
VIDROS QUEBRADOS
— Homem, cá para mim isto de
casamentos são coisas talhadas no céu. É o que diz o povo, e diz bem. Não há
acordo nem conveniência nem nada que faça um casamento, quando Deus não quer...
— Um casamento bom, emendou um dos interlocutores.
— Bom ou mau, insistiu o orador.
Desde que é casamento é obra de Deus. Tenho
em mim mesmo a prova. Se querem, conto-lhes... Ainda é cedo para o
voltarete. Eu estou abarrotado...
Venâncio é o nome deste cavalheiro.
Está abarrotado, porque ele e três amigos acabavam de jantar. As senhoras foram
para a sala conversar do casamento de uma vizinha, moça teimosa como trinta
diabos, que recusou todos os noivos que o pai lhe deu, e acabou desposando um
namorado de cinco anos, escriturário no Tesouro. Foi à sobremesa que este
negócio começou a ser objeto de palestra. Terminado o jantar, a companhia
bifurcou-se; elas foram para a sala, eles para um gabinete, onde os esperava o voltarete
habitual. Aí o Venâncio enunciou o princípio da origem divina dos matrimônios, princípio
que o Leal, sócio da firma Leal & Cunha, corrigiu e limitou aos matrimônios
bons. Os maus, segundo ele explicou daí a pouco, eram obra do diabo.
— Vou dar-lhes a prova, continuou o
Venâncio, desabotoando o colete e encostando
o braço no peitoril da janela que abria para o jardim. Foi no tempo da Campestre...
Ah! os bailes da Campestre! Tinha eu então vinte e dois anos. Namorei-me ali de
uma moça de vinte, linda como o sol, filha da viúva Faria. A própria viúva,
apesar dos cinqüenta feitos, ainda mostrava o que tinha sido. Vocês podem
imaginar se me atirei ou não ao namoro...
— Com a mãe?
— Adeus! Se dizem tolices, calo-me.
Atirei-me à filha; começamos o namoro logo na primeira noite; continuamos,
correspondemo-nos; enfim, estávamos ali, estávamos apaixonados, em menos de
quatro meses. Escrevi-lhe pedindo licença para falar à mãe; e, com efeito,
dirigi uma carta à viúva, expondo os meus sentimentos, e dizendo que seria uma
grande honra, se me admitisse na família. Respondeu-me oito dias depois que
Cecília não podia casar tão cedo, mas que, ainda podendo, ela tinha outros
projetos, e por isso sentia muito, e pedia-me desculpa. Imaginem como fiquei!
Moço ainda, sangue na guelra, e demais apaixonado, quis ir à casa da viúva,
fazer uma estralada, arrancar a moça, e fugir com ela. Afinal, sosseguei e
escrevi a Cecília perguntando se consentia que a tirasse por justiça. Cecília
respondeu-me que era bom ver primeiro se a mãe
voltava atrás; não queria dar-lhe desgostos,
mas jurava-me pela luz que a estava alumiando, que seria minha e só minha...
voltava atrás; não queria dar-lhe desgostos,
mas jurava-me pela luz que a estava alumiando, que seria minha e só minha...
Fiquei contente com a carta, e
continuamos a correspondência. A viúva, certa da paixão da filha, fez o diabo. Começou por não
ir mais à Campestre; trancou as janelas, não ia a parte nenhuma; mas nós
escrevíamos um ao outro, e isso bastava. No fim de algum tempo, arranjei meio
de vê-la, à noite, no quintal da casa. Pulava o muro de uma chácara vizinha,
ajudado por uma boa preta da casa. A primeira coisa que a preta fazia era
prender o cachorro; depois, dava-me o sinal, e ficava de vigia. Uma noite,
porém, o cachorro soltou-se e veio a mim. A viúva acordou com o barulho, foi à
janela dos fundos, e viu-me saltar o muro, fugindo. Supôs naturalmente que era um ladrão; mas no
dia seguinte, começou a desconfiar do caso, meteu a escrava em confissão, e o
demônio da negra pôs tudo em pratos
limpos. A viúva partiu para a filha:
— Cabeça de vento! peste! isto são
coisas que se façam? foi isto que te ensinei? Deixa estar; tu me pagas, tão
duro como osso! Peste! peste!
A preta apanhou uma sova que não lhes
digo nada: ficou em sangue. Que a tal mulherzinha era das arábias! Mandou
chamar o irmão, que morava na Tijuca, um José Soares, que era então comandante
do 6º batalhão da Guarda Nacional; mandou-o chamar, contou-lhe tudo, e
pediu-lhe conselho. O irmão respondeu que o melhor era casar Cecília sem
demora; mas a viúva observou que, antes de aparecer noivo, tinha medo que eu
fizesse alguma, e por isso tencionava retirá-la de casa, e mandá-la para o
convento da Ajuda; dava-se com as madres principais...
Três dias depois, Cecília foi
convidada pela mãe a aprontar-se, porque iam passar duas semanas na Tijuca. Ela
acreditou, e mandou-me dizer tudo pela mesma preta, a quem eu jurei que daria a
liberdade, se chegasse a casar com a sinhá-moça. Vestiu-se, pôs a roupa
necessária no baú, e entraram no carro que as esperava. Mal se passaram cinco
minutos, a mãe revelou tudo à filha; não ia levá-la para a Tijuca, mas para o
convento, de onde sairia quando fosse tempo de casar. Cecília ficou
desesperada. Chorou de raiva, bateu o pé, gritou, quebrou os vidros do carro,
fez uma algazarra de mil diabos. Era um escândalo nas ruas por onde o carro ia
passando. A mãe já lhe pedia pelo amor de Deus que sossegasse; mas era inútil.
