UM CÃO DE LATA AO RABO
Era uma vez um mestre-escola,
residente em Chapéu d’Uvas, que se lembrou de abrir entre os alunos um torneio
de composição e de estilo; idéia útil,
que não somente afiou e desafiou as mais diversas ambições literárias, como
produziu páginas de verdadeiro e raro merecimento.
— Meus rapazes, disse ele. Chegou a
ocasião de brilhar e mostrar que podem
fazer alguma coisa. Abro o concurso, e dou quinze dias aos concorrentes. No fim
dos quinze dias, quero ter em minha mão os trabalhos de todos; escolherei um
júri para os examinar, comparar e premiar.
— Mas o assunto? perguntaram os
rapazes batendo palmas de alegria.
— Podia dar-lhes um assunto
histórico; mas seria fácil, e eu quero experimentar a aptidão de cada um.
Dou-lhes um assunto simples, aparentemente vulgar, mas profundamente
filosófico.
— Diga, diga.
— O assunto é este: — UM CÃO DE LATA
AO RABO. Quero vê-los brilhar com
opulências de linguagem e atrevimentos de idéia. Rapazes, à obra! Claro é que
cada um pode apreciá-lo conforme o entender.
O mestre-escola nomeou um júri, de
que eu fiz parte. Sete escritos foram
submetidos ao nosso exame. Eram geralmente bons; mas três, sobretudo, mereceram
a palma e encheram de pasmo o júri e o mestre, tais eram — neste o arrojo do
pensamento e a novidade do estilo, — naquele a pureza da linguagem e a
solenidade acadêmica — naquele outro a erudição rebuscada e técnica, — tudo novidade, ao menos em Chapéu d’Uvas. Nós os
classificamos pela ordem do mérito e do estilo. Assim, temos:
1º Estilo antitético e asmático.
2º Estilo ab ovo.
3º Estilo largo e clássico.
Para que o leitor fluminense julgue
por si mesmo de tais méritos, vou dar adiante os referidos trabalhos, até agora
inéditos, mas já agora sujeitos ao apreço público.
CAPÍTULO
PRIMEIRO
ESTILO
ANTITÉTICO E ASMÁTICO
O cão atirou-se com ímpeto.
Fisicamente, o cão tem pés, quatro; moralmente, tem asas, duas. Pés: ligeireza
na linha reta. Asas: ligeireza na linha ascensional. Duas forças, duas funções.
Espádua de anjo no dorso de uma
locomotiva.
Um menino atara a lata ao rabo do
cão. Que é rabo? Um prolongamento e um deslumbramento. Esse apêndice, que é
carne, é também um clarão. Di-lo a filosofia? Não; di-lo a etimologia. Rabo,
rabino: duas idéias e uma só raiz.
A etimologia é a chave do passado,
como a filosofia é a chave do futuro.
O cão ia pela rua fora, a dar com a
lata nas pedras. A pedra faiscava, a lata retinia, o cão voava. Ia como o raio,
como o vento, como a idéia. Era a revolução, que transtorna, o temporal que derruba,
o incêndio que devora. O cão devorava. Que devorava o cão? O espaço. O espaço é
comida. O céu pôs esse transparente manjar
ao alcance dos impetuosos. Quando uns jantam e outros jejuam; quando, em
oposição às toalhas da casa nobre, há os andrajos da casa do pobre; quando em
cima as garrafas choram lacrimachristi, e embaixo os olhos choram lágrimas de sangue, Deus inventou um
banquete para a alma. Chamou-lhe espaço. Esse imenso azul, que está entre a
criatura e o criador, é o caldeirão dos grandes
famintos. Caldeirão azul: antinomia, unidade.
O cão ia. A lata saltava como os
guizos do arlequim. De caminho envolveu-se
nas pernas de um homem. O homem parou; o cão parou: pararam diante um do outro.
Contemplação única! Homo, canis. Um
parecia dizer: — Liberta-me! O outro parecia dizer: — Afasta-te! Após alguns
instantes, recuaram ambos; o quadrúpede deslaçou-se
do bípede. Canis levou a
sua lata; homo levou a
sua vergonha. Divisão equitativa. A vergonha é a lata ao rabo do caráter.
Então, ao longe, muito longe, troou
alguma coisa funesta e misteriosa. Era o
vento, era o furacão que sacudia as algemas do infinito e rugia como uma imensa pantera. Após
o rugido, o movimento, o ímpeto, a
vertigem. O furacão vibrou, uivou, grunhiu. O mar calou o seu tumulto, a terra
calou a sua orquestra. O furacão vinha
retorcendo as árvores, essas torres da natureza, vinha abatendo as torres,
essas árvores da arte; e rolava tudo, e aturdia tudo, e ensurdecia tudo. A
natureza parecia atônita de si mesma. O
condor, que é o colibri dos Andes, tremia de terror, como o colibri, que é o
condor das rosas. O furacão igualava o píncaro
e a base. Diante dele o máximo e o mínimo eram uma só coisa: nada. Alçou o dedo e apagou o sol. A
poeira cercava-o todo; trazia poeira adiante, atrás, à esquerda, à direita;
poeira em cima, poeira embaixo. Era o redemoinho, a convulsão, o arrasamento.
