UM SONHO E OUTRO SONHO
Crês em sonhos? Há pessoas que os
aceitam como a palavra do destino e da verdade. Outros há que os desprezam. Uma
terceira classe explica-os,
atribuindo-os a causas naturais. Entre tantas opiniões não quero saber da tua, leitora, que
me lês, principalmente se és viúva,
porque a pessoa a quem aconteceu o que vou dizer era viúva, e o assunto pode interessar mais
particularmente às que perderam os maridos. Não te peço opinião, mas atenção.
Genoveva, vinte e quatro anos, bonita
e rica, tal era a minha viúva. Três
anos de viuvez,
um de véu
longo, dois de simples vestidos pretos,
chapéus pretos, e olhos pretos, que vinham do consórcio e do berço. A diferença
é que agora olhavam para o chão, e, se olhavam para alguma coisa ou alguém, eram sempre
tristes, como os que já não têm consolação na terra nem provavelmente no céu.
Morava em uma casa escondida, para os lados do Engenho Velho, com a mãe e os
criados. Nenhum filho. Um que lhe devia nascer, foi absorvido pelo nada; tinha cinco meses de gestação.
O retrato do marido, bacharel
Marcondes, ou Nhonhô, pelo nome familiar,
vivia no quarto dela, pendente da parede, moldura de ouro, coberta de crepe.
Todas as noites, Genoveva, depois de rezar a Nossa Senhora, não se deitava sem
lançar o último olhar ao retrato, que parecia
olhar para ela. De manhã o primeiro olhar era para ele. Quando o tempo veio amortecendo o efeito da
dor, esses gestos diminuíram naturalmente e acabaram; mas a imagem vivia no coração. As mostras externas não diminuíam a
saudade.
Rica? Não, não era rica, mas tinha
alguma coisa; tinha o bastante para
viver com a mãe, à larga. Era, conseguintemente, um bom negócio para qualquer
moço ativo, ainda que não tivesse nada de seu; melhor ainda para quem possuísse
alguma coisa, porque as duas bolsas fariam uma grande bolsa, e a beleza da
viúva seria a mais valiosa moeda do
pecúlio. Não lhe faltavam pretendentes de toda a espécie, mas todos perdiam o
tempo e o trabalho. Carlos, Roberto, Lucas, Casimiro e outros muitos nomes
inscreviam-se no livro dos passageiros,
e iam-se embora sem esperanças. Alguns nem levavam saudades. Muitos as levavam
em grande cópia e das mais tristes. Genoveva não se deixou prender de ninguém.
Um daqueles candidatos, Lucas, pôde
saber da mãe de Genoveva algumas circunstâncias da vida e da morte do finado
genro. Lucas tinha ido pedir licença à boa senhora para solicitar a mão da
filha. Não havia necessidade, pois que a viúva dispunha de si; mas a incerteza de ser aceito sugeriu-lhe esse
alvitre, a fim de ver se ganhava a boa vontade e intercessão da mãe.
— Não lhe dou tal conselho, respondeu
esta.
— De pedi-la em casamento?
— Sim; ela deu-lhe alguma esperança?
Lucas hesitou.
— Vejo que não lhe deu nenhuma.
— Devo ser verdadeiro. Esperanças,
não tenho; não sei se D. Genoveva me perdoa, ao menos, a afeição que me
inspirou.
— Pois não lhe peça nada.
— Parece-lhe que...
— Que perderá o tempo. Genoveva não
casará nunca mais. Até hoje tem a imagem do marido diante de si, vive da
lembrança dele, chora por ele, e nunca se unirá a outro.
— Amaram-se muito?
— Muito. Imagine uma união que apenas
durou três anos. Nhonhô, quando morreu, quase que a levou consigo. Viveram como
dois noivos; o casamento foi até
romanesco. Tinham lido não sei que romance, e aconteceu que a mesma linha da
mesma página os impressionou igualmente;
ele soube disso lendo uma carta que ela escrevera
a uma amiga. A amiga atestou a verdade, porque ouvira a confissão de Nhonhô,
antes de lhe mostrar a carta. Não sei que palavras foram, nem que romance era.
