A ÚLTIMA RECEITA
A viúva Lemos adoecera; uns dizem que
dos nervos, outros que de saudades do marido. Fosse o que fosse, a verdade é
que adoecera, em certa noite de setembro,
ao regressar de um baile. Morava então no Andaraí, em companhia de uma tia
surda e devota. A doença não parecia coisa de cuidado; todavia era necessário fazer alguma coisa. Que coisa seria?
Na opinião da tia um cozimento de altéia e um rosário a não sei que santo do
céu eram remédios infalíveis. D. Paula (a viúva) não contestava a eficácia dos
remédios da tia, mas opinava por um médico.
Chamou-se um médico.
Havia justamente na vizinhança um
médico, formado de pouco, e recente morador na localidade. Era o Dr. Avelar,
sujeito de boa presença, assaz elegante e médico feliz. Veio o Dr. Avelar na
manhã seguinte, pouco depois das oito horas. Examinou a doente e reconheceu que
a moléstia não passava de uma constipação grave. Teve entretanto a prudência de
não dizer o que era, como aquele médico da anedota do bicho no ouvido, anedota
que o povo conta, e que eu contaria também, se me sobrasse papel.
O Dr. Avelar limitou-se a torcer o
nariz quando examinou a enferma, e a receitar dois ou três remédios, dos quais
só um era útil; o resto figurava no fundo do quadro.
D. Paula tomou os remédios como quem
não queria deixar a vida. Havia razão. Apenas
dois anos fora casada, e contava apenas vinte e quatro anos. Havia já treze
meses que lhe morria o marido. Apenas entrara no pórtico do matrimônio.
A esta circunstância é justo
acrescentar mais duas; era bonita e tinha alguma coisa de seu. Três razões para agarrar-se à
vida como o náufrago a uma tábua de salvação.
Uma única razão haveria para que ela
aborrecesse o mundo: era se tivesse realmente saudades do marido. Mas não
tinha. O casamento fora um arranjo de família e dele próprio; Paula aceitou o
arranjo sem murmurar. Honrou o casamento, mas não deu ao marido nem estima nem
amor. Viúva dois anos depois, e ainda moça, é claro que a vida para ela
começava apenas. A idéia de morrer seria
para ela não só a maior de todas as calamidades, mas também a mais desastrada
de todas as tolices.
Não quis morrer nem caso era de
morte.
Os remédios foram tomados
pontualmente; o médico mostrou-se assíduo; dentro de poucos dias, três a
quatro, estava restabelecida a interessante enferma.
De todo?
Não.
Quando o médico voltou no quinto dia,
achou-a sentada na sala, envolvida em grande roupão, com os pés numa almofada,
o rosto extremamente pálido, e muito mais ainda por causa da pouca luz.
O estado era natural em que se
levantava da cama; mas a viuvinha alegou ainda umas dores de cabeça, a que o
médico chamou nevralgia, e uns temores, que foram classificados no capítulo dos
nervos.
— Serão graves moléstias? perguntou
ela.
— Oh! não, minha senhora, respondeu
Avelar, são achaques aborrecidos, mas não
graves, e geralmente próprios de doentes formosas.
Paula sorriu com um ar tão triste que
fazia duvidar do prazer com que ouviu estas palavras do médico.
— Dá-me porém remédios, não?
perguntou ela.
— Sem dúvida.
Avelar receitou efetivamente alguma
coisa e prometeu voltar no dia seguinte.
A tia era surda, como sabemos, não
ouvia nada da conversa entre os dois. Mas não era tola; começou a reparar que a
filha ficava mais doente quando se aproximava a chegada do médico. Além disso
nutria dúvidas sérias acerca da aplicação exata dos remédios. O certo é porém
que Paula, tão amiga de bailes e passeios, parecia realmente doente porque não
saía de casa.
Notou igualmente a tia que, pouco
antes da hora do médico, a sobrinha fazia uma aplicação mais copiosa de
pó-de-arroz. Paula era morena; ficava muito branca. A meia luz da sala, os
xales, o ar mórbido tornavam-lhe a palidez extremamente verossímil.
A tia não parou nesse ponto; foi
ainda além. Não era médico o Avelar? Naturalmente devia saber se realmente
estava enferma a viúva. Interrogando o médico, asseverou que a viúva estava
muito mal, e prescreveu-lhe o mais absoluto repouso.
