sábado, 16 de março de 2013

Machado de Assis: "Um Cão de Lata ao Rabo"

UM CÃO DE LATA AO RABO


Era uma vez um mestre-escola, residente em Chapéu d’Uvas, que se lembrou de abrir entre os alunos um torneio de composição e de  estilo; idéia útil, que não somente afiou e desafiou as mais diversas ambições literárias, como produziu páginas de verdadeiro e raro merecimento.

— Meus rapazes, disse ele. Chegou a ocasião de brilhar e mostrar  que podem fazer alguma coisa. Abro o concurso, e dou quinze dias aos concorrentes. No fim dos quinze dias, quero ter em minha mão os trabalhos de todos; escolherei um júri para os examinar, comparar e premiar.

— Mas o assunto? perguntaram os rapazes batendo palmas de  alegria.

— Podia dar-lhes um assunto histórico; mas seria fácil, e eu quero experimentar a aptidão de cada um. Dou-lhes um assunto simples, aparentemente vulgar, mas profundamente filosófico.

— Diga, diga.

— O assunto é este: — UM CÃO DE LATA AO RABO. Quero vê-los  brilhar com opulências de linguagem e atrevimentos de idéia. Rapazes, à obra! Claro é que cada um pode apreciá-lo conforme o entender.

O mestre-escola nomeou um júri, de que eu fiz parte. Sete escritos  foram submetidos ao nosso exame. Eram geralmente bons; mas três, sobretudo, mereceram a palma e encheram de pasmo o júri e o mestre, tais eram — neste o arrojo do pensamento e a novidade do estilo, — naquele a pureza da linguagem e a solenidade acadêmica — naquele outro a erudição rebuscada e técnica, — tudo  novidade, ao menos em Chapéu d’Uvas. Nós os classificamos pela ordem do mérito e do estilo. Assim, temos:

1º Estilo antitético e asmático.

2º Estilo ab ovo.

3º Estilo largo e clássico.

Para que o leitor fluminense julgue por si mesmo de tais méritos, vou dar adiante os referidos trabalhos, até agora inéditos, mas já agora sujeitos ao apreço público.



CAPÍTULO PRIMEIRO
ESTILO ANTITÉTICO E ASMÁTICO

O cão atirou-se com ímpeto. Fisicamente, o cão tem pés, quatro; moralmente, tem asas, duas. Pés: ligeireza na linha reta. Asas: ligeireza na linha ascensional. Duas forças, duas funções. Espádua  de anjo no dorso de uma locomotiva.

Um menino atara a lata ao rabo do cão. Que é rabo? Um prolongamento e um deslumbramento. Esse apêndice, que é carne, é também um clarão. Di-lo a filosofia? Não; di-lo a etimologia. Rabo, rabino: duas idéias e uma só raiz.

A etimologia é a chave do passado, como a filosofia é a chave do  futuro.

O cão ia pela rua fora, a dar com a lata nas pedras. A pedra faiscava, a lata retinia, o cão voava. Ia como o raio, como o vento, como a idéia. Era a revolução, que transtorna, o temporal que derruba, o incêndio que devora. O cão devorava. Que devorava o cão? O espaço. O espaço é comida. O céu pôs esse transparente  manjar ao alcance dos impetuosos. Quando uns jantam e outros jejuam; quando, em oposição às toalhas da casa nobre, há os andrajos da casa do pobre; quando em cima as garrafas choram lacrimachristi, e embaixo os olhos choram lágrimas de sangue, Deus inventou um banquete para a alma. Chamou-lhe espaço. Esse imenso azul, que está entre a criatura e o criador, é o caldeirão dos  grandes famintos. Caldeirão azul: antinomia, unidade.

O cão ia. A lata saltava como os guizos do arlequim. De caminho  envolveu-se nas pernas de um homem. O homem parou; o cão  parou: pararam diante um do outro. Contemplação única!      Homo, canis. Um parecia dizer: — Liberta-me! O outro parecia dizer: — Afasta-te! Após alguns instantes, recuaram ambos; o quadrúpede  deslaçou-se do bípede.        Canis levou a sua lata;        homo levou a sua vergonha. Divisão equitativa. A vergonha é a lata ao rabo do  caráter.

Então, ao longe, muito longe, troou alguma coisa funesta e  misteriosa. Era o vento, era o furacão que sacudia as algemas do  infinito e rugia como uma imensa pantera. Após o rugido, o  movimento, o ímpeto, a vertigem. O furacão vibrou, uivou, grunhiu. O mar calou o seu tumulto, a terra calou a sua orquestra.  O furacão vinha retorcendo as árvores, essas torres da natureza, vinha abatendo as torres, essas árvores da arte; e rolava tudo, e aturdia tudo, e ensurdecia tudo. A natureza parecia atônita de si  mesma. O condor, que é o colibri dos Andes, tremia de terror, como o colibri, que é o condor das rosas. O furacão igualava o  píncaro e a base. Diante dele o máximo e o mínimo eram uma só  coisa: nada. Alçou o dedo e apagou o sol. A poeira cercava-o todo; trazia poeira adiante, atrás, à esquerda, à direita; poeira em cima, poeira embaixo. Era o redemoinho, a convulsão, o arrasamento.

