
POBRE CARDEAL!
Martins Netto costumava dizer que era
o homem mais alegre do século, e toda a
gente confirmava essa opinião. Ninguém lhe vira nunca nenhuma sombra de
melancolia. Já maduro, era ainda o melhor acepipe dos jantares, um repositório
de ditos picantes, anedotas joviais,
repentes crespos e crus; mas, além disso, que é a despesa exterior da alegria,
ele a tinha em si mesmo, no sangue e na vida. Pouco antes de morrer, em 1878,
dizia ele a um amigo íntimo, que lhe invejava o temperamento:
— Sou alegre, muito alegre; mas se
disser a você que a isto mesmo devo uma grande amargura...
Calou-se, deu duas voltas, e tornou
ao amigo:
— Vou contar-lhe uma coisa secreta,
como se me confessasse a um padre. Sabe que fui um dos julgadores do famoso
processo de letras falsas João da Cruz, em 1851. Houve nessa sessão do júri
muitas causas importantes, que eu
julguei com a inflexibilidade do costume, e condenei muita gente, do que me não
arrependo.
Na véspera de entrar o processo do
João da Cruz, estive com um tal capitão
José Leandro, que morava na Rua da Carioca; falamos do processo, das letras, de
mil circunstâncias, que me esqueceram, e, finalmente, do próprio João da Cruz,
que o capitão José Leandro dizia conhecer
desde menino. O pai deste capitão foi um general português, que veio com o rei
em 1808, e aqui casou pouco depois com uma senhora de Cantagalo. José Leandro
era menino quando João da Cruz apareceu
em casa dele, na Rua de Mata-cavalos; lembrava-se que ele os festejava e
adulava muito; lembrava-se também que ali pelos fins de 1816 andava João da
Cruz muito por baixo, beirando a miséria, roupa de ano, amarela de uso, mal remendada...
E então, para mostrar-me que o João
da Cruz nascera com o gênio da fraude e da duplicidade, contou-me que um dia,
em 1817, estando ele e a mãe em casa, apareceu ele ali angustiado, desvairado,
bradando:
— Pobre cardeal! pobre cardeal! Ah!
minha senhora D. Luísa, que grande desgraça! pobre cardeal!
D. Luísa levantou-se assustada, e
perguntou-lhe o que era, se falava do general...
— Não, acudiu João da Cruz, não é
nada com o digno marido de V. Excia.;
falo do cardeal! pobre cardeal!
— Mas que cardeal?
João da Cruz tinha-se sentado,
suspirando grosso, esfregando os olhos
com um trapo de lenço. A dona da casa respeitou-lhe a dor, que parecia tão
profunda e deixou-se estar de pé, esperando. Mas não tardou que ouvissem no
saguão da casa um rumor de espada; era o general que entrava. Daí a pouco
estava ele à porta da saleta, e dizia à mulher que acabara de morrer o núncio,
cardeal Caleppi; morrera de um ataque apoplético.
D. Luísa olhou espantada para ele e
para João da Cruz. Foi só então que o general o viu, a alguma distância, de pé,
cheio de respeito e melancolia.
— V. Excia. já sabe então da triste
notícia? Morreu um santo homem, santo e
magnífico, sem desfazer nas pessoas que me ouvem; ah! Um varão digno do céu!
— Entrou aqui, disse D. Luísa, há
poucos instantes, fora de si com a morte do cardeal... Eu nem me lembrava que
cardeal podia ser. Se ele tivesse dito que morreu o núncio...
— É verdade que entrei fora de mim; a
tal ponto, que pratiquei a grosseria de sentar-me diante de V. Excia., estando
V. Excia. de pé; mas a dor desvaira. Acabavam de dar-me a notícia, ali ao pé da
Lagoa da Sentinela, e fiquei como não podem imaginar; fiquei tonto, entrei aqui
tonto.
O general sentou-se espantado; disse
ao João da Cruz que se sentasse também, e perguntou-lhe desde quando conhecia o
cardeal, e se era assim tão amigo dele.
João da Cruz não respondeu logo verbalmente; fez primeiro um gesto de afirmação
e saudade; depois levou o trapo aos olhos. D. Luísa, sentada ao lado do marido,
olhava compassivamente para o pobre homem. Este, afinal, confessou que era amigo do grande prelado, por benefícios
que recebera dele em Lisboa. Aqui não o procurou senão duas vezes: logo que
chegou, em 1814, e quando uma vez Sua
Eminência estivera doente. Se nunca falou
disso ao honrado general, foi porque as humilhações por que passou e lhe
trouxeram o conhecimento e o trato do cardeal (que
Deus tinha!) foram amargas e
dolorosas.
