POBRE FINOCA!
Que é isso? Você parece assustada. Ou
é namoro novo?
— Que novo? é o mesmo, Alberta; é o
mesmo aborrecido que me persegue; viu-me agora passar com mamãe, na esquina da
Rua da Quitanda, e, em vez de seguir o seu caminho, veio atrás de nós. Queria
ver se ele já passou.
— O melhor é não olhar para a porta;
conversa comigo.
Toda a gente, por menos que adivinhe,
sabe logo que esta conversação tem por teatro um armarinho da Rua do Ouvidor.
Finoca (o nome é Josefina) entrou agora mesmo com a velha mãe e foram sentar-se
ao balcão, onde esperam agulhas; Alberta, que está ali com a irmã casada,
também aguarda alguma coisa, parece que uma peça de cadarço. Condição mediana
de ambas as moças. Ambas bonitas. Os empregados trazem caixas, elas escolhem.
— Mas você não terá animado a
perseguição, com os olhos? perguntou Alberta, baixinho.
Finoca respondeu que não. A princípio
olhou para ele; curiosa, naturalmente; uma moça olha sempre uma ou duas vezes,
explicava a triste vítima; mas daí em diante,
não se importou com ele. O idiota, porém (é o próprio termo empregado por ela),
cuidou que estava aceito e toca a andar, a passar pela porta, a esperá-la nos
pontos dos bondes; até parece que adivinha quando ela vai ao teatro, porque sempre
o acha à porta, ao pé do bilheteiro.
— Não será fiscal do teatro? aventou
Alberta rindo.
— Talvez, admitiu Finoca.
Pediram mais cadarços e mais agulhas,
que o empregado foi buscar, e olharam para
a rua, donde entravam várias senhoras, umas conhecidas, outras não. Cumprimentos,
beijos, notícias, perguntas e respostas, troca de impressões de um baile, de um
passeio ou de uma corrida de cavalos. Grande rumor no armarinho; falam todas, algumas sussurram
apenas, outras riem; as crianças pedem isto ou aquilo, e os empregados curvados
atendem risonhos à freguesia, explicam-se, defendem-se.
— Perdão, minha senhora; o metim era
desta largura.
— Qual, S. Silveira! Deixe, que eu
lhe trago amanhã os dois metros.
— Sr. Queirós?
— Que manda V. Exª.?
— Dê-me aquela fita encarnada de
sábado.
— Da larga?
— Não, da estreita.
E o Sr. Queirós vai buscar a caixa
das fitas, enquanto a dama, que as espera, examina de esguelha outra dama que
entrou agora mesmo, e parou no meio da loja. Todas as cadeiras estão ocupadas. The table is full, como em Macbeth; e, como em Macbeth, há um fantasma, com a diferença que
este não está sentado à mesa, entra pela porta; é o idiota, perseguidor de
Finoca, o suposto fiscal de teatro, um rapaz que não é bonito nem elegante, mas
simpático e veste com asseio. Tem um par de olhos, que valem pela lanterna de
Diógenes; procuram a moça e dão com ela; ela dá com ele; movimento contrário de
ambos; ele, Macedo, pede a um empregado uma bolsinha de moedas, que viu à
porta, no mostrador, e que lhe traga outras à escolha. Disfarça, puxa os
bigodes, consulta o relógio, e parece
que o mostrador está empoeirado, porque ele tira do bolso um lenço com que o
limpa; lenço de seda.
— Olha, Alberta, vê-se mesmo que
entrou por minha causa. Vê, está olhando para cá.
Alberta verificou disfarçadamente que
sim; ao mesmo tempo que o rapaz não tinha má cara nem modos feios.
— Para quem gostasse dele, era boa
escolha, disse ela à amiga.
— Pode ser, mas para quem não gosta,
é um tormento.
— Isso é verdade.
— Se você não tivesse já o Miranda,
podia fazer-me o favor de o entreter, enquanto
ele se esquece de mim, e fico livre.
Alberta riu-se.
— Não é má idéia, disse; era assim um
modo de tapar-lhe os olhos, enquanto você foge. Mas então ele não tem paixão;
quer só namoro, passar o tempo...
— Pode ser isso mesmo. Contra
velhaco, velhaca e meia.