O cão, ao sentir o furacão, estacou. O pequeno parecia desafiar o grande. O finito encarava o infinito, não com pasmo, não com  medo; — com desdém. Essa espera do cão tinha alguma coisa de sublime. Há no cão que espera uma expressão semelhante à tranqüilidade do leão ou à fixidez do deserto. Parando o cão, parou a lata. O furacão viu de longe esse inimigo quieto; achou-o sublime  e desprezível. Quem era ele para o afrontar? A um quilômetro de distância, o cão investiu para o adversário. Um e outro entraram a  devorar o espaço, o tempo, a luz. O cão levava a lata, o furacão  trazia a poeira. Entre eles, e em redor deles, a natureza ficaria  extática, absorta, atônita.

Súbito grudaram-se. A poeira redemoinhou, a lata retiniu com o fragor das armas de Aquiles. Cão e furacão envolveram-se um no  outro; era a raiva, a ambição, a loucura, o desvario; eram todas as forças, todas as doenças; era o azul, que dizia ao pó: és baixo; era o pó, que dizia ao azul: és orgulhoso. Ouvia-se o rugir, o latir, o  retinir; e por cima de tudo isso, uma testemunha impassível, o Destino; e por baixo de tudo, uma testemunha risível, o Homem.

As horas voavam como folhas num temporal. O duelo prosseguia sem misericórdia nem interrupção. Tinha a continuidade das  grandes cóleras. Tinha a persistência das pequenas vaidades. Quando o furacão abria as largas asas, o cão arreganhava os dentes agudos. Arma por arma; afronta por afronta; morte por morte. Um dente vale uma asa. A asa buscava o pulmão para  sufocá-lo; o dente buscava a asa para destruí-la. Cada uma dessas duas espadas implacáveis trazia a morte na ponta.

De repente, ouviu-se um estouro, um gemido, um grito de triunfo.  A poeira subiu, o ar clareou, e o terreno do duelo apareceu aos olhos do homem estupefato. O cão devorara o furacão. O pó vencera o azul. O mínimo derrubara o máximo. Na fronte do vencedor havia uma aurora; na do vencido negrejava uma sombra. Entre ambas jazia, inútil, uma coisa: a lata.



CAPÍTULO II
 ESTILO AB OVO

Um cão saiu de lata ao rabo. Vejamos primeiramente o que é o cão, o barbante e a lata; e vejamos se é possível saber a origem do uso de pôr uma lata ao rabo do cão.

O cão nasceu no sexto dia. Com efeito, achamos no  Gênesis, cap. I, v. 24 e 25, que, tendo criado na véspera os peixes e as aves, Deus criou naqueles dias as bestas da terra e os animais  domésticos, entre os quais figura o de que ora trato.

Não se pode dizer com acerto a data do barbante e da lata. Sobre o primeiro, encontramos no Êxodo, cap. XXVII, v. 1, estas palavras de Jeová: “Farás dez cortinas de linho retorcido”, donde se pode inferir que já se torcia o linho, e por conseguinte se usava o cordel. Da lata as induções são mais vagas. No mesmo livro do Êxodo, cap. XXVII, v. 3, fala o profeta em caldeiras; mas logo adiante recomenda que sejam de cobre. O que não é o nosso caso.

Seja como for, temos a existência do cão, provada pelo Gênesis, e  a do barbante citada com verossimilhança no Êxodo. Não havendo  prova cabal da lata, podemos crer, sem absurdo, que existe, visto o uso que dela fazemos.

Agora: — donde vem o uso de atar uma lata ao rabo do cão? Sobre  este ponto a história dos povos semíticos é tão obscura como a dos  povos arianos. O que se pode afiançar é que os Hebreus não o tiveram. Quando Davi (Reis,  cap.  V,  v.  16)  entrou  na  cidade  a  bailar defronte da arca, Micol, a filha de Saul, que o viu, ficou fazendo má idéia dele, por motivo dessa expansão coreográfica. Concluo que era um povo triste. Dos Babilônios suponho a mesma coisa, e a mesma dos Cananeus, dos Jabuseus, dos Amorreus, dos  Filisteus, dos Fariseus, dos Heteus e dos Heveus.

Nem admira que esses povos desconhecessem o uso de que se  trata. As guerras que traziam não davam lugar à criação o município, que é de data relativamente moderna; e o uso de atar a lata ao cão, há fundamento para crer que é contemporâneo do  município, porquanto nada menos é que a primeira das liberdades municipais.

