SEM OLHOS
O chá foi servido na saleta das
palestras íntimas às quatro visitas do casal
Vasconcelos. Eram estas o Sr. Bento Soares, sua esposa D. Maria do Céu,
o bacharel Antunes e o desembargador
Cruz. A conversa, antes do chá, versava sobre a última soirée do
desembargador; quando o criado entrou, passaram a tratar da morte de um conhecido, depois das almas do outro mundo,
de contos de bruxas, finalmente de
lobisomem e das abusões dos índios.
— Pela minha parte, disse o Sr. Bento
Soares, nunca pude compreender como o espírito humano pôde inventar tanta
tolice e crer no invento. Vá que uma ou outra criança dê crédito às suas
próprias ilusões; para isso mesmo é que são crianças. Mas, que um homem
feito...
— Que tem isso? observou o
desembargador apresentando a xícara ao criado para que lhe repetisse o chá; a vida do homem é
uma série de infâncias, umas menos graciosas que as outras.
— Queres mais chá, Maria? perguntou a
dona da casa à esposa de Bento Soares, que acabava de beber a última gota do
seu.
— Aceito.
O bacharel Antunes apressou-se a
receber a xícara de D. Maria do Céu, com uma cortesia e graça, que lhe rendeu o
mais doce dos sorrisos.
— Eu acompanho o desembargador, disse
Bento Soares.
Enquanto o bacharel Antunes ampliava
ao marido de Maria do Céu o obséquio que acabava de prestar a esta, com a mesma
solicitude, mas sem receber o mesmo nem outro sorriso, e passava ao criado a
xícara vazia, Bento Soares prosseguia em suas idéias acerca das abusões
humanas. Bento Soares estava profundamente convencido que o mundo todo tinha por limites os do
distrito em que ele morava, e que a espécie humana aparecera na terra no
primeiro dia de abril de 1832, data de seu nascimento. Esta convicção diminuía
ou antes eliminava certos fenômenos psicológicos e reduzia a história do
planeta e de seus habitantes a uma certidão de batismo e vários acontecimentos
locais. Não havia para ele tempos pré-históricos, havia tempos pré-soáricos.
Daí vinha que, não crendo ele em certas lendas e contos da carocha, mal podia compreender que houvesse
homem no mundo capaz de ter crido neles uma vez ao menos.
A conversa, porém, bifurcou-se;
enquanto o desembargador referia a Bento Soares e ao dono da casa algumas
notícias relativas a crenças populares antigas e modernas, as duas senhoras
conversavam com o bacharel, sobre um ponto de toilette... Maria do
Céu era uma mulher bela, ainda que baixinha, ou talvez por isso mesmo, porquanto
as feições eram consoantes à estatura: tinha uns olhos miúdos e redondos, uma boquinha que o bacharel
comparava a um botão de rosa, e um nariz que o poeta bíblico só por hipérbole
poderia comparar à torre de Galaad. A mão, que essa, sim, era um lírio dos
vales — lilium convalium —, parecia arrancada a alguma estátua, não de Vênus, mas de seu
filho; e eu peço perdão desta mistura de coisas sagradas com profanas, a que sou obrigado pela
natureza mesma de Maria do Céu. Quieta, podiam pô-la num altar; mas, se movia
os olhos, era pouco menos que um demônio. Tinha um jeito peculiar de usar deles
que enfeitiçou alguns anos antes a gravidade de Bento Soares, fenômeno que o
bacharel Antunes achava o mais natural do mundo. Vestia nessa noite um vestido
cor de pérola, objeto da conversa entre o bacharel e as duas senhoras. Antunes,
sem contestar que a cor de pérola ia perfeitamente à esposa de Bento Soares,
opinava que era geral acontecer o mesmo às demais cores; donde se pode
razoavelmente inferir que em seu parecer a porção mais bela de Maria não era o vestido, mas ela
mesma.
Uma contestação, em voz mais alta,
chamou a atenção deles para o grupo dos homens graves. Bento Soares dizia que o
desembargador mofava da razão, afiançando acreditar em almas do outro mundo; e
o desembargador insistia em que a existência dos fantasmas não era coisa que
absolutamente se pudesse negar.
— Mas, desembargador, isto é querer
supor que somos uns beócios. Pois fantasmas...
— Não me dirá nada de novo,
interrompeu Cruz; sei o que se pode dizer contra os fantasmas; não obstante,
existem.
— Como as bexigas; também se diz
muita coisa contra elas.
— Fantasmas! exclamou Maria do Céu.
Pois há quem tenha visto fantasmas?
— É o desembargador quem o diz,
observou Vasconcelos.
— Deveras?
— Nada menos.
— Na imaginação, disse o bacharel.
— Na realidade.
Os ouvintes sorriram; Maria fez um
gesto de desdém.
— Se a entrada na Relação dá em
resultado visões dessa natureza, declaro que vou cortar as asas às minhas ambições, observou o
bacharel olhando para a esposa de Bento Soares, como a pedir-lhe aprovação do
dito.
— Os fantasmas são fruto do medo,
disse esta, sentenciosamente. Quem não tem medo não vê fantasmas.