— Perdão; duas velhacas, porque somos
duas. Você não pensa, porém, em uma coisa; é que era preciso chamá-lo a mim, e
não é coisa que se peça a uma amiga séria. Pois eu iria agora fazer-lhe
sinais...
— Aqui estão as agulhas que V.
Exª....
Interrompeu-se a conversação;
trataram das agulhas, enquanto Macedo tratou das bolsinhas, e o resto da
freguesia das suas compras. Sussurro geral. Ouviu-se um toque de caixa; era um batalhão que subia a
Rua do Ouvidor. Algumas pessoas foram vê-lo passar às portas. A maior parte
deixou-se ficar ao balcão, escolhendo, falando, matando o tempo. Finoca não se
levantou; mas Alberta, com o pretexto de que Miranda (o namorado) era tenente
de infantaria, não pôde resistir ao espetáculo militar. Quando ela voltou para
dentro, Macedo, que espiava o batalhão por cima do ombro da moça, deu-lhe
galantemente passagem.
Saíram e entraram fregueses. Macedo,
à força de cotejar bolsinhas, foi obrigado a comprar uma delas, e pagá-la; mas
não a pagou com o preço exato, deu nota maior
para obrigar ao troco. Entretanto, esperava e olhava para a esquiva Finoca, que
estava de costas, tal qual a amiga. Esta ainda olhou disfarçadamente, como quem
procura outra coisa ou pessoa, e deu com os olhos dele, que pareciam pedir-lhe
misericórdia e auxílio. Alberta disse isto à outra, e chegou a aconselhar-lhe
que, sem olhar para ele, voltasse a cabeça.
— Deus me livre! Isto era dar corda,
e condenar-me.
— Mas, não olhando...
— É a mesma coisa; o que me perdeu
foi isso mesmo, foi olhar algumas vezes, como já disse a você; meteu-se-lhe em
cabeça que o adoro, mas que sou medrosa, ou caprichosa, ou qualquer outra
coisa...
— Pois olhe, eu se fosse você olhava
algumas vezes. Que mal faz? Era até melhor que ele perdesse as esperanças,
quando mais contasse com elas.
— Não.
— Coitado! parece que pede esmolas.
— Você olhou outra vez?
— Olhei. Tem uma cara de quem padece.
Recebeu o troco do dinheiro sem contar, só para me dizer que você é a moça mais
bonita do Rio de Janeiro — não desfazendo em mim, já se vê.
— Você lê muita coisa...
— Eu leio tudo.
De fato, Macedo parecia implorar à
amiga de Finoca. Talvez houvesse compreendido a confidência, e queria que ela
servisse de terceira aos amores — a uma paixão do inferno, como se dizia nos
dramas guedelhudos. Fosse o que fosse, não podia ficar na loja mais tempo, sem
comprar mais nada, nem conhecer ninguém. Tratou de sair; fê-lo por uma das
portas extremas, e caminhou em sentido contrário a fim de espiar pelas outras
duas portas a moça dos seus desejos.
Elas é que o não viram.
— Já foi? perguntou Finoca dali a instantes
à amiga.
Alberta voltou a cabeça e percorreu a
loja com os olhos.
— Já foi.
— É capaz de esperar-me na esquina.
— Pois você muda de esquina.
— Como? se não sei se ele desceu ou
subiu?
E depois de alguns momentos de
reflexão:
— Alberta, faz-me este favor!
— Que favor?
— O que lhe pedi há pouco.
— Está tola! Vamos embora...
— O tenente não apareceu hoje?
— Ele não vem às lojas.
— Ah! se ele desse algumas lições ao
meu perseguidor! Vamos, mamãe?
Saíram todos e subiram a rua. Finoca
não se enganara; Macedo estava à esquina da Rua dos Ourives. Disfarçou, mas
fitou logo os olhos nela. Ela não tirou os seus do chão, e foram os de Alberta
que receberam os dele, entre curiosa e piedosa. Macedo agradeceu o favor.
— Nem caso! gemeu ele consigo; a
outra, ao menos, parece ter compaixão de mim.
Seguiu-as, meteu-se no mesmo bonde,
que as levou ao Largo da Lapa, onde se apearam e foram pela Rua das Mangueiras.
Nesta morava Alberta; a outra na dos Barbonos. A amiga ainda lhe deu uma
esmola; a avara Finoca nem voltou a cabeça.