Nunca me dei a essas leituras. Mas
naturalmente eram palavras ternas. Fosse o que fosse, apaixonaram-se um pelo
outro, como raras vezes vi, e casaram-se para ser felizes por longos anos.
Nhonhô morreu de uma febre perniciosa. Não pode imaginar como Genoveva sofreu.
Quis ir com o cadáver, agarrou-se ao
caixão, perdeu os sentidos, e esteve fora de si quase uma semana. O tempo e os
meus cuidados, além do médico, é que puderam vencer a crise. Não chegou a ir à
missa; mandamos dizer uma, três meses depois.
A mãe exagerava no ponto de dizer que
foi a frase do romance que ligou a filha
ao marido; eles tinham naturalmente inclinação. A frase não fez mais que falar por eles. Nem por isso
tira o romanesco de Genoveva e do finado Marcondes, que fizera versos aos
dezoito anos, e, aos vinte, um romance, A bela do Sepulcro, cuja heroína
era uma moça que, havendo perdido o esposo, ia passar os dias no cemitério, ao pé da sepultura dele. Um moço, que ia
passar as tardes no mesmo cemitério, ao pé da sepultura da noiva, viu-a e
admirou aquela constância póstuma, tão
irmã da sua; ela o viu também, e a identidade da situação os fez amados um do
outro. A viúva, porém, quando ele a pediu em casamento, negou-se e morreu oito
dias depois.
Genoveva tinha presente este romance
do marido. Havia-o lido mais de vinte vezes, e nada achava tão patético nem
mais natural. Mandou fazer uma edição
especial, e distribuiu exemplares a todos os amigos e conhecidos da família. A piedade conjugal
desculpava esse obséquio pesado, ainda que gratuito. A bela
do sepulcro era ilegível. Mas não se conclua daí que o autor, como homem espirituoso,
era inferior às saudades da viúva.
Inteligente e culto, cometera aquele pecado literário, que, nem por ser grande, o teria
levado ao purgatório.
Três anos depois de viúva,
apareceu-lhe um pretendente. Era bacharel,
como o marido, tinha trinta anos, e advogava com tanta felicidade e real
talento que contava já um bom pecúlio. Chamava-se Oliveira. Um dia, a mãe de
Genoveva foi demandada por um parente que
pretendia haver duas casas dela, por transações feitas com o marido. Querendo
saber de um bom advogado, inculcaram-lhe Oliveira, que em pouco tempo venceu a
demanda. Durante o correr desta,
Oliveira foi duas vezes à casa de Genoveva, e só a viu da segunda; mas foi
quanto bastou para achá-la interessantíssima, com os seus vestidos pretos, tez
muito clara e olhos muito grandes. Vencida a demanda, a constituinte meteu-se
em um carro e foi ao escritório de Oliveira, para duas coisas, agradecer-lhe e
remunerá-lo.
— Duas pagas? retorquiu ele rindo. Eu
só recebo uma — agradecimentos ou
honorários. Já tenho os agradecimentos.
— Mas...
— Perdoe-me isto, mas a sua causa era
tão simples, correu tão depressa, deu-me tão pouco trabalho, que seria
injustiça pedir-lhe mais do que a sua estima. Dá-me a sua estima?
— Seguramente, respondeu ela.
Quis ainda falar, mas não achava
palavras, e saiu convencida de que era chegado o reino de Deus. Entretanto,
querendo fazer uma fineza ao generoso advogado, resolveu dar-lhe um jantar,
para o qual convidou algumas famílias íntimas. Oliveira recebeu o convite com alacridade.
Não gostava de perfumes nem adornos; mas nesse dia borrifou o lenço com Jockey
Club e pôs ao peito uma rosa amarela.
Genoveva recebeu o advogado como
recebia outros homens; a diferença, porém, entre ele e os outros é que estes
apresentavam logo no primeiro dia as
credenciais, e Oliveira não pedia sequer audiência. Entrou como um estrangeiro
de passagem, curioso, afável, interessante, tratando as coisas e pessoas como
os passageiros em trânsito pelas cidades
de escala. Genoveva teve excelente impressão do homem; a mãe estava encantadíssima.