— Você não tem medo? perguntou a dona
da casa.
— Tanto como deste leque.
— Sempre há de ter algum, opinou
Vasconcelos.
— Não tenho medo de nada nem de
ninguém.
— Pode ser, interveio o
desembargador; mas se visse o que eu vi uma vez, estou certo de que ficaria
apavorada.
— Alguma bruxa?
— O diabo?
— Um defunto à meia-noite?
— Um duende?
Cruz empalidecera.
— Falemos de outra coisa, disse ele.
Mas o auditório tinha a curiosidade
aguçada, e o próprio mistério e recusa do desembargador faziam crescer o
apetite. Os homens insistiram; as senhoras fizeram coro com eles. Cruz
imolou-se ao sufrágio universal.
— O que eu vi foi há muitos anos,
disse ele; ainda assim conservo a memória fresca do que me aconteceu. Não sei
se poderia ir até o fim; e desde já estou certo de que vou passar uma triste
noite...
Uma risadinha de Maria do Céu
interrompeu o desembargador.
— Prepare o auditório! disse ela.
Vamos ver que a montanha dá à luz um ratinho.
Alguns sorriram; mas o desembargador
estava sério e pálido. Bento Soares ofereceu-lhe uma pitada de rapé, enquanto
Vasconcelos acendia um charuto. Fez-se grande
silêncio; só se ouvia o tic-tac do relógio e o movimento do leque de Maria do Céu.
O desembargador olhou para os interlocutores, como a ver se era possível evitar
a narração; mas a curiosidade estava tão pendente de todos os olhos, que era impossível
resistir.
— Vá lá! disse ele. Contarei isto em
duas palavras.
Quando eu estudava em S. Paulo raras
vezes gozava as férias todas na fazenda de meu pai; ia a Cantagalo passar
algumas semanas e voltava logo para o Rio de Janeiro, aonde me chamava o meu
primeiro e último namoro, paixão de quatro anos, que a Igreja consagrou e só a
morte extinguiu. Nas férias do terceiro ano fui morar no primeiro andar de uma
casa da Rua da Misericórdia. No segundo morava um homem de quarenta anos que
parecia ter mais de cinqüenta, tão alquebrado e encanecido estava. Éramos os
dois moradores únicos, salvo o meu pajem, que fazia o número três. O vizinho de
cima não tinha criado.
A primeira vez que o vi foi logo no
dia seguinte da minha entrada na casa. Ao passar pelo corredor dei com ele na
escada, que ia do primeiro para o segundo andar, de pé, com um livro aberto nas
mãos. Tinha um pé no quinto e outro no sexto degrau. Fiquei a olhar de baixo
para ele durante algum tempo; não o conhecendo, entrei a suspeitar se seria
algum ladrão. O pajem explicou-me que era o morador de cima.
Dois dias depois, estando eu à noite
em casa, perto das onze horas a ler na minha sala, senti alguém bater-me à
porta; fui abrir; era o vizinho, que descera, com um livro na mão, talvez o
mesmo que lia dois dias antes na escada, não sei.
— Venho incomodá-lo, não? disse ele.
Fiz um gesto duvidoso, e fiquei a olhar
para ele como quem espera uma explicação.
— O morador da loja, continuou ele,
disse-me hoje que o senhor é estudante. Talvez me possa explicar uma coisa.
Sabe hebraico?
— Não.
— É pena! disse ele consternado.
Ficou alguns instantes silencioso, a
olhar para o livro e para o teto. Depois fitou-me, e disse:
— Ando a ver se meto dente numa
passagem de Jonas.
Dizendo isto, sentou-se abrindo o
livro sobre os joelhos. Joelhos chamo eu, porque é esse o nome daquela região; mas o que ele
tinha naquele lugar das pernas eram dois verdadeiros pregos, tão magro estava.
A cara angulosa e descarnada, os olhos cavos, o cabelo hirsuto, as mãos peludas
e rugosas, tudo fazia dele um personagem fantástico. Esteve algum tempo ainda
silencioso, até que continuou:
— Há aqui um versículo de Jonas, é o
11 do cap. IV, em que leio: “E então eu não perdoarei a grande cidade de
Nínive, onde há mais de cento e vinte mil homens, que não sabem discernir entre
a sua mão direita e a sua mão esquerda?”. Como entende o senhor este versículo?
A idéia que o vizinho era doido
apoderou-se logo de meu espírito. Que outra coisa seria, vindo consultar a
semelhante hora, a um vizinho de três dias, sobre um texto de Jonas? Também eu
não tinha medo nesse tempo — tal qual como a Sra. D. Maria do Céu —, deixei-me
estar quieto na cadeira, a olhar sem responder, contendo uma grande vontade de
rir.
— Que lhe parece? repetiu o vizinho.
— Que quer o senhor que me pareça?
— “Homens que não sabem discernir a
mão direita da esquerda”; — frase que, geralmente,
tem um sentido óbvio, e vem a ser nada menos que isto: o profeta refere-se às
crianças ninivitas. Jeová quer perdoar a cidade por amor dos meninos que ela
encerra. Mas eu dou do texto uma interpretação que vai assombrar o mundo.
— Sim?
