ONZE ANOS DEPOIS
I
— Alves!
— Moreira!
Soltados estes dois gritos, os dois
indivíduos, a quem pertenciam aqueles nomes, trocaram um formidável abraço, com
palmadas nas costas, a despeito de se passar a cena na Rua do Ouvidor, às duas
horas da tarde. Abraçados e palmejados os dois amigos (eram evidentemente
amigos) tornaram a exclamar:
— Ora o Alves!
— Ora o Moreira!
— Há dez anos... Dez ou onze? Onze,
creio eu, onze anos que nos não vemos... Foi em 1860 que eu saí daqui... e
fui...
— Gozar a vida, maganão!
— Oh! pouco! disse Moreira
suspirando... Posso dizer que nada.
— Impossível!
— É a pura verdade. Alguma coisa me
diverti, é certo; nem é possível que um homem, a não ser um misantropo, deixe de
se divertir na Europa... Mas se soubesses a causa que me levou daqui...
— Que foi?
— Saberás depois. Por agora, dize-me:
estás casado?
— Há cinco anos.
— Tens algum filho?
— Não.
— Livre! livre, e não foste ainda à
Europa?
— Ainda não posso, mas não estou
longe disso. Sabes que um advogado, que não herdou bens de fortuna, precisa
primeiro acumular algum cabedalzinho; trato disso agora... Que calor! Anda
tomar alguma coisa...
— Conversar apenas contigo, respondeu
Moreira dando o braço ao amigo e dirigindo-se com ele para a casa do Carceller.
Ambos eles iam contentes e palreiros.
Regulavam pela mesma idade, trinta a trinta e três
anos; eram igualmente magros, não muito, e quase de igual altura. Moreira
vestia mais apuradamente que Alves, trazia certo cunho parisiense, que de todo
faltava ao amigo.
Moreira nada tomou no Carceller
enquanto Alves sorvia deliciosamente um sorvete de ananás. Veio cada um deles
com a história daqueles anos em que se não
tinham visto. Alves tinha menos que contar; o principal assunto foi o casamento,
que se passou de uma maneira singular, porque não precedeu nenhum namoro entre ele e a mulher. A mulher
era uma moça, assaz bonita, que vivia
retiradamente, com a mãe, e parecia ter jurado não comungar nunca nos altares
do matrimônio. Alves freqüentava a casa, como advogado da mãe, num processo em
que um sujeito possuidor de quinhentos contos queria tirar-lhe uma casa que valia vinte, e a que ele tinha tanto
direito como o grão-turco. Alves venceu o processo, e não foi esse o único
triunfo obtido, porque a mãe, no dia em que
ele lhe foi levar a notícia da sentença final, chamou-o de parte e disparou-lhe
estas palavras:
— Doutor, se os laços da família nos
ligarem, como já nos ligam os do coração...
Alves recuou. D. Mariana olhava para
ele como quem esperava uma resposta; o advogado não teve remédio senão dizer
alguma coisa.
— Minha senhora, murmurou ele, eu não
teria dúvida nenhuma em corresponder ao que me propõe se o meu coração já não
estivesse ligado a outra pessoa...
D. Mariana suspirou.
— Bem sabe que estas coisas,
continuou Alves, exigem como condição indispensável o concurso do coração.
Parou, cobrou ânimo e prosseguiu:
— No entanto, o seu afeto podia fazer
muito em meu favor; e se eu não posso ter a honra de ser seu marido...
Aqui as sobrancelhas de D. Mariana
descreveram a figura de dois acentos circunflexos, a boca assumiu a forma de um
O, e o Dr. Alves, pasmado daquele pasmo, deu à sua fisionomia um ar de ponto de
interrogação.
Deste ponto de interrogação passou a
um ponto de admiração, quando D. Mariana
lhe explicou que não era para ela que propunha o casamento, mas para sua filha, pois notara que o advogado alguma
simpatia lhe votava, e ela por outro lado desejava vê-la feliz.
O Dr. Alves respirou e confirmou a
simpatia a que aludira a Sra. D. Mariana,
acrescentando que a maior fortuna da sua vida seria desposar a formosa
D. Eulália.
— Nem está longe disso, respondeu a
mãe.
— Deveras?
— Parece-me que sim.
A boa velha calou-se alguns instantes,
abriu as asas a um suspiro, que naturalmente ficou vagabundando no ar, e a
despeito da cabeleira postiça que trazia e da tosse que a mortificava, fez ao
futuro genro estas revelações:
— Fez mal em atribuir-me um
pensamento que não tive; eu não me propunha a casar, nem me casarei jamais,
enquanto me restar memória do meu prezado Tibúrcio, que está no céu. Propostas tive,
decerto, e mais de uma, e não há muitos meses, mas uma viúva de quarenta anos
não deve casar (ela tinha cinqüenta e oito). De que me serviria agora unir os
meus dias a um mancebo? Cedo envelheceria e ele aí ficava na força da idade a
pagar com desprezos o amor que eu lhe
tivesse...