— Enganei-me, pensou Genoveva,
recolhendo-se ao quarto. Cuidei que era
outro pedido, entretanto... Mas, por que motivo fez o que fez, e aceitou o jantar de mamãe?
Chegou a suspeitar que a mãe e o advogado
estavam de acordo, que ela não fizera mais que buscar ocasião de os apresentar
um ao outro, e travar relações. A suspeita cresceu quando, dias depois, a mãe
falou em visitar a mãe de Oliveira, com
quem este vivia; mas a prontidão com que aceitou as suas razões de negativa
tornou a moça perplexa. Genoveva
examinou o caso e reconheceu que atribuía à mãe um papel menos próprio; varreu-se-lhe a
suposição. Demais (e isto valia por muito), as maneiras do homem estavam em
desacordo com quaisquer projetos.
Travadas as relações, bem depressa as
duas famílias se visitavam, e a miúdo. Oliveira residia longe; mas achou casa
perto e mudou-se. As duas mães achavam-se reciprocamente encantadoras, e tanto
a de Genoveva gostava de Oliveira, como a de Oliveira gostava de Genoveva. Tudo
isto vai parecendo simétrico; mas eu não tenho modo de contar diferentemente coisas que se
passaram assim, ainda que reconheça a conveniência de as compor algo. Quanto
menos, falta-me tempo... A verdade é que
as duas matronas se amavam e trabalhavam para fazer os filhos encontradiços.
Um, dois, três meses correram, sem
que Oliveira revelasse a menor inclinação à viuvinha. Entretanto, as horas
passadas com ele, em qualquer das casas, não podiam ser mais deleitosas.
Ninguém sabia encher o tempo tão bem, falando a cada uma das pessoas a sua própria
linguagem. Durante esse prazo teve Genoveva ainda um pretendente, que não
recebeu melhor agasalho; parece até que tratou a este com uma sombra de
despeito e irritação inexplicáveis, não só para ele, como para ela própria.
— Realmente, o pobre diabo não tem
culpa que eu seja viúva, disse ela consigo.
“Que eu seja bonita”, é o que ela
devia dizer, e pode ser que tal idéia chegasse a bater as asas, para
atravessar-lhe o cérebro; mas, há certa modéstia inconsciente, que faz evitar
confissões, não digo presumidas, mas orgulhosas. Seja o que for, Genoveva
chegou a ter pena do pretendente.
— Por que não se portou ele como o
Oliveira, que me respeita? continuou consigo.
Entrara o quarto mês das relações, e
o respeito do advogado não diminuiu. Jantaram juntos algumas vezes, e chegaram
a ir juntos ao teatro. Oliveira abriu
até um capitulo de confidências com ela, não amorosas, é claro, mas de
sensações, de impressões, de cogitações. Um dia, disse-lhe que, em pequeno, tivera
desejo de ser frade; mas levado ao
teatro, e assistindo à comédia do Pena, O Noviço, o espetáculo
do menino, vestido de frade, e correndo pela sala, a bradar: eu quero ser
frade! eu quero ser frade! fez-lhe perder todo o gosto da profissão.
— Achei que não podia vestir um
hábito assim profanado.
— Profanado, como? O hábito não tinha
culpa.
— Não tinha culpa, é verdade; mas eu
era criança, não podia vencer essa
impressão infantil. E parece que foi bom.
— Quer dizer que não seria bom frade?
— Podia ser que fosse sofrível; mas
eu quisera sê-lo excelente.
— Quem sabe?
— Não; dei-me tão bem com a vida do
foro, com esta chicana da advocacia, que não é provável tivesse a vocação
contemplativa tão perfeita como quisera.
Há só um
caso em que
eu acabaria num convento.
— Qual?
Oliveira hesitou um instante.
— Se enviuvasse, respondeu.
Genoveva, que sorria, aguardando a
resposta, fez-se rapidamente séria, e não retorquiu. Oliveira não acrescentou
nada, e a conversa naquele dia acabou menos expressiva que das outras vezes.
Posto que tivesse o sono pronto, Genoveva não dormiu logo que se deitou; ao
contrário, ouviu dar meia-noite, e esteve ainda muito tempo acordada.