— Jonas não alude às crianças, mas
aos canhotos que são os homens que não podem
discernir a direita da esquerda. Sendo assim, veja o senhor a importância da minha
interpretação. Duas coisas se concluem dela: 1ª que os ninivitas eram geralmente
canhotos; 2ª que o ser canhoto era no entender dos hebreus um grande mérito. Desta última conclusão nasceu
uma terceira, a saber, que chamar canhoto ao diabo é estar fora do espírito
bíblico. Isto é claro como água e evidente como a luz.
A profunda convicção com que ele
disse tudo isto, e o ar de triunfo com que ficou a olhar para mim, confesso que
me impressionaram singularmente. Não sabia que dizer; o melhor era concordar,
declarando que a sua opinião era por força verdadeira.
— Não lhe parece? disse ele. Contudo,
não sendo eu forte no hebraico, desejava consultar alguém que me dissesse se o
texto original está bem traduzido na Vulgata, e se a expressão bíblica é essa
ou outra diferente. Liquidado este ponto, escreverei um livro. Afiança-me que
não sabe hebraico?
— Não sei sequer o alfabeto.
— Nesse caso há de perdoar.
Dizendo isto, ergueu-se, fez-me uma
cortesia e deu um passo para a porta. Ali parou e voltou-se.
— Esquecia-me dizer-lhe o meu nome;
devia de ser a primeira coisa. Chamo-me Damasceno Rodrigues, moro há três anos
aqui em cima, onde estou às suas ordens. Viva!
Não esperou que lhe dissesse o meu
nome; curvou-se e saiu. Imaginem facilmente como fiquei; a vontade de rir foi o
primeiro efeito; o segundo foi uma mistura de pena, receio e curiosidade. No
dia seguinte, disse ao pajem que tirasse informações acerca de Damasceno
Rodrigues. Tirou-as, e o que liquidei delas foi que o meu vizinho morava aí
havia três anos, como dissera; que era um velho médico, sem clínica; que vivia
pacificamente, saindo apenas para ir comer a uma casa de pasto da vizinhança ou
ler duas horas na biblioteca pública; enfim, que no bairro ninguém o tinha por
doido, mas que algumas velhas o supunham ligado ao diabo. Esta crença, comparada com a idéia que o homem tinha a
respeito do Canhoto, dava bem para uma anedota romântica, que eu podia escrever
logo depois que voltasse a S. Paulo; tal foi o motivo que me levou a visitá-lo
alguns dias depois.
O segundo andar era antes um sótão
puxado à rua; compunha-se de uma sala, uma alcova e pouco mais. Subi. Achei-o
na sala, estirado em uma rede, a olhar para o teto. Tudo ali era tão velho e
alquebrado como ele; três cadeiras incompletas, uma cômoda, um aparador, uma
mesa, alguns farrapos de um tapete, ligados por meia dúzia de fios, tais eram as alfaias da casa de
Damasceno Rodrigues. As janelas, que eram duas, adornavam-se com umas cortinas
de chita amarela, rotas a espaços. Sobre a cômoda e a mesa havia alguns objetos
disparatados; por exemplo, um busto de Hipócrates ao pé de um bule de louça,
três ou quatro bolos, meio pote de rapé, lenços e jornais. No chão também havia
jornais e livros espalhados. Era ali o asilo do vizinho misterioso.
Achei-o, como lhes disse, estirado na
rede, a olhar para o teto. Não me sentiu entrar; mas eu falei-lhe e ele ergueu
um pouco a cabeça.
— Quem é? disse ele.
— Eu.
— O senhor?
— Seu vizinho de baixo.
— Ah! disse ele erguendo-se; pode
entrar.
— Não se incomode; vinha apenas
pagar-lhe a visita.
Damasceno tinha-se levantado; e das
cadeiras ofereceu-me a melhor, isto é, a que não tinha costas, porque das
outras duas, uma estava exausta de palhinha e a outra possuía três pés somente.
O riso de Damasceno era pior que a
seriedade; sério, dava
ares de caveira;
rindo, havia nele um gesto
diabólico; a tudo resiste porém ambição do escritor juvenil. Eu queria uma
novela, e estava disposto a conversar com o diabo em pessoa. Para dizer alguma
coisa, falei-lhe na passagem de Jonas.
— Descobriu alguma coisa?
perguntei-lhe.
— Nada, tornou ele, mas cuida que
pensei mais em semelhante assunto?
— Supunha.
— Qual! No dia seguinte deixei-o de
lado.
— Entretanto, creio que era
importante decidir se realmente o nome de Canhoto dado ao diabo...
Damasceno interrompeu-me com uma
risadinha sardônica e gelada que me tapou a boca. Não tive ânimo de continuar e faltava-me
assunto para entretê-lo. Ele, entretanto,
meteu as mãos na algibeira das calças e começou a andar de um para outro lado,
ora cabisbaixo e silencioso, ora olhando para o teto e murmurando alguma coisa
que eu não podia perceber. Havia no rosto daquele homem, além da velhice
precoce, uma expressão de tristeza e amargura que os olhos não podiam contemplar impunemente. Ao mesmo tempo era tão
extraordinária a figura e tão singulares os costumes dele, que a gente tinha
prazer em o conversar e atrair, quando menos por sair um pouco da vulgaridade
dos outros homens.