Pobre Macedo! exclamarás tu, ao invés
do título, e realmente, não se dirá que esse rapaz ande no regaço da Fortuna.
Tem um emprego público, qualidade já de si pouco recomendável ao pai de Finoca;
mas, além de ser público, é mal pago. Macedo
faz proezas de economia para ter o seu lenço de seda, roupa à moda, perfumes,
teatro, e, quando há Lyrico, luvas.
Vive em um
quarto de casa
de hóspedes, estreito, sem luz,
com mosquitos e (para que negá-lo?) pulgas. Come mal para vestir bem; e, quanto
aos incômodos da alcova, valem tanto como nada, porque ele ama — não de agora —
tem amado sempre, é a consolação ou compensação das outras faltas. Agora ama a
Finoca, mas de um modo mais veemente que de outras vezes, uma paixão sincera,
não correspondida. Pobre Macedo!
Cinco ou seis semanas depois do
encontro no armarinho, houve um batizado na família de Alberta, o de um
sobrinho desta, filho de um irmão empregado no comércio. O batizado era de
manhã, mas havia baile à noite — e prometia ser de espavento. Finoca mandou
fazer um vestido especial; as valsas e quadrilhas encheram-lhe a cabeça, dois
dias antes do aprazado. Encontrando-se com Alberta, viu-a triste, um pouco
triste. Miranda, o namorado, que era ao mesmo tempo tenente de infantaria,
recebera ordem de ir para S. Paulo.
— Em comissão?
— Não; vai com o batalhão.
— Eu, se fosse ele, fingia-me
constipado, e ia no dia seguinte.
— Mas já foi!
— Quando?
— Ontem de madrugada. Segundo me
disse, de passagem, na véspera, parece que a demora é pequena. Estou pronta a
esperar; mas a questão não é essa.
— Qual é?
— A questão é que ele devia ser
apresentado em casa, no dia do baile, e agora...
Os olhos da moça confirmaram
discretamente a sinceridade da dor; umedeceram-se e verteram duas lágrimas
pequeninas. Seriam as últimas? seriam as primeiras? Haveria as únicas? Eis aí
um problema, que tomaria espaço à narração, sem grande proveito para ela,
porque aquilo que se não acaba entendendo, melhor é não gastar tempo em
explicá-lo. Sinceras eram as lágrimas,
isso eram. Finoca tratou de as enxugar com algumas palavras de boa amizade e
verdadeira pena.
— Fica descansada, ele volta; S.
Paulo é aqui perto. Talvez volte capitão.
Que remédio tinha Alberta, senão
esperar? Esperou. Enquanto esperava, cuidou do batizado, que, em verdade, devia
ser uma festa de família. Na véspera as duas amigas ainda estiveram juntas;
Finoca tinha um pouco de dor de cabeça, estava
aplicando não sei que medicamento, e contava acordar boa. Em que se fiava, não
sei; sei que acordou pior com uma pontinha de febre, e posto quisesse ir assim
mesmo, os pais não o consentiram, e a pobre Finoca não estreou naquele dia o
vestido especial. Tanto pior para ela, porque o pesar aumentou o mal; à meia-noite,
quando mais acesas deviam estar as quadrilhas e valsas, a febre ia em trinta e
nove graus. Creio que se lhe dessem a escolher, ainda assim dançaria. Para que a desgraça fosse maior, a
febre declinou sobre a madrugada, justamente à hora em que, de costume, os
bailes executam as últimas danças.
Contava que Alberta viesse naquele
mesmo dia visitá-la e narrar-lhe tudo; mas esperou-a em vão. Pelas três horas recebeu um
bilhete da amiga, pedindo-lhe perdão de não ir vê-la. Constipara-se e chovia;
estava rouca; entretanto, não queria demorar-se em dar-lhe notícia da festa.
“Esteve magnífica, escrevia ela, se é
que alguma coisa pode estar magnífica sem você e sem ele. Mas, enfim, agradou a
todos, e principalmente aos pais do pequeno. Você já sabe o que meu irmão é, em
coisas desta ordem. Dançamos até perto de três horas. Estavam os parentes quase
todos, os amigos de costume, e alguns convidados novos. Um deles foi a causa da
minha constipação, e dou-lhe um doce se você adivinhar o nome deste malvado.