— Bem, mas agora...
— Agora direi tudo, se V. Excia.
assim o ordena.
E depois de limpar os olhos
vermelhos:
— Foi em Lisboa, ali por 1806; tendo
chegado de Gênova e passando por alto
uma gramática italiana, lembrou-me ensinar esta língua. Confesso que pouco ou
quase nada sabia dela; mas ensinando ia aprendendo.
Nisto fui denunciado como espião dos franceses, e metido na cadeia. Imagine V. Excia. com que
dor recebi semelhante afronta; felizmente, provado o engano da denúncia, fui
solto daí a poucos dias. Contente da
justiça que me fizeram, fiquei admirado da prontidão, e cá fora é que soube que esta fora
devida ao cardeal. Corri a agradecer-lhe o favor; mas Sua Eminência negou-o uma
e duas vezes, até que confessou a verdade. Desde que soube que a denúncia era
falsa correu logo ao ministro, para obter a minha soltura, e obteve-a. Mas qual
foi a causa de inspirar a Vossa Eminência tão singular beneficio? perguntei eu.
Confessou-me que só porque soubera que eu ensinava italiano; só por isso, e sem
que me conhecesse, estimava-me.
— Ah! bem compreendo, disse o
general.
— Foi o que me ligou a ele; fez-me
depois alguns obséquios, e quando eu lhe confessei que pouco italiano sabia, e
que me dei a ensiná-lo com o fim de propagar o amor de tão divino idioma, então
ele propôs-me dar algumas lições. Sobrevieram os acontecimentos de 1808. A corte transportou-se ao Brasil, e o cardeal,
no ato de embarcar, instou comigo para que viesse também; recusei, dizendo-lhe
que ia alistar-me no exército que devia expulsar o pérfido invasor...
— Bravo! disse o general.
— Sua Eminência, não podendo
arrancar-me daquele propósito, despediu-se de mim com muitas lágrimas, e deu-me
em lembrança um exemplar de um poema em italiano, anotado por suas sagradas mãos,
livro que me foi roubado, tempos depois, por um soldado de Napoleão, um miserável... Para que o queria
ele? Naturalmente ia vendê-lo. Que preço podia dar esse herege a um objeto de
tanta valia?
João da Cruz disse aqui coisas duras
ao soldado e a Napoleão, chamando-os literalmente ladrões de estrada. Concluída a descompostura,
levou o trapo aos olhos; o general procurou consolá- lo.
— A morte é caminho de nós todos,
disse ele, e demais o núncio já estava
com os seus setenta e tantos anos. Em todo o caso aplaudo os seus sentimentos,
são naturais de um bom coração.
— Muito obrigado, acudiu João da
Cruz; pode V. Excia. estar certo de que se me dissesse o contrário, eu
duvidaria da minha dor. E tanto prezo o seu conselho, que desejava saber se
pareceria afetação que eu deitasse luto por tão grande homem.
— Não me parece que seja...
— Não? Pois vou pô-lo; não direi a
ninguém o motivo, como digo aqui, pois é só para a alma dele, que me agradecerá...
Pobre cardeal... Vou ver...
Como o general se levantasse e fosse
para dentro, João da Cruz ficou um pouco vacilante, ao que parece; então a mãe
de José Leandro disse-lhe que ficasse
para jantar.
— Agradeço... agradeço... Vou ver se
arranjo... se posso...
Disse isso, entre pausas e suspiros,
olhando para a roupa; mas D. Luísa pegou
no filho pela mão e retirou-se da sala. João da Cruz saiu; chegando ao saguão
parou e não vendo o porteiro que estava no pátio, ao fundo, e que depois contou o caso à
família, fez um gesto de desespero,
dizendo:
— Esta gente ainda está mais defunta
que o cardeal.
José Leandro cuidou logo de ver as
exéquias, e pediu ao pai que o levasse;
o pai noticiou à mulher que el-rei ordenara grandes honras ao finado; o cadáver, embalsamado, ficaria em
casa três dias, celebrando-se diante dele missas e responsos. O enterro seria
em Santo Antônio. Não se falava de outra coisa. Mas nessa noite aconteceu
adoecer o general; sobre a madrugada foi sangrado; a moléstia agravou-se; era
impossível levar o filho às exéquias. A mãe não havia de abandonar o marido. José Leandro,
criado a mimos, teimava em querer ir, ainda que com um escravo; mas a mãe vendo
que um escravo não poderia arranjar ao
filho algum bom lugar na igreja, pediu a
João da Cruz o obséquio de o levar a Santo Antônio.