Na manhã seguinte, a primeira coisa
em que pensou foi justamente na
conversação da véspera, isto é, naquela última palavra de Oliveira. Que havia nela? Aparentemente, pouco; e pode
ser que, na realidade, ainda menos. Era
um sentimento de homem que não admitia o mundo, depois de roto o consórcio; e
iria refugiar-se na solidão e na religião.
Confessemos que não basta para explicar a preocupação da nossa viúva. A viúva,
entretanto, não viveu de outra coisa, durante esse dia, salvo o almoço e o
jantar, que ainda assim foram quase silenciosos.
— Estou com dor de cabeça, respondeu
à mãe, para explicar as suas poucas
palavras.
— Toma antipirina.
— Não, isto passa.
E não passava. “Se enviuvasse, ele ia
meter-se em um convento”, pensava Genoveva; logo, era uma censura a ela, por
não ter feito o mesmo. Mas que razão havia para desejá-la recolhida a um
mosteiro? Pergunta torta; parece que a
pergunta direita seria outra: “Que razão haveria para não desejá-la recolhida a um
mosteiro?” Mas se não era direita, era natural, e o natural é muitas vezes
torto. Pode ser até que, bem exprimidas as primeiras palavras, deixem o sentido
das segundas; mas, eu não faço aqui
psicologia, narro apenas.
Atrás daquele pensamento, veio outro
mui diverso. Talvez que ele tivesse tido alguma paixão, tão forte, que, se
casasse e enviuvasse... E por que não a teria ainda agora? Pode ser que amasse
a alguém, que pretendesse casar, e que, se acaso perdesse a mulher amada, fugisse
ao mundo para sempre. Confessara-lhe isto, como usava fazer a outros respeitos,
como lhe confessava opiniões, que dizia não repetir a ninguém mais. Essa
explicação, posto que natural, atordoou Genoveva
ainda mais que a primeira.
— Afinal, que tenho eu com isto? Faz
muito bem.
Passou mal a noite. No dia seguinte
foi com a mãe fazer compras à Rua do Ouvidor, demorando-se muito, sem saber
porquê, e olhando para todos os lados, sempre que saía de uma loja. Passando
por um grupo estremeceu e olhou para as pessoas que falavam, mas não conheceu nenhuma. Tinha ouvido, entretanto, a
voz de Oliveira. Há vozes parecidas com outras, que enganam muito, ainda quando
a gente vai distraída. Há também ouvidos
mal educados.
A declaração de Oliveira de que
entraria para um convento, se chegasse a enviuvar, não saía da cabeça de
Genoveva. Passaram-se alguns dias sem
ver o advogado. Uma noite, depois de cuidar no caso, Genoveva olhou para o
retrato do marido antes de deitar-se; repetiu a ação no dia seguinte, e o
costume dos primeiros tempos da viuvez
tornou a ser o de todas as noites. De uma vez, mal adormecera, teve um sonho extraordinário.
Apareceu-lhe o marido, vestido de
preto, como se enterrara, e pôs-lhe a mão na cabeça. Estavam em um lugar que
não era bem sala nem bem rua, uma coisa intermédia, vaga, sem contornos
definidos. O principal do sonho era o finado, cara pálida, mãos pálidas, olhos vivos, é certo, mas de uma tristeza de morte.
— Genoveva! disse-lhe ele.
— Nhonhô! murmurou ela.
— Para que me perturbas a vida da
morte, o sono da eternidade?
— Como assim?
— Genoveva, tu esqueceste-me.
— Eu?
— Tu amas a outro.
Genoveva negou com a mão.
— Nem ousas falar, observou o
defunto.
— Não, não amo, acudiu ela.
Nhonhô afastou-se um pouco, olhou
para a antiga esposa, abanou a cabeça incredulamente, e cruzou os braços.
Genoveva não podia fitá-lo.
— Levanta os olhos, Genoveva.
Genoveva obedeceu.
— Ainda me amas?
— Oh! ainda! exclamou Genoveva.
— Apesar de morto, esquecido dos
homens, hóspede dos vermes?
— Apesar de tudo!
