, e os repiques, como foguetes, subiam pelo ar denso da noite fria, entre a algazarra do povo, massa escura caminhando pela noite escura. A larga frontaria da igreja, comida pelo tempo, abafada num velho tapete de musgo, sobressaía no céu em mancha muito negra, donde jorravam feixes luminosos, ondas de harmonias, luz e cânticos de triunfo.
Um pequeno desceu a escada levando um cego pela mão.

Iam fechar-se as portas. Saíam os últimos devotos.

O cego era um velho corcovado, trêmulo, com a face cheia de rugas cruzadas, como um pedaço de papel amachucado. Os olhos sem luz voltava-os para o céu, meneando a cabeça constantemente, como se procurasse... o quê? E sorria. Dava a mão ao petizinho e descia os degraus tateando-os com o pé.

— Ainda mais um, avô... E outro... E outro.

Fechou-se a igreja, o candeeiro da esquina mal alumiava o adro.

E o cego sorria e afagava a mão do pequeno.

O povo espalhou-se pelas ruas. Eram como estilhaços de alegria por toda a cidade.

Vinha a gente descendo pelos becos angulosos, pelas travessas em declive rápido. E parecia que todos levavam n’alma um pedaço de luz daquela noite em Belém cantada nos evangelhos, da alegria daquela música ouvida no templo, quando os sinos repicaram e o coro entoou o Gloria in excelsis! Todos falavam, todos riam, muitos cantavam. Era a ceia pronta em casa, era o dia seguinte todo ele inteirinho de descanso!

Noite de Natal! Noite de Natal!

E eu fui por ali abaixo também, atrás do cego.

O pequenito teria oito anos. Loiro. De olhos azuis. Olhava para as estrelas a rirem lá em cima.

Os olhos tinham a cor do céu, e o que neles brilhava tanto podia ser o reflexo das estrelas como a luz plácida da sua almazinha.

Caminhavam os dois por ali abaixo e conversavam. A voz trêmula do velho replicava compassadamente o pequenino. E o que ele dizia com a sua vozita infantil, linda como um trinado, devia de soar aos ouvidos do avô ainda como um cântico, como se um anjo daqueles, que haviam aos pastores anunciado a vinda do Senhor, houvesse ficado na terra; porque o cego continuava sorrindo e, ao descer pelos becos escuros e tortuosos, afagando a mão do netinho, fitava os olhos condenados às trevas lá em cima, lá muito em cima, donde vinha aquela luz toda, que alegrava os olhos da criança.

Conversavam os dois contentes. Eu ouvia bocadinhos do que diziam, palavras soltas, por onde, mais ou menos, reconstituía a conversação.

Esperava-os em casa a mãe do pequeno, filha do cego. Os dois levavam fome. A mulher ficara em casa fazendo a  ceia. E ao velho ouvi dizer, uma ou duas vezes, gulosamente:

— A canja.

E o pequeno:

— Degrau, avozinho.

E o cego, muito atento, vagarosamente, tateava o degrau com o pé, afagando a mão do neto, cantarolando. Pelos becos, pelas travessas, sob os arcos dos pátios irregulares, cheios de sombras, disseminara-se a gente. Íamos agora sós, nós três, naquele caminho.

Ouviam-se ainda passos ao longe, ecos de vozes, uma ou outra guitarra em lojas fechadas, onde brilhavam as frinchas das portas; de quando em quando, um bater de palmas ao guarda-noturno, passos correndo, um tinir de chaves. Um galo cantou numa trapeira.

— E tarde disse o velho.

Caminhavam mais depressa agora.

E eu ia andando atrás deles, sem saber por que, atraído talvez pela doçura do quadro, pelo encanto do grupo, pela meiguice das vozes, por ver tanta alegria onde tanta miséria se cuidava, tanta paz nas almas, onde tanta dor devia de supor-se.

Passei-lhes adiante. Esperei junto de um candeeiro. Queria ver-lhes ainda uma vez os rostos.

O cego continuava a olhar para o céu, meneando a cabeça. O pequenito ao lado, agora que na rua tinham acabado os tropeços, olhava para onde olhava o cego.

A cabeleira loira, toda em anéis, não lhe cabia dentro do chapéu e caía-lhe, revolta, pela testa, ao longo das faces; pelas costas.