Tal era a situação da enferma e do
facultativo.
Um dia em que este entrou achou-a
folheando um livro. Estava com a palidez de costume e o mesmo ar abatido.
— Como vai a minha doente? disse
familiarmente o Dr. Avelar.
— Mal.
— Mal?
— Horrorosamente mal... Que lhe
parece o pulso?
Avelar examinou-lhe o pulso.
— Regular, disse ele. A tez está um
tanto pálida, mas os olhos parecem bons... Houve algum ataque?
— Não; mas sinto-me desfalecida.
— Deu o passeio que lhe aconselhei?
— Não tive ânimo.
— Fez mal. Não passeou e está
lendo...
— Um livro inocente.
— Inocente?
O médico pegou no livro e
examinou-lhe a lombada.
— Um livro diabólico! disse ele
atirando-o para cima da mesa.
— Por quê?
— Livro de poeta, livro para
namorados, minha senhora, que é uma casta de doentes terríveis. Não se curam
eles; ou raramente se curam; mas há pior, que é adoecerem os sãos. Peço-lhe
licença para confiscar o livro.
— Uma distração! murmurou Paula com
uma doçura capaz de vencer um tirano.
Mas o médico mostrou-se firme.
— Uma perversão, minha senhora! Em
ficando boa pode ler se quiser todos os poetas do século; antes, não.
Paula ouviu esta palavra com
singular, mas disfarçada alegria.
— Parece-lhe então que estou muito
doente? disse ela.
— Muito, não digo; Tem ainda um resto
de abalo que só pode desaparecer com o tempo e um regímen severo.
— Severo demais.
— Mas necessário...
— Duas coisas lastimo sobre todas.
— Quais?
— A pimenta e o café.
— Oh!
— É o que lhe digo. Não tomar café
nem pimenta é o limite da paciência humana. Quinze dias mais deste regímen ou desobedeço
ou expiro.
— Nesse caso, expire, disse Avelar
sorrindo.
— Acha melhor?
— Acho igualmente mau. O remorso,
porém, será meu só, enquanto que se V. Ex.ª
desobedecer terá os seus últimos instantes amargurados por um tardio arrependimento.
Melhor é morrer vítima que culpada.
— Melhor é não morrer nem culpada nem
vítima.
— Nesse caso não tome pimenta nem
café.
A leitora que acaba de ler esta
conversa, admirar-se-ia muito se visse a nossa doente nesse mesmo dia ao
jantar: teve pimenta à farta e bebeu excelente café no fim. Não admira porque
era o seu costume. A tia admirava-se com razão de uma doença que consentia tais
liberdades; a sobrinha não se explicava cabalmente a este respeito.
Choviam convites de jantares e
bailes. A viuvinha recusava-os todos por causa do seu mau estado de saúde.
Foi uma verdadeira calamidade.
Entraram a chover as visitas e
bilhetes. Muitas pessoas achavam que a doença devia ser interna, muito interna,
profundamente interna, visto que lhe não apareciam sinais no rosto. Os nervos
(eternos caluniados!) foram a explicação que geralmente se deu à singular moléstia da
moça.
Três meses correram assim, sem que a
doença de Paula cedesse uma linha aos esforços do médico. Os esforços do médico
não podiam ser maiores; de dois em dois dias uma receita. Se a doente se
esquecia do seu estado e estava a falar e a corar como quem tinha saúde, o
médico era o primeiro a lembrar-lhe o perigo, e ela obedecia logo entregando-se
à mais prudente inação.
Às vezes zangava-se.
— Todos os senhores são uns bárbaros,
dizia ela.
— Uns bárbaros... necessários,
respondia Avelar sorrindo.
E acrescentava:
— Eu não direi o que são as doentes.
— Diga sempre.
— Não digo.
— Caprichosas?
— Mais.
— Rebeldes?
— Menos.
— Impertinentes?
— Sim. Algumas são impertinentes e
amáveis.
— Como eu.
— Naturalmente.
— Já o esperava, dizia a viúva Lemos
sorrindo. Sabe por que razão lhe perdôo tudo? É porque é médico. Um médico tem
carta branca para gracejar conosco; isso mesmo nos dá saúde.