— Bem, Genoveva; não te quero forçar
a nada, mas se é verdade que ainda me amas, não conspurques o teu amor com as
carícias de outro
homem.
— Sim.
— Juras?
— Juro.
O finado estendeu-lhe as mãos, e
pegou nas dela; depois, enlaçando-a pela cintura, começou uma valsa rápida e
lúgubre, giro de loucos, em que Genoveva não podia fitar nada. O espaço já não
era sala, nem rua, nem sequer praça; era um campo que se alargava a cada giro dos dois, por modo que, quando estes
pararam, Genoveva achou-se em uma vasta planície, semelhante a um mar sem
praias; circulou os olhos, a terra
pegava com o céu por todos os lados. Quis gritar; mas sentiu na boca a mão fria do
marido que lhe dizia:
— Juras ainda?
— Juro, respondeu Genoveva.
Nhonhô tornou a pegar-lhe da cintura,
a valsa recomeçou, com a mesma vertigem de giros, mas com o fenômeno contrário,
em relação ao espaço. O horizonte estreitou-se a mais e mais, até que eles se acharam numa simples sala, com este apêndice:
uma eça e um caixão aberto. O defunto
parou, trepou ao caixão, meteu-se nele, e fechou-o; antes de fechado, Genoveva viu a mão
do defunto, que lhe dizia adeus. Soltou
um grito e acordou.
Parece que, antes do grito final,
soltara outros de angústia, porque quando acordou, viu já ao pé da cama uma
preta da casa.
— Que foi, Nhanhã?
— Um pesadelo. Eu disse alguma coisa?
falei? gritei?
— Nhanhã gritou duas vezes, e agora
outra vez,
— Mas foram palavras?
— Não, senhora; gritou só.
Genoveva não pôde dormir o resto da
noite. Sobre a manhã chegou a conciliar o sono, mas este foi interrompido e
curto.
Não referiu à mãe os pormenores do sonho;
disse só que tivera um pesadelo. De si para si, aceitou aquela visão do marido
e as suas palavras, como determinativas
do seu proceder. Ao demais, jurara, e este vínculo era indestrutível.
Examinando a consciência, reconheceu que estava prestes a amar a Oliveira, e
que a notícia desta afeição, ainda mal
expressa, tinha chegado ao mundo onde vivia o marido. Ela cria em sonhos; tinha para si que eles eram
avisos, consolações e castigos. Havia-os
sem valor, sonhos de brincadeira; e ainda esses podiam ter alguma significação. Estava dito;
acabaria com aquele princípio de qualquer coisa que Oliveira conseguira
inspirar-lhe e tendia a crescer.
Na seguinte noite, Genoveva
despediu-se do retrato do marido, rezou por ele, e meteu-se na cama com receio.
Custou-lhe dormir, mas afinal o sono fechou-lhe os lindos olhos e a alma
acordou sem ter sonhado nada, nem mal nem bem; acordou com a luz do sol que lhe
entrava pelas portas das janelas.
Oliveira deixara de ir ali uma
semana. Genoveva espantou-se da ausência; a mãe quis ir à casa dele saber se
era alguma doença, mas a filha tirou-lhe
a idéia da cabeça. No princípio da outra semana, apareceu ele com a mãe, tinha
tido um resfriamento que o reteve na cama
três dias.
— Eu não disse? acudiu a mãe de
Genoveva. Eu disse que havia de ser
negócio de doença, porque o doutor não deixa de vir tanto tempo...
— E a senhora não acreditou?
perguntou Oliveira à linda viúva.
— Confesso que não.
— Pensa, como minha mãe, que sou
invulnerável.
Sucederam-se as visitas entre as duas
casas, mas nenhum incidente veio perturbar a resolução em que estava Genoveva
de cortar inteiramente quaisquer esperanças que pudesse haver dado ao advogado.
Oliveira era ainda o mesmo homem respeitoso. Passaram-se algumas semanas. Um
dia, Genoveva ouviu dizer que Oliveira ia casar.
— Não é possível, disse ela à amiga
que lhe deu a notícia.
— Não é possível, por quê? acudiu a
outra. Vai casar com a filha de um comerciante inglês, um Stanley. Todos sabem
disto.