O cão, ao sentir o furacão, estacou.
O pequeno parecia desafiar o grande. O finito encarava o infinito, não com pasmo,
não com medo; — com desdém. Essa espera
do cão tinha alguma coisa de sublime. Há no cão que espera uma expressão
semelhante à tranqüilidade do leão ou à fixidez do deserto. Parando o cão,
parou a lata. O furacão viu de longe esse inimigo quieto; achou-o sublime e desprezível. Quem era ele para o afrontar? A
um quilômetro de distância, o cão investiu para o adversário. Um e outro
entraram a devorar o espaço, o tempo, a
luz. O cão levava a lata, o furacão trazia
a poeira. Entre eles, e em redor deles, a natureza ficaria extática, absorta, atônita.
Súbito grudaram-se. A poeira
redemoinhou, a lata retiniu com o fragor das armas de Aquiles. Cão e furacão
envolveram-se um no outro; era a raiva,
a ambição, a loucura, o desvario; eram todas as forças, todas as doenças; era o
azul, que dizia ao pó: és baixo; era o pó, que dizia ao azul: és orgulhoso.
Ouvia-se o rugir, o latir, o retinir; e
por cima de tudo isso, uma testemunha impassível, o Destino; e por baixo de
tudo, uma testemunha risível, o Homem.
As horas voavam como folhas num
temporal. O duelo prosseguia sem misericórdia nem interrupção. Tinha a
continuidade das grandes cóleras. Tinha
a persistência das pequenas vaidades. Quando o furacão abria as largas asas, o
cão arreganhava os dentes agudos. Arma por arma; afronta por afronta; morte por
morte. Um dente vale uma asa. A asa buscava o pulmão para sufocá-lo; o dente buscava a asa para
destruí-la. Cada uma dessas duas espadas implacáveis trazia a morte na ponta.
De repente, ouviu-se um estouro, um
gemido, um grito de triunfo. A poeira
subiu, o ar clareou, e o terreno do duelo apareceu aos olhos do homem
estupefato. O cão devorara o furacão. O pó vencera o azul. O mínimo derrubara o
máximo. Na fronte do vencedor havia uma aurora; na do vencido negrejava uma
sombra. Entre ambas jazia, inútil, uma coisa: a lata.
CAPÍTULO
II
ESTILO AB OVO
Um cão saiu de lata ao rabo. Vejamos
primeiramente o que é o cão, o barbante e a lata; e vejamos se é possível saber
a origem do uso de pôr uma lata ao rabo do cão.
O cão
nasceu no sexto dia. Com efeito, achamos no Gênesis, cap. I,
v. 24 e 25, que, tendo criado na véspera os peixes e as aves, Deus criou
naqueles dias as bestas da terra e os animais domésticos, entre os quais figura o de que ora
trato.
Não se pode dizer com acerto a data
do barbante e da lata. Sobre o primeiro, encontramos no Êxodo, cap.
XXVII, v. 1, estas palavras de Jeová: “Farás dez cortinas de linho retorcido”,
donde se pode inferir que já se torcia o linho, e por conseguinte se usava o cordel.
Da lata as induções são mais vagas. No mesmo livro do Êxodo, cap. XXVII,
v. 3, fala o profeta em caldeiras; mas logo adiante recomenda que sejam de cobre. O que não é o
nosso caso.
Seja como for, temos a existência do
cão, provada pelo Gênesis, e a do barbante citada
com verossimilhança no Êxodo. Não havendo prova cabal
da lata, podemos crer, sem absurdo, que existe, visto o uso que dela fazemos.
Agora: — donde vem o uso de atar uma
lata ao rabo do cão? Sobre este ponto a
história dos povos semíticos é tão obscura como a dos povos arianos. O que se pode afiançar é que os
Hebreus não o tiveram. Quando Davi (Reis,
cap. V, v.
16) entrou na
cidade a bailar defronte da arca, Micol, a filha de
Saul, que o viu, ficou fazendo má idéia dele, por motivo dessa expansão
coreográfica. Concluo que era um povo triste. Dos Babilônios suponho a mesma coisa,
e a mesma dos Cananeus, dos Jabuseus, dos Amorreus, dos Filisteus, dos Fariseus, dos Heteus e dos
Heveus.
Nem admira que esses povos
desconhecessem o uso de que se trata. As
guerras que traziam não davam lugar à criação o município, que é de data
relativamente moderna; e o uso de atar a lata ao cão, há fundamento para crer
que é contemporâneo do município,
porquanto nada menos é que a primeira das liberdades municipais.