Digo só que é um fiscal de teatro. Adivinhou? Não diga que é Macedo, porque
então recebe mesmo o doce. É verdade, Finoca; o tal sujeito que te persegue
apareceu aqui, ainda não sei bem como; ou foi apresentado ontem a meu irmão, e
convidado logo por ele; ou este já o conhecia antes, e lembrou-se de lhe mandar
convite. Também não estou longe de crer, que, qualquer que fosse o caso, ele
tratou de se fazer convidado, contando com você. Que lhe parece? Adeus, até
amanhã, se não chover.”
Não choveu. Alberta foi visitá-la,
achou-a melhor, quase boa. Repetiu-lhe a carta, e desenvolveu-a, confirmando as
relações de Macedo com o irmão. Confessou-lhe que o rapaz, tratado de perto,
não era tão desprezível como parecia à outra.
— Eu não disse desprezível, acudiu
Finoca.
— Você disse idiota.
— Sim; idiota...
— Nem idiota. Conversado e muito
atencioso. Diz até coisas bonitas. Eu lembrei-me do que você me pediu, e estou,
quase não quase, a tentar prendê-lo; mas lembrei-me também do meu Miranda, e
achei feio. Contudo, dançamos duas valsas.
— Sim?
— E duas quadrilhas. Você sabe,
poucos dançantes. Muitos jogadores de solo e conversadores de política.
— Mas como foi a constipação?
— A constipação não teve nada com
ele; foi um modo que achei de dar a notícia. E olha que não dança mal, ao contrário.
— Um anjo, em suma?
— Eu, se fosse você, não o deixava ir
assim. Acho que dá um bom marido. Experimenta,
Finoca.
Macedo saíra do baile um tanto
consolado da ausência de Finoca; as maneiras de Alberta, a elegância do vestido, as feições bonitas,
e um certo ar de tristeza que, de quando em quando, lhe cobria o rosto, tudo e
cada uma dessas notas particulares era de fazer pensar alguns minutos antes de
dormir. Foi o que lhe aconteceu. Vira outras moças; mas nenhuma tinha o ar
daquela. E depois era graciosa nos intervalos de tristeza; dizia palavras
doces, ouvia com interesse. Supor que o
tratou assim só por desconfiar que ele gostava da amiga, isto é que lhe parecia
absurdo. Não, realmente, era um anjo.
— Um anjo, disse ele daí a dias ao irmão
de Alberta.
— Quem?
— D. Alberta, sua irmã.
— Sim, boa alma, excelente criatura.
— Pareceu-me isso mesmo. Para
conhecer uma pessoa, bastam às vezes alguns minutos. E depois é muito galante —
galante e modesta.
— Um anjo! repetiu o outro sorrindo.
Quando Alberta soube deste pequeno
diálogo — contou-lho o irmão — sentiu-se um tanto lisonjeada, talvez muito. Não
eram pedras que o rapaz lhe atirava de longe, mas flores — e flores aromáticas.
De maneira que, quando no domingo próximo o irmão o convidou a jantar em casa
dele, e ela viu entrar, pouco antes de irem para a mesa, a pessoa do Macedo,
teve um estremecimento agradável. Cumprimentou-o com prazer. E perguntou a si
mesma, por que é que Finoca desdenhava de um moço tão digno, tão modesto...
Repetiu ainda este adjetivo. É que ambos teriam a mesma virtude.
Dias depois, dando notícia do jantar
a Finoca, Alberta referiu novamente a impressão que lhe deixara o Macedo, e
instou com a amiga para que lhe desse corda, e acabassem casando.
Finoca pensou alguns instantes:
— Você, que já dançou com ele duas
valsas e duas quadrilhas, e jantou à mesma mesa, e ouviu francamente as suas
palavras, pode ter essa opinião; a minha é inteiramente contrária. Acho que ele
é um cacete.
— Cacete porque gosta de você?
— Há diferença entre perseguir uma
pessoa e dançar com outra.
— É justamente o que eu digo, acudiu
Alberta; se você dançar com ele, verá que é outro; mas, não dance, fale só...
Ou então, volto ao plano que tínhamos: vou falar-lhe de você, animá-lo...
— Não, não.
— Sim, sim.
— Então brigamos.
— Pois brigaremos, contanto que
façamos as pazes na véspera do casamento.
— Mas que interesse tem você nisto?
— Porque acho que você gosta dele, e,
se não gostava muito nem pouco, começa a gostar agora.