— Enfim, como eu pouco saio...
Justifiquemos a viúva. Não lhe
parecia possível, porque ele visitava-as com tal freqüência, que não se podia
crer em casamento tratado. Quando visitaria a noiva? Apesar da razão, Genoveva
sentia que podia ser assim mesmo. Talvez
o futuro sogro fosse algum esquisitão, que não admitisse a visita de todas as noites.
Notou que, a par disto, Oliveira era desigual com ela; tinha dias e dias de
indiferença, depois lá vinha um olhar,
uma palavra, um dito, um aperto de mão... Os apertos de mão eram o sinal mais freqüente:
tanto que ela sentia alguma falta no dia em que ele era frouxo, e esperava o
dia seguinte para ver se era mais forte.
Lançava estas curiosidades à conta da vaidade. Vaidade de mulher bonita, dizia
a si mesma.
Daquela vez, porém, esperou-o com certa
ânsia, e fez-lhe bem o aperto de mão com
que ele a saudou na sala. Arrependera-se de não ter contado à mãe a notícia do
casamento, para que esta perguntasse ao
advogado; e, não se podendo ter, falou ela mesma.
— Eu, minha senhora?
Genoveva continuou sorrindo.
— Sim, senhor.
— Há de ser outro Oliveira, também
advogado, que está realmente para casar este mês. Eu não me casarei nunca.
Naquela noite, Genoveva, ao deitar-se
olhou ternamente para o retrato do finado marido, rezou-lhe dobrado, e tarde dormiu,
com medo de outra valsa; mas acordou sem
sonhos.
Que poderá haver entre uma viúva que
promete ao finado esposo, em sonhos, não
contrair segundas núpcias, e um advogado que declara, em conversação, que
jamais se casará? Parece que nada ou muito; mas é que o leitor não sabe ainda que este
Oliveira tem por plano não saltar o
barranco sem que ela lhe estenda as duas mãos, posto que a adore, como dizem
todos os enamorados. A última declaração teve por fim dar um grande golpe, por
modo que a desafiasse a desmentir-se. E pareceu-lhe, ao sair, que algum efeito
produzira, visto que a mão de Genoveva tremia um pouco, muito pouco, e que a
ponta dos dedos... Não, aqui foi ilusão; os dedos dela não lhe fizeram nada.
Notem bem que eu não tenho culpa
destas histórias enfadonhas de dedos e
contradedos, e palavras sem sentido, outras meio inclinadas, outras claras,
obscuras; menos ainda dos planos de um e das promessas de outro. Eu, se pudesse, logo no
segundo dia tinha pegado em ambos, ligava-lhes as mãos, e dizia-lhes: casem-se.
E passava a contar outras histórias menos monótonas. Mas, as pessoas são estas; é preciso aceitá-las assim mesmo.
Passaram-se dias, uma, duas, três
semanas, sem incidente maior. Oliveira parecia deixar a estratégia de Fabio
Cunctator. Um dia declarou francamente à viúva que a amava; era um sábado, em
casa dela, antes de jantar, enquanto as
duas mães os tinham deixado sós. Genoveva
abria as folhas de um romance francês que Oliveira lhe trouxera. Ele fitava
pela centésima vez uma aquarela, pendurada no trecho da parede que ficava entre
duas janelas. Bem ouvia a faca de marfim
rasgando as folhas espessas do livro, e o silêncio deixado pelas duas senhoras que tinham deixado a sala;
mas não voltava a cabeça nem baixava os
olhos. Baixou-os de repente, e voltou-os para a viúva. Ela sentia-os, e, para
dizer alguma coisa:
— Sabe se é bonito o romance?
perguntou, parando de rasgar as folhas.
— Dizem-me que sim.
Oliveira foi sentar-se em um pouf, que
estava ao pé do sofá, e fitou as mãos de Genoveva, pousadas sobre o livro
aberto, mas as mãos continuaram o seu ofício para escapar à admiração do homem,
como, se cortando as folhas, fossem menos admiráveis que paradas. Alongou-se o
silêncio, um silêncio constrangido — que Genoveva quisera romper, sem achar
modo nem ocasião. Pela sua parte, Oliveira tinha ímpetos de lhe dizer
subitamente o resto do que ela devia saber pelos últimos dias; mas não cedia
aos ímpetos, e acabou trivialmente
elogiando-lhe as mãos. Não valia a pena tanto trabalho para acabar assim. Ele,
porém, vexado da situação, pôs toda a alma na boca e perguntou à viúva se
desejava ser sua esposa.