Neste ponto levantou-se.
— Parece-me até que já estou melhor.
— Parece e está... quero dizer, está
muito mal.
— Muito mal?
— Não, muito mal, não; não está boa...
— Meteu-me um susto!
Seria realmente zombar do leitor o
explicar-lhe que a doente e o médico estavam a pender um para o outro; que a
doente sofria tanto como o Corcovado, e que o médico conhecia cabalmente a sua
perfeita saúde. Gostavam um do outro sem se atreverem a dizer a verdade,
simplesmente pelo receio de se enganarem. O meio de se falarem todos os dias
era aquele.
Mas gostavam eles já antes da fatal
constipação do baile? Não. Até então ignoravam a existência um do outro. A
doença favoreceu o encontro; o encontro do coração; o coração favorecia desde
logo o casamento, se tivessem caminhado em
linha reta, em vez dos rodeios em que andavam.
Quando Paula ficou boa da constipação
adoeceu do coração; não tendo outro recurso fingiu-se doente. O médico, que
pela sua parte desejava isso mesmo exagerou ainda as invenções da suposta
enferma.
A tia, sendo surda, assistia
inutilmente aos diálogos da doente com o médico. Um dia escreveu a este
pedindo-lhe que apressasse a cura da sobrinha. Avelar desconfiou da carta a
princípio. Seria uma despedida? Podia ser pelo menos uma desconfiança.
Respondeu que a moléstia de D. Paula era, aparentemente insignificante, mas
podia tornar-se grave sem um regímen severo, que ele lhe recomendava sempre.
A situação, entretanto,
prolongava-se. A doente estava cansada da doença, e o médico da medicina. Ambos eles começaram a
desconfiar que não eram mal aceitos. O
negócio entretanto não caminhava muito.
Um dia Avelar entrou triste em casa
da viúva.
— Jesus! exclamou sorrindo a viúva;
ninguém dirá que é o médico. Parece o doente.
— Doente de lástima, disse Avelar
abanando a cabeça; por outros termos, é a lástima que me dá este ar enfermo.
— Lástima de quê?
— De V.Ex.ª.
— De mim?
— É verdade.
A moça riu-se consigo mesma; todavia
esperou a explicação.
Houve um silêncio.
No fim dele:
— Sabe, disse o médico, sabe que está
muito mal?
— Eu?
Avelar fez um gesto afirmativo.
— Já o sabia, suspirou a doente.
— Não digo que tudo esteja perdido,
continuou o médico, mas nada se perde em prevenir.
— Então...
— Coragem!
— Fale.
— Mande chamar o padre.
— Aconselha-me a confissão?
— É indispensável.
— Perderam-se todas as esperanças?
— Todas. Confissão... e banhos.
A viúva soltou uma risada.
— E banhos?
— Banhos de igreja.
Outra risada.
— Aconselha-me então o casamento.
— Justo.
— Imagino que está gracejando.
— Estou falando muito sério. O
remédio não é novo nem desprezível. Todas as semanas lá vão muitos enfermos, e dão-se bem
alguns deles. É um específico inventado desde muitos séculos e que
provavelmente só acabará no último dia do mundo. Pela minha parte nada mais
tenho que fazer.
Quando a viuvinha menos esperava,
Avelar levantou-se e saiu. Falava sério ou gracejava? Dois dias se passaram sem
que o médico voltasse. A doente estava triste; a tia aflita; houve idéia de
mandar chamar outro médico. Recusou-a a doente.
— Então só um médico acertou com a
tua moléstia?
— Talvez.
No fim de três dias recebeu a viúva
Lemos uma carta do médico.
Abriu-a.
Dizia assim:
É absolutamente impossível esconder
por mais tempo o que sinto por V. Ex.ª. Amo-a.
Sua moléstia precisa de uma última
receita, verdadeiro remédio para quem ama, — sim, porque V. Ex.ª também me ama. Que razão
obrigaria a negá-lo?
Se sua resposta for afirmativa haverá
mais dois entes felizes neste mundo.
Se negativa...
Adeus!
A carta foi lida com explosão de
entusiasmo; o médico foi chamado a toda a pressa, para receber e dar saúde.
Casaram-se os dois daí a quarenta dias.
Tal é a história da Última Receita.
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Nota:
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, setembro de 1875.
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