— Obséquio? diga obrigação, minha
senhora; mas V. Excia. sabe... que... que... eu... não poderei... sem...
O general concordou que era
constrangê-lo a assistir ao enterro de um
amigo que lhe deixara tantas saudades... E voltando-se para o pequeno, prometeu
levá-lo à procissão de S. Sebastião, que era muito bonita, e que ele nunca
vira. José Leandro reprimiu as lágrimas; ficava uma coisa pela outra; mas João da Cruz
fez logo uma descrição vivíssima das
exéquias, disse que seriam tão pomposas ou mais que as da rainha D. Maria I, no
ano anterior; falou em cinco bispos, muitos frades, tochas e coches reais,
tropa... uma coisa única. O menino agarrou-se-lhe que o levasse. João da Cruz
não se negava a isso, uma vez que era vontade de pessoa tão distinta; nem o
cadáver de um amigo eminente era espetáculo de fazer recuar a uma alma rija. Ao contrário, esse último encontro dava
fortaleza ao coração...
— Bem, se não há dúvida... disse o
general.
Lá isso, pedia licença para dizer que
sim, que havia sempre uma dúvida, uma triste dúvida, uma coisa que o vexava;
não lhe perguntasse o que era, não o podia dizer sem lágrimas... Mas se o general
insistisse em saber, ele fecharia a boca, falariam por ele aquelas miseráveis
calças de cor. Tinham sido pretas algum dia, mas o tempo... e tudo o mais,
tudo, até os rasgões dos sapatos. Era luto aquilo? era luto apropriado a um príncipe da
Igreja? etc., etc. Não, não; o menino
que esperasse a procissão, que fosse a ela com seu ilustre pai; deixasse as exéquias, por mais
que fossem de estrondo...
— De estrondo? interrompeu o pequeno.
E chorando, chorando, pediu outra vez
que o levasse. O pai na cama agitava-se, sem saber o que fizesse; era avaro,
diziam, e custava-lhe abrir mão de algumas patacas. Teimou com o filho, o filho
com ele, até que, desesperado:
— João da Cruz, disse o pai,
entenda-se com esta senhora, a respeito do luto; leve uma recomendação minha ao
alfaiate e ao sapateiro. Também precisa
de chapéu? Há de haver algum servido cá em casa... Ela que lho dê... Vão e
deixem-me em paz!
Foi assim que ele arranjou a roupa
nova, — embora de luto — luto que fosse,
era nova. José Leandro lembrava-se ainda das exéquias, quando me contou este caso; tinha diante de si
a figura pomposa de João da Cruz, vendo e ouvindo tudo com interesse de pessoa estranha.
Ensinava-lhe o nome de tudo, cerimônias e alfaias, os dois bispos, que eram cinco ou seis, mas ele só se
lembrava do de Angola, e do de
Pernambuco, e os das ordens religiosas, e os de alguns cônegos. De quando em quando esticava o braço,
e mirava-se. Com o andar das horas ficou até alegre. Cá fora, ladeira abaixo,
vinha falando da “bonita festa” e
recitando-lhe pedaços inteiros do sermão. No Largo da Carioca entraram na sege
que os esperava; à porta de casa, é que João da Cruz pôs outra vez os óculos da
melancolia, desceu trôpego e entrou.
Não imagina como achei esta anedota
engraçada; José Leandro contava bem, é certo, mas toda essa história pareceu-me
engraçadíssima. Ria-me a não poder mais, e repetia a exclamação que fez render a roupa ao outro. Pobre
cardeal! Já entendeste que ele nunca trocou uma só palavra com o núncio, e se o
viu algum dia, foi na igreja ou de coche; mas mentia com tanto aprumo, a
invenção era tão graciosa e pronta, a peta tão bem concertada, aproveitados
todos os incidentes, que era difícil não cair na esparrela. Mas, realmente, a coisa tinha graça; agora mesmo, após tantos
anos, acho-lhe muito pico. Mas, vamos ao
resto; eis aqui o que eu só confiaria a Deus ou a você.
No dia seguinte fui para o júri, com
a anedota fresca de memória, até porque
sonhara com ela, tanto que acordei rindo. Cheguei a tempo, e fui logo sorteado para o conselho de jurados.