— Começo? Não entendo.
— Sim, Finoca; você já me disse duas
palavras com a testa franzida. Sabe o que é? É um bocadinho de ciúme. Desde que
soube do baile e do jantar, ficou meia ciumenta
— arrependida de não ter animado o moço... Não negue; é natural. Mas faça uma
coisa; para que Miranda não se esqueça de mim, vá você a S. Paulo, e trate de
fazer-me boas ausências. Aqui está a carta que recebi ontem dele.
Dizendo isto, desabotoou um pedaço do
corpinho, e tirou uma carta, que ali trazia, quente e aromada. Eram quatro
páginas de saudades, de esperanças, de imprecações contra o céu e a terra,
adjetivada e beijada, como é de uso nesse gênero epistolar.
Finoca apreciou muito o
documento; felicitou a amiga pela fidelidade
do namorado, e chegou a confessar que lhe tinha inveja. Foi adiante; nunca
recebera de ninguém uma epístola assim, tão ardente, tão sincera... Alberta deu-lhe uma pancadinha na face com o
papel, e releu-o depois, para si. Finoca, olhando para ela, disse consigo:
— Creio que também ela gosta muito
dele.
— Se você nunca recebeu uma assim —
disse-lhe Alberta — é porque não quer. O Macedo...
— Basta de Macedo!
A conversa voltou ao ponto de
partida, e as duas moças andaram no mesmo círculo vicioso. Não tenho culpa se eram
escassas de assunto e de idéias. Hei de contar a história, que é curta, tal
qual ela é, sem lhe pôr mais nada, além da boa vontade e da franqueza. Assim,
para ser franco, direi que a repulsa de Finoca não era talvez falta de
interesse nem de curiosidade. A prova é que, naquela mesma semana, passando-lhe
pela porta o Macedo, e olhando naturalmente para ela, Finoca afligiu-se menos
que das outras vezes; é certo que desviou os olhos logo, mas sem horror; não
deixou a janela, e, quando ele, ao dobrar a esquina, voltou a cabeça, e não a
viu fitá-lo, viu-a fitar o céu, que é um refúgio e uma esperança. Tu
concluirias assim, rapaz que me lês; Macedo não foi tão longe.
— Afinal, o melhor é não pensar mais
nela, murmurou andando.
Entretanto, ainda pensou nela, de
mistura com a outra, viu-as ao pé de si, uma desdenhosa, outra atenciosa, e
perguntou por que é que as mulheres haviam de ser diferentes; mas, advertindo
que os homens também o eram, convenceu-se que não nascera para os problemas morais, e
deixou cair os olhos no chão. Não caíram no chão, mas nos sapatos. Mirou-os
bem. Que lindos que eram os sapatos! Não eram recentes, mas um dos talentos do
Macedo era saber conservar a roupa e o calçado. Com pouco dinheiro, fazia
sempre bonita figura.
— Sim — repetiu ele, daí a vinte
minutos, Rua da Ajuda abaixo — o melhor é não pensar mais nela.
E pôs mentalmente os olhos em
Alberta, tão cheia de graça, tão elegante de corpo, tão doce de palavras — uma
perfeição. Mas por que é que, sendo atenta com ele, furtava-se-lhe quando ele a mirava de
certo modo? Zanga não era, nem desdém, porque daí a pouco falava-lhe com a
mesma bondade, perguntava-lhe isto e aquilo, respondia bem, sorria, e cantava,
quando ele lhe pedia que cantasse. Macedo animava-se com isto, arriscava outro
daqueles olhares doces e ferinos, a um tempo, e a moça voltava o rosto,
disfarçando. Eis aí outro problema, mas desta vez não fitou o chão nem os
sapatos. Foi andando, esbarrou num homem, escapou de cair num buraco, quase não
deu por nada, tão ocupado levava o espírito.
As visitas continuaram, e o nosso
namorado universal parecia fixar-se de vez na pessoa de Alberta, apesar das
restrições que ela lhe punha. Em casa desta, notavam a assiduidade de Macedo, e
a boa vontade com que ela o recebia, e os que tinham notícia vaga ou positiva
do namoro militar, não compreendiam a moça, e concluíam que a ausência era uma
espécie de morte — restrita, mas não menos
certa. E contudo ela trabalhava para a outra, não digo que com igual esforço nem continuidade; mas em achando modo
de elogiá-la, fazia-o com prazer, embora já sem grande paixão. O pior é que não
há elogios infinitos, nem perfeições que se não acabem de louvar, quando menos
para não vulgarizá-las. Alberta temeu, além disso, a vergonha do papel que lhe
poderiam atribuir; refletiu também que, se o Macedo gostasse dela, como entrava
a parecer, ouviria o nome da outra com impaciência, senão coisa pior — e
calou-o por algum tempo.