Damasceno passeou cerca de oito
minutos, sem me dizer palavra. Ao cabo deles, parou defronte de mim.
— Mancebo, disse ele, quais são as suas
idéias a respeito da lua?
— Poucas... algumas notícias apenas.
— Sei, disse ele desdenhosamente; o
que anda nos compêndios. Pífia ciência é a dos compêndios! O que eu lhe pergunto...
— Adivinho.
— Diga.
— Quer saber se também suponho que o
nosso satélite seja habitado?
— Qual! são devaneios, são
conjecturas... A lua, meu rico vizinho, não existe, a lua é uma hipótese, uma
ilusão dos sentidos, um simples produto da retina dos nossos olhos. É isto que
a ciência ainda não disse; é isto o que convém proclamar ao mundo. Em certos
dias do mês, o olho humano padece uma contração nervosa que produz o fenômeno
lunar. Nessas ocasiões, ele supõe que vê no espaço um círculo redondo, branco e
luminoso; o círculo está nos próprios olhos do homem.
— Pode ser.
— Nem é outra coisa.
— Donde se conclui que todos somos
lunáticos, aventurei eu galhofeiramente.
— Talvez, redagüiu, ele, rindo muito.
Depois de rir, caiu na rede; as
pernas, que andavam à larga nas calças, aliás estreitas, cruzavam-se à maneira
oriental, e ele ficou sentado defronte de mim.
— Lunáticos! repetiu ele.
— Dada a sua teoria, expliquei eu.
— Teoria de lunático?
— Perdão.
Já me não ouvia; com os dedos no ar
fazia figuras extravagantes, retas, curvas, ângulos e triângulos, rindo à toa,
com o riso pálido e sem expressão dos mentecaptos. Não havia dúvida; era uma
alma sem consciência. Arrependi-me de alguma coisa que disse menos pensada, e
procurei ao mesmo tempo um meio de sair dali sem o irritar. Não me foi difícil;
três vezes me despedi, sem que ele me respondesse; saí sem objeção.
Chegando ao meu aposento, senti
alguma coisa semelhante ao prazer de um homem que foge de um perigo ou a um
incidente desagradável. Efetivamente a conversa de um homem sem juízo não era segura. Eu cuidava ter
diante de mim um espírito original;
saía-me um louco; o interesse diminuía ou mudava de natureza. Determinei acabar
ali as minhas relações com Damasceno.
Durante quinze dias encontrei-o duas vezes, na
escada; cumprimentou-me e falou-me como se tivera intactas todas as molas do
cérebro. Queixou-se-me apenas de alguma dor de cabeça e palpitações do coração.
— Temo que isto vá a acabar, disse
ele a segunda vez.
— Não diga isso!
— Verá; estou à beira da eternidade;
vou dar o salto mortal.
Não alimentei a conversa e saí. Nessa
noite contou-me o pajem que Damasceno Rodrigues me procurara com muitas
instâncias dizendo que desejava confiar-me um segredo. Era provavelmente alguma
nova fantasia semelhante à de Jonas e à da lua, e eu não queria animar os desvarios
de um pobre velho. Não lhe mandei dizer que estava em casa nem o procurei. Alta
noite, e estando a ler, ouvi um gemido no andar de cima. Subi devagarinho, colei o
ouvido à porta da sala de Damasceno, mas nada mais ouvi.
Soube no dia seguinte que Damasceno
adoecera. Fui vê-lo pela volta do meio-dia. Como ele nunca fechava a porta, não
foi preciso incomodá-lo, para lá entrar. Achei-o deitado na cama, com os olhos
cerrados e os braços estendidos ao longo do corpo e por fora da coberta. Abriu os olhos, e sorriu
ao ver-me.
— Que tem? perguntei.
— Uma opressão no peito.
— Tomou alguma coisa?
— Que me fizesse mal?
— Não; algum remédio.
— Não tomei nada.
— Bem; é preciso ver o que isso é;
vou mandar vir um médico.
Damasceno tinha os olhos cravados na
parede; não me respondeu. Ia sair, para dar ordens ao meu criado, quando vi o
enfermo sentar-se na cama, e olhando para a parede que lhe ficava ao lado dos
pés, clamar aflito:
— Não! ainda não! Vai-te! Depois,
daqui a um ano!... a dois... a três... Vai-te, Lucinda! Deixa-me!
Corri a Damasceno, falei-lhe,
apalpei-lhe a testa, que estava quente, e obriguei-o a deitar-se. Uma vez
deitado, ficou arquejante, a olhar para a sala, sem querer dirigir os olhos
para os pés da cama.
— O que é que sente? perguntei.
Não disse nada; talvez me não
ouvisse. Saí para mandar chamar um médico, e voltei ao quarto do enfermo.
Estava dormindo. O médico veio, examinou-o, interrogou-o, receitou enfim alguma
coisa, que imediatamente mandei preparar na mais próxima botica. Mandei a uma casa da vizinhança
arranjar caldos e galinha; finalmente dispus-me a não sair de casa nesse dia.
