
QUESTÕES DE MARIDOS
— O subjetivo... o subjetivo... Tudo
através do subjetivo, — costumava dizer o velho professor Morais Pancada.
Era um sestro. Outro sestro era sacar
de uma gaveta dois maços de cartas para demonstrar a proposição. Cada maço
pertencia a uma de duas sobrinhas, já falecidas. A destinatária das cartas era
a tia delas, mulher do professor, senhora de sessenta e tantos anos, e
asmática. Esta circunstância da asma é perfeitamente ociosa para o nosso caso;
mas isto mesmo lhes mostrará que o caso é verídico.
Luísa e Marcelina eram os nomes das
sobrinhas. O pai delas, irmão do professor, morrera pouco depois da mãe, que as deixou
crianças; de maneira que a tia é quem as criou, educou e casou. A primeira
casou com dezoito anos, e a segunda com dezenove, mas casaram no mesmo dia. Uma
e outra eram bonitas, ambas pobres.
— Coisa extraordinária! disse o
professor à mulher um dia.
— Que é?
— Recebi duas cartas, uma do
Candinho, outra do Soares, pedindo... pedindo o quê?
— Diga.
— Pedindo a Luísa...
— Os dois?
— E a Marcelina.
— Ah!
Este ah! traduzido literalmente,
queria dizer: — já
desconfiava isso mesmo. O extraordinário para o velho professor era que
o pedido de ambos fosse feito na mesma ocasião. Mostrou ele as cartas à mulher,
que as leu, e aprovou a escolha. Candinho
pedia a Luísa, Soares a Marcelina. Eram ambos moços, e pareciam gostar muito
delas.
As sobrinhas, quando o tio lhes
comunicou o pedido, já estavam com os olhos baixos; não simularam espanto, porque elas
mesmas é que tinham dado autorização aos namorados. Não é preciso dizer que
ambas declararam aceitar os
noivos; nem que o
professor, à noite, escovou toda a sua retórica para responder conveniente aos
dois candidatos.
noivos; nem que o
professor, à noite, escovou toda a sua retórica para responder conveniente aos
dois candidatos.
Outra coisa que não digo, — mas é por
não saber absolutamente, — é o que se passou entre as duas irmãs, uma vez
recolhidas naquela noite. Por alguns leves cochichos, pode crer-se que ambas se
davam por bem-aventuradas, propunham planos de vida, falavam deles, e, às vezes
não diziam nada, deixando-se estar com as
mãos presas e os olhos no chão. É que realmente gostavam dos noivos, e eles
delas, e o casamento vinha coroar as suas ambições.
Casaram-se. O professor visitou-as no
fim de oito dias, e achou-as felizes. Felizes, ou mais ou menos se passaram os
primeiros meses. Um dia, o professor teve de ir viver em Nova Friburgo, e as
sobrinhas ficaram na corte, onde os maridos eram empregados. No fim de algumas
semanas de estada em Nova Friburgo, eis a carta que a mulher do professor
recebeu de Luísa: Titia, Estimo que a senhora tenha passado bem, em companhia
do titio, e que dos incômodos vá melhor. Nós vamos bem. Candinho agora anda com
muito trabalho, e não pode deixar a corte nem um dia. Logo que ele esteja mais
desembaraçado iremos vê-los.
Eu continuo feliz; Candinho é um
anjo, um anjo do céu. Fomos domingo ao teatro da Fênix, e ri-me muito com a
peça. Muito engraçada! Quando descerem, se a peça ainda estiver em cena, hão de
vê-la também.
Até breve, escreva-me, lembranças a
titio, minhas e do Candinho.
Luísa.
Marcelina não escreveu logo, mas dez
ou doze dias depois. A carta dizia assim:
Titia,
Não lhe escrevi há mais tempo, por
andar com atrapalhações de casa; e aproveito esta abertazinha para lhe pedir
que me mande notícias suas, e de titio. Eu não sei se poderei ir lá; se puder,
creia que irei correndo. Não repare nas poucas linhas, estou muito aborrecida.
Até breve.
Marcelina.
— Vejam, comentava o professor; vejam
a diferença das duas cartas. A de Marcelina com esta expressão: — estou muito aborrecida; e nenhuma palavra do Soares. Minha mulher não reparou na
diferença, mas eu notei-a, e disse-lha, ela entendeu aludir a isso na resposta,
e perguntou-lhe como é que uma moça, casada de meses, podia ter aborrecimentos.
A resposta foi esta:
Titia,
Recebi a sua carta, e estimo que não
tenha alteração na saúde nem o titio. Nós vamos bem e por aqui não há novidade.
Pergunta-me por que é que uma moça,
casada de fresco, pode ter aborrecimentos? Quem lhe disse que eu tinha
aborrecimentos? Escrevi que estava
aborrecida, é verdade; mas então a gente não pode um momento ou outro deixar de
estar alegre?

É verdade que esses momentos meus são
compridos, muito compridos. Agora mesmo, se lhe dissesse o que se passa em mim,
ficaria admirada. Mas enfim Deus é
grande...
Marcelina.