— Você ainda continua a trabalhar por
mim? perguntou-lhe um dia Finoca.
Alberta, um tanto espantada da
pergunta (não falavam mais naquilo) respondeu que sim.
— E ele?
— Ele, não sei.
— Esqueceu-me.
— Que se esquecesse não digo, mas
você foi tão fria, tão cruel...
— A gente não vê, às vezes, o que lhe
convém, e erra. Depois, arrepende-se. Há dias, vi-o entrar no mesmo armarinho
em que estivemos uma vez, lembra-se? Viu-me, e não fez caso.
— Não fez caso? Então para que entrou
lá?
— Não sei.
— Comprou alguma coisa?
— Creio que não... Não comprou, não;
foi falar a um dos caixeiros, disse-lhe não sei quê, e saiu.
— Mas está certa que ele reparou em
você?
— Perfeitamente.
— O armarinho é escuro.
— Qual escuro! Viu-me, chegou a tirar
o chapéu disfarçadamente, como era costume...
— Disfarçadamente?
— Sim, era um gesto que fazia...
— E ainda faz esse gesto?
— Naquele dia fez, mas sem se demorar
nada. Antigamente, era capaz de comprar ainda que fosse uma boneca, só para
ver-me mais tempo. Agora... E até já nem passa lá por casa!
— Talvez passe nas horas em que você
não está à janela.
— Há dias, em que estou a tarde
inteira, não contando os domingos e dias santos.
Calou-se, calaram-se. Estavam em casa
de Alberta, e ouviram um som de caixa de
rufo e marcha de tropa. Que coisa mais adequada que fazer uma alusão ao Miranda e perguntar quando voltaria? Finoca
preferiu falar do Macedo, agarrando as mãos à amiga:
— É uma coisa que não posso explicar,
mas agora gosto dele; parece-me, não digo que goste de verdade; parece-me...
Alberta cortou-lhe a palavra com um
beijo. Não era de judas, porque sinceramente Alberta quis assim pactuar com a
amiga a entrega do noivo e o casamento. Mas quem descontaria aquele beijo, em
tais circunstâncias? Verdade é que o tenente estava em S. Paulo, e escrevia;
mas, como Alberta perdesse alguns
correios e explicasse o fato pela necessidade de não descobrir a correspondência,
ele já escrevia menos vezes, menos copioso, menos ardente, coisa que uns justificariam pelas cautelas da
situação e pelas obrigações de ofício, outros por um namoro de passagem que ele
trazia no bairro da Consolação. Foi, talvez,
este nome que levou o namorado de Alberta a freqüentá-lo; achou ali uma menina,
cujos olhos, mui parecidos com os da moça ausente, sabiam fitar com igual tenacidade. Olhos que deixam vestígio;
ele recebeu-os e mandou os seus em troca — tudo pela intenção de mirar a outra,
que estava longe, e pela idéia de que o nome do bairro não era casual. Um dia
escreveu-lhe, ela respondeu; tudo consolações! Justo é dizer que ele suspendeu
a correspondência para o Rio de Janeiro — ou para não tirar o caráter
consolador da correspondência local, ou para não gastar todo o papel.
Quando Alberta notou que as cartas
tinham cessado de todo, sentiu em si indignação
contra o vil, e desligou-se da promessa de casar com ele. Casou três meses
depois com outro, com o Macedo — aquele Macedo — o idiota Macedo. Pessoas que assistiram ao casamento, dizem que
nunca viram noivos mais risonhos nem
mais felizes.
Ninguém viu Finoca entre os
convidados, o que fez pasmar as amigas comuns. Uma destas observou que Finoca,
desde o colégio, fora sempre muito invejosa.
Outra disse que estava fazendo muito calor, e era verdade.
---
---
Nota:
Texto-fonte: Publicado originalmente em A Estação, 31 de
dezembro, 1891.
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