Não contava com o amor; duas linhas
escritas em uma folha de papel bordado, como se usava no meu tempo, vieram
mudar a resolução em que eu assentara. Saí, depois de fazer muitas
recomendações ao criado e prometendo voltar cedo. Às oito horas da noite
achava-me em casa; fui ter logo com o doente. Achei-o sossegado.
— Entre, entre, meu amigo, disse ele;
deixe-me chamar-lhe assim, porque não tenho ninguém mais a quem dê esse doce
nome.
— Está melhor?
— Estou; mas são melhoras
passageiras.
— Não diga isso.
— São. Isso há de acabar cedo. Sabe o
que é a morte?
— Imagino.
— Não sabe. A morte é um verme, de
duas espécies, conforme se introduz no corpo ou na alma. Mata em ambos os
casos. Em mim não penetrou no corpo; o corpo geme porque a doença reflete nele;
mas o verme está na alma. Nela é que eu o sinto a roer todos os dias.
— Pois matemos o verme, disse eu,
apresentando-lhe uma colher do remédio.
Damasceno olhou para o remédio e para
mim, e sorriu, com uma expressão de tranqüilo ceticismo.
— Pobre moço! disse ele, depois de
alguns instantes de silêncio.
— Vamos!
— Logo mais, amanhã, ou depois que eu
morrer. Talvez ainda possa fazer algum benefício
ao meu cadáver. A alma não bebe água.
Insisti, mas foi baldado. Damasceno
resistiu intrepidamente. Quando as minhas instâncias lhe pareceram excessivas
começou a irritar-se, e eu, receoso de algum novo delírio, proveniente da
exacerbação, cedi; fui ter com o criado que me referiu haver Damasceno tomado
apenas uma colher do remédio e um caldo. Voltei ao quarto, achei-o tranqüilo.
A luz do quarto era pouca, e esta
circunstância, ligada ao espetáculo da doença e às feições do pobre velho alienado,
não menos que às recordações que já me prendiam a ele, tornara a situação por
extremo penosa. Sentei-me ao pé da cama e tomei-lhe o pulso; batia apressado; a
testa estava quente. Ele deixou que eu fizesse todos esses exames sem dizer
nada. Tinha os olhos no teto e parecia alheio de todo à minha pessoa e à
situação. Pouco depois chegou o médico, soube da resistência do enfermo em
continuar a tomar o remédio, examinou-o, fez um gesto de desânimo, e ao sair disse-me que o homem estava perdido.
A perspectiva não era para mim
agradável. Não podia razoavelmente desampará-lo e tinha talvez de assistir à
sua morte naquela noite. Chamei o criado e escrevi um bilhete a dois colegas de
S. Paulo, residentes na Corte, pedindo-lhes que viessem passar a noite comigo.
O criado saiu e eu sentei-me outra vez ao pé da cama.
No fim de alguns minutos, vi que
Damasceno se agitava. Perguntei-lhe o que tinha.
— Nada, respondeu ele, mudo de
posição. Que horas são?
— Nove e um quarto.
— E o senhor pretende passar a noite
comigo?
— Naturalmente.
O rosto do enfermo iluminou-se.
— Boa alma! exclamou ele.
Depois procurou a minha mão e teve-a
presa entre as suas algum tempo, olhando para mim com uma expressão de
agradecimento, que lhe parecia tornar bela a fisionomia seca e dura.
— Que lhe fiz eu para merecer tanta
dedicação? perguntou ele ao cabo de alguns minutos de silêncio.
— Não falemos disso.
Damasceno calou-se.
— Que idade tem?
— Vinte e dois anos.
— Feliz! feliz!
Calou-se outra vez e pareceu
concentrar-se de novo. Pensei que iria dormir, mas ele voltou-se para mim
dizendo:
— Quero pagar-lhe os seus benefícios.
— Pagará depois.
— Não; há de ser já.
Ergueu o corpo, apoiando o cotovelo
na cama, pegou-me na mão e cravou em mim os olhos, acesos de uma luz repentina
e única.
— Mancebo, disse ele, com a voz cava;
não olhe nunca para a mulher do seu próximo.
— Sossegue, disse eu.
— Sobretudo não a obrigue a que ela
olhe para o senhor. Comprará por esse preço a paz de sua vida toda.
A gravidade com que ele proferiu
estas palavras excluía toda a idéia de loucura. A própria fisionomia parecia
revelar o regresso da consciência. Olhei para ele algum tempo sem responder, nem ousar pedir-lhe
explicação. Damasceno fitou o ar com expressão melancólica, abanou a cabeça
três vezes e suspirou. Depois a cabeça caiu sobre o ombro, e ele ficou algum
tempo quieto. Ouvindo o sino das dez horas, abriu os olhos e voltou-se para
mim.
— Por quê se não vai deitar?
— Não tenho sono.
— Perder uma noite por causa de um
desconhecido!
— Não se preocupe comigo; descanse,
que é melhor.
Damasceno meteu a mão debaixo do
travesseiro, como procurando alguma coisa. Era uma chave. Deu-ma.
— Abra-me a gavetinha da cômoda, a do
lado da rua.