— Naturalmente, a minha velha ficou
desconfiada. Havia alguma coisa, algum mistério, maus-tratos, ciúmes, qualquer
coisa. Escreveu-lhe pedindo que dissesse tudo, em particular, que a carta dela
não seria mostrada a ninguém. Marcelina animada
pela promessa, escreveu o seguinte:
Titia,
Gastei todo o dia a pensar na sua
carta, sem saber se obedecesse ou não; mas, enfim, resolvi obedecer, não só
porque a senhora é boa e gosta de mim, como porque preciso de desabafar.
É verdade, titia, padeço muito,
muito; não imagina. Meu marido é um friarrão, não me ama, parece até que lhe
causo aborrecimento.
Nos primeiros oito dias ainda as
coisas foram bem: era a novidade do casamento. Mas logo depois comecei a sentir
que ele não correspondia ao meu sonho de marido. Não era um homem terno, dedicado, firme, vivendo de mim e para mim. Ao
contrário, parece outro, inteiramente outro, caprichoso, intolerante, gelado,
pirracento, e não ficarei admirada se me disserem que ele ama a outra. Tudo é possível,
por minha desgraça...
É isto que queria ouvir? Pois aí tem.
Digo-lhe em segredo; não conte a ninguém, e creia na sua desgraçada sobrinha do
coração.
Marcelina.
— Ao mesmo tempo que esta carta
chegava às mãos da minha velha, continuou o professor, recebia ela esta outra
de Luísa:
Titia,
Há muitos dias que ando com vontade
de escrever-lhe; mas ora uma coisa, ora outra, e não tenho podido. Hoje há de
ser sem falta, embora a carta saia pequena.
Já lhe disse que continuo a ter uma
vida muito feliz? Não imagina; muito feliz. Candinho até me chama doida quando
vê a minha alegria; mas eu respondo que ele pode dizer o que quiser, e continuo
a ser feliz, contanto que ele o seja também, e pode crer que ambos o somos. Ah!
titia! em boa hora nos casamos! E Deus pague a titia e ao titio que aprovaram
tudo. Quando descem? Eu, pelo verão, quero ver se vou lá visitá-los.
Escreva-me.
Luísa.
E o professor, empunhando as cartas
lidas, continuou a comentá-las, dizendo que a mulher não deixou de advertir na
diferença dos destinos. Casadas ao mesmo tempo, por escolha própria, não
acharam a mesma estrela, e ao passo que uma estava tão feliz, a outra parecia
tão desgraçada.
— Consultou-me se devia indagar mais
alguma coisa de Marcelina, e até se conviria descer por causa dela;
respondi-lhe que não, que esperássemos; podiam ser arrufos de pequena monta.
Passaram-se três semanas sem cartas. Um dia a minha velha recebeu duas, uma de Luísa, outra
de Marcelina; correu primeiro à de Marcelina.
Titia,
Ouvi dizer que tinham passado mal
estes últimos dias. Será verdade? Se for
verdade ou não, mande-me dizer. Nós vamos bem, ou como Deus é servido. Não
repare na tinta apagada; é de minhas lágrimas.
Marcelina.
A outra carta era longa; mas eis aqui
o trecho final. Depois de contar um espetáculo no Teatro Lírico, Luísa dizia
assim:
... Em suma, titia, foi uma noite
cheia, principalmente por estar ao lado do meu querido Candinho, que é cada vez
mais angélico. Não imagina, não imagina. Diga-me: o titio foi assim também
quando era moço? Agora, depois de velho, sei que é do mesmo gênero. Adeus, e até
breve, para irmos ao teatro juntas.
Luísa.
— As cartas continuaram a subir, sem
alteração de nota, que era a mesma para ambas. Uma feliz, outra desgraçada. Nós
afinal já estávamos acostumados com a situação.
De certo tempo em diante, houve mesmo de parte de Marcelina uma ou outra
diminuição de queixas; não que ela se desse por feliz ou satisfeita com a sorte;
mas resignava-se, às vezes, e não insistia muito. As crises amiudavam-se, e as queixas tornavam ao que eram.
O professor leu ainda muitas cartas
das duas irmãs. Todas confirmavam as primeiras; as duas últimas eram,
principalmente, características. Sendo longas, não é possível transcrevê-las;
mas vai o trecho principal. O de Luísa era este:
... O meu Candinho continua a
fazer-me feliz, muito feliz. Nunca houve marido igual na terra, titio; não
houve, nem haverá; digo isto porque é a
verdade pura.
O de Marcelina era este:
... Paciência; o que me consola é que
meu filho ou filha, se viver, será a
minha consolação: nada mais...
— E então? perguntaram as pessoas que
escutavam o professor.
— Então, quê?... O subjetivo... O
subjetivo...
— Explique-se.
— Está explicado, ou adivinhado, pelo
menos. Comparados os dois maridos, o melhor, o mais terno, o mais fiel, era
justamente o de Marcelina; o de Luísa era apenas um bandoleiro agradável, às
vezes seco. Mas, um e outro, ao passarem pelo espírito das mulheres, mudavam de
todo. Luísa, pouco exigente, achava o Candinho um arcanjo; Marcelina, coração
insaciável, não achava no marido a soma de ternura adequada à sua natureza... O
subjetivo... o subjetivo...
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em A Estação, em 15/07/1883.
Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em A Estação, em 15/07/1883.
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