O município é o verdadeiro alicerce
da sociedade, do mesmo modo que a família o é do município. Sobre este ponto
estão de acordo os mestres da ciência. Daí vem que as sociedades remotíssimas,
se bem tivessem o elemento da família e o uso do cão, não tinham nem podiam ter o de atar a lata ao rabo desse
digno companheiro do homem, por isso que lhe faltava o município e as
liberdades correlatas.
Na Ilíada não há episódio algum que
mostre o uso da lata atada ao cão. O
mesmo direi dos Vedas, do Popol-Vuh e dos livros de Confúcio.
Num hino à Varuna (Rig-Veda, cap. I v. 2), fala-se em um “cordel atado
embaixo”. Mas não sendo as palavras postas na boca do cão, e sim na do homem, é
absolutamente impossível ligar esse
texto ao uso moderno.
Que os meninos antigos brincavam, e
de modo vário, é ponto incontroverso, em presença dos autores. Varrão, Cícero,
Aquiles, Aulo Gélio, Suetônio, Higino, Propércio, Marcila falam de diferentes objetos com que as crianças se entretinham, ou
fossem bonecos, ou espadas de pau, ou
bolas, ou análogos artifícios. Nenhum deles, entretanto, diz uma só palavra do
cão de lata ao rabo. Será crível que, se tal gênero de divertimento houvera
entre romanos e gregos, nenhum autor nos desse dele alguma notícia, quando o fator
de haver Alcibíades cortado a cauda de um cão seu é citado solenemente no livro
de Plutarco?
Assim explorada a origem do uso,
entrarei no exame do assunto que... (Não houvera tempo para concluir).
CAPÍTULO
III.
ESTILO
LARGO E CLÁSSICO
Larga messe de louros se oferece às
inteligências altíloquas, que, no prélio agora encetado, têm de terçar armas
temperadas e finais, ante o ilustre mestre e guia de nossos trabalhos; e
porquanto os apoucamentos do meu espírito me não permitem justar com glória, e
quiçá me condenam a pronto desbaratamento, contento-me em seguir de longe a trilha dos vencedores,
dando-lhes as palmas da admiração.
Manha foi sempre puerícia atar uma
lata ao apêndice posterior do cão: e essa manha, não por certo louvável, é
quase certo que a tiveram os párvulos de
Atenas, não obstante ser a abelha-mestra da antigüidade, cujo mel ainda hoje
gosta o paladar dos sabedores.
Tinham alguns infantes, por brinco e
gala, atado uma lata a um cão, dando assim folga a aborrecimentos e enfados de
suas tarefas escolares. Sentindo a mortificação do barbante, que lhe prendia a lata, e assustado com o soar da lata nos
seixos do caminho, o cão ia tão cego e desvairado, que a nenhuma coisa ou
pessoa parecia atender.
Movidos da curiosidade, acudiam os
vizinhos às portas de suas vivendas, e, longe de sentirem a compaixão natural
do homem quando vê padecer outra
criatura, dobravam os agastamentos do cão
com surriadas e vaias. O cão perlustrou as ruas, saiu aos campos, aos
andurriais, até entestar com uma montanha, em cujos alcantilados píncaros
desmaiava o sol, e ao pé de cuja base um mancebo apascoava o seu gado.
Quis o Supremo Opífice que este
mancebo fosse mais compassivo que os da
cidade, e fizesse acabar o suplício do cão. Gentil era ele, de olhos brandos e não somenos em graça aos da
mais formosa donzela. Com o cajado ao
ombro, e sentado num pedaço de rochedo,
manuseava um tomo de Virgílio, seguindo com o pensamento a trilha daquele
caudal engenho. Apropinquando-se o cão
do mancebo, este lhe lançou as mãos e o deteve. O mancebo varreu logo da
memória o poeta e o gado, tratou de desvincular a lata do cão e o fez em poucos
minutos, com mor destreza e paciência.
O cão, aliás vultoso, parecia haver
desmedrado fortemente, depois que a
malícia dos meninos o pusera em tão apertadas andanças. Livre da lata, lambeu
as mãos do mancebo, que o tomou para si, dizendo: — De ora avante, me
acompanharás ao pasto.
Folgareis certamente com o caso que
deixo narrado, embora não possa o apoucado e rude estilo do vosso condiscípulo
dar ao quadro os adequados toques. Feracíssimo é o campo para engenhos de mais alto quilate; e, embora abastado de
urzes, e porventura coberto de trevas, a
imaginação dará o fio de Ariadne com que sói vencer os mais complicados labirintos.
Entranhado anelo me enche de
antecipado gosto, por ler os produtos de vossas inteligências, que serão em
tudo dignos do nosso digno mestre, e que
desafiarão a foice da morte colhendo vasta
seara de louros imarcescíveis com que engrinaldareis as fontes imortais.
Tais são os três escritos; dando-os
ao prelo, fico tranqüilo com a minha consciência; revelei três escritores.
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Nota:
Texto-fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Vol. III. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em O Cruzeiro, 2 de abril
de 1878.
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