— E depois?
— Tire de lá uma caixinha.
A caixinha era de couro e teria um
palmo de comprimento. Quando lha levei, ele pô-la sobre a cama e olhou mudo
para ela. Depois, tocou em uma pequena mola; a caixa abriu-se, e ele tirou de
dentro um pequeno maço de papéis.
— Se eu morrer, disse ele, queime isto.
— Feche tudo, é melhor.
— Não é preciso. O que aí está é um
segredo, mas eu não quero morrer sem lho revelar. Não lhe disse há pouco que
não consentisse nunca em olhar ou ser olhado pela mulher de seu próximo? Pois
bem; saberá o resto.
A curiosidade pendurou-se-me dos
olhos e, apesar da pouca luz da alcova, é possível que ele reparasse nisto,
porque vi-o sorrir com uma expressão maliciosa e discreta.
— São papéis de família, continuou
Damasceno; coisas que só a mim interessam. Há aqui, porém, uma coisa que o senhor pode ver
desde já.
Dizendo isto, destacou do maço de
papéis uma miniatura e deu-ma pedindo que a visse. Aproximei-me da luz e vi uma
formosa cabeça de mulher, e os mais expressivos
olhos que jamais contemplei na minha vida. Ao restituir a miniatura reparei que
ele a desviou apressadamente dos olhos metendo-a logo, com a mão trêmula, entre
os papéis.
— Viu-a?
— Vi.
— Não me diga nada do que lhe parece.
Imagino qual será a sua impressão. Calcule qual seria a minha há quinze anos,
diante do original. Ela tinha vinte anos; e eu vinte e cinco...
Damasceno interrompeu-se;
arrependia-se talvez; e eu não ousava, em tal situação, mostrar-me indiscreto e
curioso. Ele entretanto atava o maço de papéis e a miniatura com um cadarço velho, e entregou-me
tudo.
— Guarde. Jura que queimará isso?
— Juro.
Guardei no bolso o maço enquanto ele,
reclinando o corpo, ficou tranqüilo. Durante cinco minutos nada disse; começou
a murmurar palavras sem sentido, com esgares próprios de louco. Esta circunstância
chamou-me à realidade. Não seriam os papéis e o retrato coisas sem valor, a que
ele em seu desvario atribuía tamanha importância? Damasceno falou de novo.
— Guardou?
— Guardei.
— Deixe ver.
— Está aqui, disse-lhe eu, mostrando
o embrulho.
— Está bem.
E depois de uma pausa:
— Eu era moço, ela moça; ambos
inocentes e puros. Sabe o que nos matou? Um olhar.
— Um olhar?
— Era no interior da Bahia. Lucinda
casara-se na capital com o Dr. Adr... Não importa o nome; era médico como eu,
mas rico e dado a estudos de botânica e mineralogia. Andava por Jeremoabo
naquele tempo. Eu encontrei-o num engenho e travei relações com ele. A mulher
era linda como o senhor viu aí. Ele era sábio, taciturno e ciumento. Havia nela tanta
modéstia e recato — talvez medo — que o ciúme dele podia dormir com as portas
abertas. Mas não era assim; o marido era cauteloso e suspeitoso; ameaçava-a e
fazia-a padecer. Eu percebi isso, e a compaixão apoderou-se de mim. A compaixão
é um sentimento pérfido; abstenha-se dele ou combata-o. Quem sabe se a que
sente agora por mim não lhe dará mau resultado?
Estremeci ouvindo esta última
palavra. Ele parou um instante e continuou:
— Lucinda não me olhava nunca. Era
medo, era talvez intimação do marido. Se me falava alguma vez era secamente e
por monossílabos. Meu coração deixou-se ir da compaixão ao amor pelo mais
natural dos declives, amor silencioso, cauto, sem esperança nem repercussão. Um dia, em que a vi
mais triste que de costume, atrevi-me a perguntar-lhe se padecia. Não sei que
tom havia em minha voz, o certo é que Lucinda estremeceu, e levantou os olhos
para mim. Cruzaram-se com os meus, mas disseram
nesse único minuto — que digo? nesse único instante, toda a devastação de
nossas almas; corando, ela abaixou os seus, gesto de modéstia, que era a confirmação
de seu crime; eu deixei-me estar a contemplá-la silenciosamente. No meio dessa
sonolência moral em que nos achávamos, uma voz atroou e nos chamou à realidade
da vida. Ao mesmo tempo achou-se defronte de nós a figura do marido. Nunca vi
mais terrível expressão em rosto humano! A cólera fazia dele uma Medusa. Lucinda
caiu prostrada e sem sentidos. Eu, confuso, não me atrevia a explicar nem a pedir
explicações. Ele olhou para mim e para ela. Sucedera à primeira manifestação silenciosa
da cólera uma coisa mais apagada e mais terrível, uma resolução fria e quieta.
Com um gesto despediu-me; quis falar, ele impôs silêncio com os olhos. Quase a
sair voltei e, apesar da oposição, expus-lhe toda a singularidade de seu procedimento.