Cecília bradava, jurava que era asneira arranjar noivos e conventos; e ameaçava
a mãe, dava socos em si mesma... Podem imaginar o que seria.
Quando soube disto não fiquei menos
desesperado. Mas, refletindo bem compreendi que a situação era melhor; Cecília
não teria mais contemplação com a mãe, e
eu podia tirá-la por justiça. Compreendi também que era negócio que não podia
esfriar. Obtive o consentimento dela, e tratei dos papéis. Falei primeiro ao Desembargador
João Regadas, pessoa muito de bem, e que me conhecia desde pequeno. Combinamos
que a moça seria depositada na casa dele. Cecília era agora a mais apressada;
tinha medo que a mãe a fosse buscar, com um noivo de encomenda; andava
aterrada, pensava em mordaças, cordas... Queria sair quanto antes.
Tudo correu bem. Vocês não imaginam o
furor da viúva, quando as freiras lhe mandaram dizer que Cecília tinha sido
tirada por justiça. Correu à casa do desembargador,
exigiu a filha, por bem ou por mal; era sua, ninguém tinha o direito de lhe
botar a mão. A mulher do desembargador foi que a recebeu, e não sabia que
dizer; o marido não estava em casa. Felizmente, chegaram os filhos, o Alberto,
casado de dois meses, e o Jaime, viúvo, ambos advogados, que lhe fizeram ver a
realidade das coisas; disseram-lhe que era tempo perdido, e que o melhor era
consentir no casamento, e não armar escândalo. Fizeram-me boas ausências; tanto
eles como a mãe afirmaram-lhe que eu, se não tinha posição nem família, era um
rapaz sério e de futuro. Cecília foi chamada à sala, e não fraqueou: declarou que, ainda que o céu lhe
caísse em cima, não cedia nada. A mãe saiu como uma cobra.
Marcamos o dia do casamento. Meu pai,
que estava então em Santos, deu-me por carta o seu consentimento, mas
acrescentou que, antes de casar, fosse vê-lo; podia ser até que ele viesse
comigo. Fui a Santos. Meu pai era um bom velho, muito amigo dos filhos, e muito sisudo também.
No dia seguinte ao da minha chegada, fez-me um longo interrogatório acerca da
família da noiva. Depois confessou que
desaprovava o meu procedimento.
— Andaste mal, Venâncio; nunca se
deve desgostar uma mãe...
— Mas se ela não queria?
— Havia de querer, se fosses com bons
modos e alguns empenhos. Devias falar a pessoa de tua amizade e da amizade da
família. Esse mesmo desembargador podia fazer muito. O que acontece é que vais
casar contra a vontade da tua sogra, separas a mãe da filha, e ensinaste a tua
mulher a desobedecer. Enfim, Deus te faça feliz. Ela é bonita?
— Muito bonita.
— Tanto melhor.
Pedi-lhe que viesse comigo, para
assistir ao casamento. Relutou, mas acabou cedendo; impôs só a condição de
esperar um mês. Escrevi para a Corte, e esperei as quatro mais longas semanas da minha vida.
Afinal chegou o dia, mas veio um desastre, que me atrapalhou tudo. Minha mãe
deu uma queda, e feriu-se gravemente;
sobreveio erisipela, febre, mais um mês de demora, e que demora! Não morreu,
felizmente; logo que pôde viemos todos juntos para a Corte, e hospedamo-nos no
Hotel Pharoux; por sinal que assistiram, no mesmo dia, que era o 25 de março, à
parada das tropas no Largo do Paço.
Eu é que não me pude ter, corri a ver
Cecília. Estava doente, recolhida ao quarto; foi a mulher do desembargador que me recebeu,
mas tão fria que desconfiei. Voltei no dia seguinte, e a recepção foi ainda
mais gelada. No terceiro dia, não pude mais e perguntei se Cecília teria feito
as pazes com a mãe, e queria desfazer o casamento. Mastigou e não respondeu
nada. De volta ao hotel, escrevi uma longa carta a Cecília; depois, rasguei-a,
e escrevi outra, seca, mas suplicante, que me dissesse se deveras estava
doente, ou se não queria mais casar. Responderam-me
vocês? Assim me respondeu ela.
— Tinha feito as pazes com a mãe?
— Qual! Ia casar com o filho viúvo do
desembargador, o tal que morava com o pai. Digam-me, se não é mesmo obra
talhada no céu?
— Mas as lágrimas, os vidros
quebrados?...
— Os vidros quebrados ficaram
quebrados. Ela é que casou com o filho do depositário, daí a seis semanas...
Realmente, se os casamentos não fossem talhados
no céu, como se explicaria que uma moça, de casamento pronto, vendo pela
primeira vez outro sujeito, casasse com ele, assim de pé para mão? É o que lhes
digo. São coisas arranjadas por Deus. Mal comparado, é como no voltarete: eu
tinha licença em paus, mas o filho do desembargador, que tinha outra em copas,
preferiu e levou o bolo.
— É boa! Vamos à espadilha.
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em Gazeta Literária, em 15/10/1883.
Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em Gazeta Literária, em 15/10/1883.
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