Quando vi o réu, não pude deixar de sorrir. Era aquilo mesmo, devia ter sido
assim no dia do óbito do núncio; cabeça um pouco torta, olhos mortificados e baixos,
tipo de astúcia. Não parecia velho, apesar dos anos longos e desvairados; devia
contar uns sessenta e tantos, perto de setenta. Trazia raspado o lábio
superior, e toda a mais barba, grisalha e fina, dava-lhe ao rosto muita
gravidade. De quando em quando tomava rapé;
reparei logo que a boceta era de ouro.
O interrogatório durou cerca de
quarenta minutos. João da Cruz respondeu claro e firme, negou a autoria da
falsificação, explicou algumas
contradições que lhe assacaram. Confesso-lhe que ouvi as respostas dele com interesse e sem desprazer.
De quando em quando a anedota do cardeal
vinha dar uma nota graciosa à situação. Imaginava-o então em Mata-cavalos, no
tal dia, em frente do general, referindo as petas de Lisboa, as desculpas, as
lágrimas aparentes, até o desfecho. Lá,
engenhoso era ele, e divertido. Não pude atender à leitura do processo; ouvi
algumas páginas, depois disse a mim mesmo que os autos eram grossos, e a leitura
fastienta...
Não era isto; era a narração dos
feitos do réu que começava a constranger-me. Para distrair-me entrei a mirar a
beca do advogado, a cara dos meus colegas do conselho, a cabeleira do escrivão,
as suíças do juiz, e finalmente o
retrato do imperador, que pendia da parede.
Aqui foi maior a distração, porque cuidei de recordar as festas da coroação,
tanto as públicas como as particulares, entre estas um banquete a que fui, e no
qual ouvi recitar duas odes bem bonitas. Quis recompô-las e não pude; trabalhei
de memória, e fui arrancando ora um
verso, ora outro, alguns truncados, e quando dei por mim, acabara a leitura.
Ouvi depois a acusação, que me deixou
em alternativas de acordo e desacordo; veio, porém, a defesa e equilibrou-me o
espírito. Minha alma sentia grelar um
grão de simpatia, ou outra coisa, que desafiava a causa do João da Cruz. Não podia olhar para
ele sem sorrir; de uma vez, para não rir
alto, sufoquei uma tosse com o lenço. A exposição do juiz durou pouco mais de
quarto de hora. Os autos foram entregues
ao conselho e nós saímos da sala.
Lá, na sala secreta, os debates foram
longos e complicados, mas não tanto como na minha consciência; aqui é que era
preciso decidir. A justiça dizia-me que condenasse, a simpatia pedia-me que absolvesse, e o diabo — não podia ser
outra pessoa — o diabo clama do fundo do meu ser estas palavras: “Pobre
Cardeal! Ah! minha senhora D. Luiza!”
que grande desgraça! Pobre Cardeal! E a minha consciência ria, porque era amiga
de rir. Já não negava o crime, mas punha na outra concha da balança a vergonha
pública, e a prisão longa; depois, os velhos anos do pobre diabo...
Enfim, contados os votos, acharam-se
divididos seis que sim, seis que não; ia
decidir o voto de Minerva, e o réu foi absolvido. Saí contente de mim mesmo; se votasse contra, teria feito
inclinar a balança, e era certa a
condenação. Saí alegre; não contei nada do que se passara dentro de mim, senão
a você agora; mas a anedota do cardeal lá foi correr mundo.
E foi ela que trouxe a absolvição de
João da Cruz; foi essa empulhação de
1817, jovial e pífia, que deu ao réu de 1851 a minha simpatia e o meu voto, não por ser pífia, mas
por ser jovial. Os anos, porém, foram passando, e agora ainda que sou o homem
mais alegre do século, acho em mim este
ponto negro de melancolia. Quem sabe? Pode ser que este erro me condene no
outro mundo.
— Tudo são mistérios indecifráveis,
respondeu o amigo íntimo do Martins
Netto. Os fatos e os tempos ligam-se por fios invisíveis. Suponha que o João da Cruz não tem empulhado o
general em 1817, não teria sido absolvido pelo seu voto em 1851, você não teria
uma ponta de remorso, nem eu este conto.
— Pobre cardeal!
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Nota:
Texto-fonte: Relíquias de Casa Velha, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938. Publicado originalmente em A
Gazeta de Notícias, 6 de julho de 1886.
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