O município é o verdadeiro alicerce da sociedade, do mesmo modo que a família o é do município. Sobre este ponto estão de acordo os mestres da ciência. Daí vem que as sociedades remotíssimas, se bem tivessem o elemento da família e o uso do cão, não tinham  nem podiam ter o de atar a lata ao rabo desse digno companheiro do homem, por isso que lhe faltava o município e as liberdades correlatas.

Na Ilíada não há episódio algum que mostre o uso da lata atada ao  cão. O mesmo direi dos         Vedas, do   Popol-Vuh e dos livros de Confúcio. Num hino à Varuna (Rig-Veda, cap. I v. 2), fala-se em um “cordel atado embaixo”. Mas não sendo as palavras postas na  boca do cão, e sim na do homem, é absolutamente impossível ligar  esse texto ao uso moderno.

Que os meninos antigos brincavam, e de modo vário, é ponto incontroverso, em presença dos autores. Varrão, Cícero, Aquiles, Aulo Gélio, Suetônio, Higino, Propércio, Marcila falam de diferentes  objetos com que as crianças se entretinham, ou fossem bonecos,  ou espadas de pau, ou bolas, ou análogos artifícios. Nenhum deles, entretanto, diz uma só palavra do cão de lata ao rabo. Será crível que, se tal gênero de divertimento houvera entre romanos e gregos, nenhum autor nos desse dele alguma notícia, quando o fator de haver Alcibíades cortado a cauda de um cão seu é citado solenemente no livro de Plutarco?

Assim explorada a origem do uso, entrarei no exame do assunto  que... (Não houvera tempo para concluir)

  
CAPÍTULO III.
ESTILO LARGO E CLÁSSICO

Larga messe de louros se oferece às inteligências altíloquas, que, no prélio agora encetado, têm de terçar armas temperadas e finais, ante o ilustre mestre e guia de nossos trabalhos; e porquanto os apoucamentos do meu espírito me não permitem justar com glória, e quiçá me condenam a pronto desbaratamento, contento-me em  seguir de longe a trilha dos vencedores, dando-lhes as palmas da admiração.

Manha foi sempre puerícia atar uma lata ao apêndice posterior do cão: e essa manha, não por certo louvável, é quase certo que a  tiveram os párvulos de Atenas, não obstante ser a abelha-mestra da antigüidade, cujo mel ainda hoje gosta o paladar dos sabedores.

Tinham alguns infantes, por brinco e gala, atado uma lata a um cão, dando assim folga a aborrecimentos e enfados de suas tarefas escolares. Sentindo a mortificação do barbante, que lhe prendia a  lata, e assustado com o soar da lata nos seixos do caminho, o cão ia tão cego e desvairado, que a nenhuma coisa ou pessoa parecia atender.

Movidos da curiosidade, acudiam os vizinhos às portas de suas vivendas, e, longe de sentirem a compaixão natural do homem  quando vê padecer outra criatura, dobravam os agastamentos do  cão com surriadas e vaias. O cão perlustrou as ruas, saiu aos campos, aos andurriais, até entestar com uma montanha, em cujos alcantilados píncaros desmaiava o sol, e ao pé de cuja base um  mancebo apascoava o seu gado.

Quis o Supremo Opífice que este mancebo fosse mais compassivo  que os da cidade, e fizesse acabar o suplício do cão. Gentil era ele,  de olhos brandos e não somenos em graça aos da mais formosa   donzela. Com o cajado ao ombro, e sentado num pedaço de  rochedo, manuseava um tomo de Virgílio, seguindo com o pensamento a trilha daquele caudal engenho. Apropinquando-se o  cão do mancebo, este lhe lançou as mãos e o deteve. O mancebo varreu logo da memória o poeta e o gado, tratou de desvincular a lata do cão e o fez em poucos minutos, com mor destreza e paciência.

O cão, aliás vultoso, parecia haver desmedrado fortemente, depois  que a malícia dos meninos o pusera em tão apertadas andanças. Livre da lata, lambeu as mãos do mancebo, que o tomou para si, dizendo: — De ora avante, me acompanharás ao pasto.

Folgareis certamente com o caso que deixo narrado, embora não possa o apoucado e rude estilo do vosso condiscípulo dar ao quadro os adequados toques. Feracíssimo é o campo para engenhos de  mais alto quilate; e, embora abastado de urzes, e porventura  coberto de trevas, a imaginação dará o fio de Ariadne com que sói vencer os mais complicados labirintos.

Entranhado anelo me enche de antecipado gosto, por ler os produtos de vossas inteligências, que serão em tudo dignos do  nosso digno mestre, e que desafiarão a foice da morte colhendo  vasta seara de louros imarcescíveis com que engrinaldareis as fontes imortais.

Tais são os três escritos; dando-os ao prelo, fico tranqüilo com a minha consciência; revelei três escritores.


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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa de Machado de Assis, Vol. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em O Cruzeiro, 2 de abril de 1878.

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