Ouviu-me calado. Vendo que nada alcançava e não querendo que sobre a infeliz
pairasse a menor suspeita, nem que ela padecesse sem outro motivo, mais grave,
expus-lhe francamente os meus sentimentos em relação a ele e a ela, a afeição
que Lucinda me inspirara, protestando com todas as forças pela inteira dignidade
da infeliz. Riu-se, e não me disse nada. Despedi-me e saí...
Estas recordações pareciam abater o
enfermo. A voz, ao chegar àquela palavra, era fraca e rouca; ele fez uma longa
pausa, cobrindo os olhos com as mãos ocas e transparentes. Alguns minutos
depois continuou:
— Passaram-se algumas semanas. Um
dia, levado por necessidade de ofício, fui a Jeremoabo, pensando em Lucinda e
um pouco receoso de algum sucesso desagradável. Lucinda havia morrido; e a
pessoa que deu esta notícia benzeu-se supersticiosamente e não revelou mais
nada, apesar das minhas instâncias. Que teria havido? A idéia de que o marido a
houvesse assassinado, apoderou-se de meu espírito; mas eu não ousava formular a
pergunta. Indagando mais, ouvi de uns que ela cometera suicídio, de outros que
desaparecera; enfim alguns criam que estava apenas doente às portas da morte. Esta
diversidade de notícias era claro indício de que alguma coisa grave se passava
ou estava passando. Fui ter à propriedade do marido, resoluto a saber tudo e a
salvar a vida da inocente, se fosse possível...
Damasceno interrompeu-se de novo.
Estava cansado e opresso. Pedi-lhe que suspendesse por algum tempo a narração e
guardasse o fim para o dia seguinte, apesar
da curiosidade que me picava interiormente. Ao mesmo tempo admirava a perfeita
lucidez com que ele me referia aquelas coisas, a comoção da palavra, que nada tinha do vago e desalinhado da
palavra dos loucos. Era aquele mesmo o homem que me consultara acerca de Jonas
e me expusera uma teoria nova acerca da lua? Enquanto em meu espírito resolvia
esta dúvida, Damasceno agitava-se no leito, como buscando melhor cômodo. A vela
estava a extinguir-se, acendi outra e fui até à janela ansioso pelo criado e os dois amigos
a quem escrevera. A rua estava deserta; apenas ao longe se ouvia o passo de um
ou outro transeunte. Voltei ao quarto.
Damasceno estava então sentado na cama, um pouco reclinado sobre os travesseiros.
— Não tenha medo, disse ele, venha
ouvir o resto, que é pouco, mas instrutivo. Fui ter com o médico. Logo que soube que eu o
procurara veio receber-me contente. Disse-lhe francamente o que ouvira dizer a
respeito da mulher, as opiniões e versões diferentes, a necessidade que havia
de instruir o povo da verdade e retirar de sobre ele alguma suspeita terrível.
Ouviu-me calado. Logo que acabei, disse-me que eu fizera bem em ir vê-lo; que
Lucinda estava viva, mas podia morrer no dia seguinte; que, depois de cogitar na punição que daria ao
olhar da moça resolvera castigar-lhe simplesmente os olhos... Não entendi nada;
tinha as pernas trêmulas e o coração batia-me apressado. Não o acompanharia
decerto, se ele, apertando-me o pulso com a mão de ferro, me não arrastasse até
uma sala interior... Ali chegando... vi... oh! É horrível! vi, sobre uma cama,
o corpo imóvel de Lucinda, que gemia de modo a cortar o coração. “Vê, disse
ele, só lhe castiguei os olhos”. O espetáculo que se me revelou então, nunca,
oh! nunca mais o esquecerei! Os olhos da pobre moça tinham desaparecido; ele os
vazara, na véspera, com um ferro em brasa... Recuei espavorido. O médico
apertou-me os pulsos clamando com toda a raiva concentrada em seu coração: “Os
olhos delinqüiram, os olhos pagaram!”
A cabeça do enfermo rolou sobre os
travesseiros, enquanto eu, aterrado do que ouvia e da expressão de sincero
horror e aparente veracidade com que ele falava, olhei em volta de mim como
procurando fugir. Damasceno ficou longo tempo arquejante.
De repente, dando um estremeção
ergueu a cabeça e olhou para a parede que ficava do lado inferior da cama:
— Vai-te! exclamou ele aflito.
Vai-te! ainda não!... Olhe!... Olhe! lá está ela! lá está!... O dedo magro e
trêmulo apontava alguma coisa no ar, enquanto os olhos, naturalmente fixos, resumiam todo o terror que
é possível conter a alma humana. Insensivelmente olhei para o lugar que ele
indicava... Olhei; e podem crer que
ainda hoje não esqueci o que ali se passou. De pé, junto à parede, vi uma
mulher lívida, a mesma do retrato, com os cabelos soltos, e os olhos... Os
olhos, esses eram duas cavidades vazias e ensangüentadas.
Naquela meia luz da alcova, e no alto
de uma casa sem gente, a semelhante hora, entre um louco e uma estranha
aparição, confesso que senti esvairem-se-me as forças e quase a razão. Batia-me
o queixo, as pernas tremiam-me, tanto eu ficara gelado e atônito. Não sei o que
se passou mais; não posso dizer sequer que tempo durou aquilo, porque os olhos
se me apagaram também, e perdi de todo os sentidos.