Era lindo, lindo! E o cego, que o não via, continuava a sorrir!

Deixei-os passar adiante.

A rua alargava-se entre casarias irregulares. Caminhavam mais à vontade agora, mas tinham-se calado. Culpa talvez da minha indiscrição.

Faziam eco no silêncio da noite os nossos passos sobre a calçada, na rua deserta.

Pararam. O velho bateu cinco argoladas à porta de uma casa esguia, com grades de madeira nas janelas cheias de vasos. Passados poucos segundos, ouviu-se a pancada violenta do trinco puxado com força desde lá de cima.

O cego e o pequeno desapareceram na escuridão da escada. A porta bateu com estrondo.

Ouvi ainda o velho cantarolando, enquanto subia. Pouco a pouco a voz sumiu-se. Encostei o ouvido à fechadura: uma bulha de passos apagando-se, mais e mais, a cada volta da escada; uma voz muito alegre — devia de ser a da mãe do pequeno recebendo-os — palavras que não percebi... E fechou-se lá em cima uma porta.

***

Então passei para o outro lado da rua e fiquei-me a olhar para aquela casa.

Era noite de Natal, noite de festa, noite cantada pelos poetas. Talvez as cordas da minh’alma vibrassem ainda em uníssono com os cantos daquelas vozes tão devotas, singelamente entoados por detrás das grades do coro, hinos muito simples ao Deus Menino nascido.

No céu de imaculada pureza as estrelas vibravam raios de luz intensíssima. Fazia frio.

E eu quedava-me a olhar para aquela casa, tão pobrezinha, tão velha, tão escura, tão cheia de flores de alto a baixo!

Uma janela no telhado iluminou-se.

Começava a ceia do velho. Eu reconstituía o grupo dos três: a mesa encostada à parede na trapeira muito baixa, o velho aspirando os perfumes da sopa, a terrina sobre a toalha muito branca, o pequeno defronte do avô, e a mulher a sorrir-lhes, ouvindo-lhes as histórias, o trono, o presépio, a missa, o canto das freiras, a vinda por ali abaixo a horas mortas, a minha perseguição.

E o pai do pequeno? Ah! sim, esse também lá estava... Pois quem trabalha para sustentar a alegria naquelas almas?... Santa família!

Que deliciosa ceia! Que paz tranqüila! Que boa noite de Natal!

Tanto falava o cego na canja, rua afora, pela mão do pequeno! Quem não tem olhos, tem melhor paladar.

E o pequeno como devora! E que é tarde e não costuma estar de vela àquelas horas! Comprida manhã terá na cama. Já os olhitos se lhe começam a fechar.

E o pai e a mãe a rirem, contentes de os verem assim!

Que boa noite de Natal!

Fitara os olhos na janela, já não sabia dali apartá-los. Também eu agora olhava para cima, como ainda agora o pequeno para as estrelas, o cego não sei para onde.

Por que olhava o cego para o céu?

Tornou o galo a cantar. Ouvi-o, ao longe, mais alegre, como quem já adivinha a madrugada.

Há quanto tempo estava eu ali? Por que olhava para aquela trapeira?

Encaminhei-me vagarosamente para casa.

Havia tantas estrelas no céu! Como era linda a noite de Natal! Como tinha razão o pequenito dos cabelos loiros de olhar para as estrelas! Que quantidade de luz! Tantas! Tantas!... Talvez o pequeno se lhe metesse em cabeça de contá-las! Houve uma, quando vínhamos pela travessa abaixo, que passou correndo, deixando um rastro muito longo... Era como a estrela dos Reis Magos. Que luz não tinham os olhos do pequenito! E o cego sorrindo ao pé dele, com os olhos tenebrosos postos no céu! Por quê? E que se lhe voltavam para lá os olhos d’alma, é que na alma tinha ele mais luz do que o pequeno nos olhos.

E vejo-os ainda a descerem pelos becos, o velho meneando a cabeça, o pequenito a dar-lhe a mão — “Degrau, avozinho” — ambos com os olhos no céu, a estrela a correr...


Que lindas estrelas vê o cego!


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Nota:
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900, extraído da edição de 1974 da Editora Três

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