Desta vez, as mãos pararam sem plano.
Genoveva, confusa, pregou os olhos no
livro, e o silêncio entre os dois fez-se mais longo e profundo. Oliveira olhava
para ela; via-lhe as pálpebras caídas e a respiração curta. Que palavra estaria dentro
dela? Hesitava pelo vexame de dizer que sim? ou pelo aborrecimento de dizer que
não? Oliveira tinha razões para crer na
primeira hipótese. Os últimos dias foram de acordo tácito, de consentimento
prévio. Entretanto, a palavra não saía;
e a memória do sonho veio complicar a situação. Genoveva recordou-se da penosa e triste valsa,
da promessa e do féretro, e empalideceu.
Nisto foram interrompidos pelas duas senhoras, que voltaram à sala.
O jantar foi menos animado que de
costume. De noite, vieram algumas pessoas, e a situação piorou. Separaram-se
sem resposta. A manhã seguinte foi cheia de tédio para Genoveva, um tédio temperado
com alegria que bem fazia adivinhar o estado da alma da moça. Oliveira não apareceu nesse dia; mas,
veio no outro, à noite. A resposta que ela deu não podia ser mais decisiva,
ainda que trêmula e murmurada.
Há aqui um repertório de pequenas
coisas infinitas, que não pode entrar em
um simples conto nem ainda em longo romance; não teria graça escrito. Sabe-se o
que sucede desde a aceitação de um noivo até o casamento. O que se não sabe,
porém, é o que aconteceu com esta nossa amiga, dias antes de casar. É o que se
vai ler para acabar.
Desde duas semanas antes da pergunta
de Oliveira, a viúva deitava-se sem olhar para o retrato do finado marido. Logo
depois da resposta, olhava-o algumas vezes, de soslaio, até que tornou ao anterior
costume. Ora, uma noite, quatro dias antes de casar, como houvesse pensado no
sonho da valsa e na promessa não cumprida, deitou-se com medo e só dormiu sobre
a madrugada. Nada lhe sucedeu; mas, na segunda noite, teve um sonho
extraordinário.
Não era a valsa do outro sonho, posto
que, ao longe, na penumbra, via uns contornos cinzentos de vultos que andavam à
roda. Viu, porém, o marido, a princípio
severo, depois triste, perguntando-lhe como
é que esquecera a promessa. Genoveva não respondeu nada; tinha a boca tapada por um carrasco, que era
não menos que Oliveira.
— Responde, Genoveva!
— Ah! Ah!
— Tu esqueceste tudo. Estás condenada
ao inferno!
Uma língua de fogo lambeu a parte do
céu, que se conservava azul, porque todo
o resto era um amontoado de nuvens carregadas de tempestade. Do meio delas saiu
um vento furioso, que pegou da moça, do defunto marido e do noivo e os levou
por uma estrada fora, estreita, lamacenta, cheia de cobras.
— O inferno! sim! o inferno!
E o carrasco tapava-lhe a boca, e ela
mal podia gemer uns gritos abafados.
— Ah! ah!
Parou o vento, as cobras ergueram-se
do chão e dispersaram-se no ar, entrando cada uma pelo céu dentro; algumas
ficaram com a cauda de fora. Genoveva sentiu-se livre; desaparecera o carrasco,
e o defunto esposo, de pé, pôs-lhe a mão na cabeça, e disse com voz profética:
— Morrerás se casares!
Desapareceu tudo; Genoveva acordou;
era dia. Ergueu-se trêmula; o susto foi
passando, e mais tarde, ao cuidar do caso, dizia consigo: “São sonhos”. Casou e
não morreu.
---
---
Nota:
Texto-fonte: Relíquias de Casa Velha, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938. Publicado originalmente em A
Estação, 31 de maio de 1892.
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