Quando dei acordo de mim, estava no meu
quarto, deitado, tendo a meu lado os dois amigos que mandara chamar. Ambos
procuraram desviar-me do espírito a lembrança do que se passara no quarto de
Damasceno; precaução ociosa, porque de nada me lembrava então e o abalo fora
tamanho que o passado como que desaparecera. Passei uma noite cruel, entre a
agitação e o abatimento. Sobre a madrugada dormi.
Acordei com sol alto. Pude então
recordar a cena da véspera, e só a recordação me fazia tiritar e gelar a alma. Quis ir ver o
doente porque, apesar dos sucessos anteriores, interessava-me o pobre velho
condenado a uma triste visão perpétua.
— É tarde! disseram-me.
— Por quê?
— O doente morreu.
Senti que uma gota me brotava dos
olhos, foi a única lágrima que ele obteve dos homens.
Meus colegas referiram-me que a morte
sucedera ao romper da manhã, estando presente um deles e o criado. Damasceno
morreu a falar das mais desencontradas coisas:
de guerras, de meteoros e de S. Tomás de Aquino. Seu último gesto foi para abraçar
o sol, que dizia estar diante dele. Morreu enfim ou, antes, restituiu-se à eternidade,
segundo a expressão do meu colega, a cujos olhos o doente parecera um esqueleto
que visitara por algum tempo a terra.
Não pude assistir ao enterro; estava
abatido e doente; mas um dos meus amigos foi até o cemitério. Com um deles fui
dormir aquela e as noites seguintes, não podendo passá-las debaixo do mesmo
teto em que se dera a terrível aparição. A justiça arrecadou o que pertencia a
Damasceno Rodrigues; ele vivia do aluguel de duas casinhas e de algumas
apólices, que se lhe encontraram. Não tinha herdeiros.
Só muitos dias depois atrevi-me a ver
de novo o retrato da mulher que ele me dera. Ainda assim não foi sem terror, e
arrependi-me de o ter feito, porque toda a cena se me reproduziu logo ante os olhos. Era
miraculosamente bela a mártir de Jeremoabo; eu compreendia, não só a loucura de
Damasceno, mas também a ferocidade do esposo.
O desembargador fez pausa, no meio do
geral silêncio de constrangimento que sua narração produzira. Vasconcelos foi o
primeiro que falou:
— Não podemos duvidar que o senhor
visse a figura dessa mulher, disse ele; mas como explicar o fenômeno?
— A dificuldade é maior do que pensa,
acudiu o desembargador. O episódio teve um epílogo.
— Ah!
— Quando referi a aparição a algumas
pessoas, ninguém me deu crédito; e os mais polidos atribuíam o caso a um
pesadelo. Evitei expor-me à incredulidade e ao ridículo. Mais tarde, já senhor de mim,
determinei contar a catástrofe de Damasceno em um jornal que escrevíamos na
Academia. Tratando de colher alguma coisa mais acerca do infeliz, vim a saber,
com grande surpresa minha, que ele nunca estivera na Bahia, nem saíra do Sul.
Já então não era só o interesse literário que me inspirava; era a liquidação de
um ponto obscuro e a explicação de um fenômeno. Casara aos vinte e dois anos em
Santa Catarina, de onde só saiu aos trinta e três, não podendo, portanto, encontrar-se com o
original do retrato, aos vinte e cinco, solteiro, em Jeremoabo; finalmente, a
miniatura que me confiara era simplesmente o retrato de uma sobrinha sua, morta
solteira. Não havia dúvida: o episódio que ele me referira era uma ilusão como
a da lua, uma pura ilusão dos sentidos, uma simples invenção de alienado.
— Mas, sendo assim...
— Sendo assim, como vi eu a mulher
sem olhos? Esta foi a pergunta que fiz a mim mesmo. Que a vi, é certo, tão
claramente como os estou vendo agora. Os mestres da ciência, os observadores da
natureza humana lhe explicarão isso. Como é que Pascal via um abismo ao pé de
si? Como é que Bruto viu um dia a sombra de seu mau gênio?
— O seu caso é talvez mais simples
que esses todos; o desvario do doente foi contagioso, e fez com que o senhor
visse o que ele supunha ver.
— Pois é pena! exclamou o
desembargador; a história de Lucinda era melhor que fosse verdadeira. Que outro
rival de Otelo há aí como esse marido que queimou com um ferro em brasa os mais belos olhos do
mundo, em castigo de haverem fitado outros olhos estranhos? Crê agora em
fantasmas, D. Maria do Céu?
Maria do Céu tinha seus olhos baixos.
Quando o desembargador lhe dirigiu a palavra, estremeceu, ergueu-se. O bacharel
fez o mesmo; mas foi dali a uma janela — talvez tomar ar — talvez refletir a
tempo no risco de vir a interpretar algum dia um hebraísmo das Escrituras.
---
---
Nota:
Texto-fonte: Publicado
originalmente em Jornal das Famílias, dezembro, 1876.
Nenhum comentário:
Postar um comentário