O Dr. Alves lembrava-se apenas deste
resumo do discurso que lhe fizera D. Mariana, o qual não durou menos de dezoito
minutos. A razão era clara; todo ele era agora Eulália; amava a moça em
segredo, e nunca chegara a declarar-se por ver que ela se mostrava fria com
ele. Seu propósito era, apenas acabasse o processo, não freqüentar mais a casa;
imagina-se facilmente o alvoroço com que ele ouviu a proposta de D. Mariana no
momento em que todas as suas mal nascidas esperanças haviam morrido em botão.
Dois dias depois, a boa velha deu
parte ao Dr. Alves de que Eulália estava disposta a casar com ele.
— Não te direi, disse Alves,
concluindo a história que acabo de resumir, e que ele contou ao
amigo, à mesa
da casa do
Carceller — não te direi que Eulália se mostrasse loucamente apaixonada
por mim. Não havia sequer paixão. Havia, porém, boa vontade; o meu amor fez o resto;
casamo-nos, e hoje creio que sou feliz. Minha sogra morreu alguns
meses depois, e, como boa alma que era, agradeceu-me
o ter dado à filha a felicidade de que ela era digna, e pediu-me que fosse
sempre esposo exemplar.
Ouviu Moreira toda esta história com
a natural curiosidade que inspiram os acontecimentos da vida de um amigo, com
quem a gente se encontra no fim de onze anos. Não teve de referir nenhuma
história de casamento; mas falou de amores fortuitos, de que fora herói durante
a viagem na Europa.
Não quer isto dizer que não tivesse
também a sua página séria no livro da vida. Uma teve, mas anterior à viagem.
— Qual? perguntou Alves.
— Coisas que lá vão.
— Não me contaste nada desse tempo...
— Não pude contar; tinha então a dor
no coração. Foi essa página, séria e triste, a causa da minha saída do Brasil.
— Ah!
Um silêncio.
— Mas que foi?
— Que seria? Amores.
— Amores, tu!
— Pois então? disse Moreira, alguma
vez me havia de chegar. Gostava de uma moça, quase uma menina de 17 anos
incompletos.
— E ela?
— Morria por mim. Minha intenção era
casar-me; assim o disse a meu tio e a minha mãe. Opuseram-se ambos, pela razão
de que me destinavam uma prima. Insisti;
resistiram ambos; até que, para ver-me livre da situação em que me achava, entendi que era melhor abrir as asas e
correr mundo.
— Aposto eu que, ao pisar terras de
Europa, nunca mais te lembraste dela?
— Oh! não! ainda me lembrei uns
quinze dias; depois vieram acontecimentos estranhos e de todo a esqueci... De todo,
repara bem, porque se perguntares o nome dela, não sei se te posso dizer.
— Sempre o mesmo!
— Não; muito outro; acho-me de todo
mudado.
A conversa continuou por este teor
até muito mais tarde do que os dois amigos imaginavam ali ficar. Foram desenterrados
muitos episódios do passado, tanto por um como por outro, e ambos tinham muita
coisa que dizer. Afinal separaram-se, não sem custo, porque Alves queria a todo
transe que Moreira fosse jantar com ele e Moreira igualmente tinha vontade
disso. Havia, porém, uma circunstância: o tio de Moreira, o comendador Pinto,
esperava-o em casa. Foram obrigados a
separar-se.
— Mas irás ver-me hoje de noite?
— Talvez.
— Em todo caso, jantas amanhã comigo?
— Sim.
— Até logo.
— Até logo.
II
Alves foi para casa sinceramente
alegre por ter encontrado um amigo de tantos anos. Moreira sentiu o mesmo
durante dez ou doze minutos, porque, ao cabo desse tempo, indo já a entrar a um tílburi,
bateu com a mão na cabeça e exclamou:
— Eulália! mas parece que ela era
também Eulália! A descrição da mãe, a tristeza da moça... Será a mesma?
O cocheiro, ouvindo este monólogo do
freguês, que apenas tinha um pé no estribo
e o outro no chão, entendeu que tratava com um alienado; e ia já tocar o cavalo, quando Moreira entrou de todo no carro
e sentou-se na almofada, dizendo:
—Aterrado!
O cocheiro tinha razões para não
conduzir malucos; quis murmurar uma desculpa, mas não teve ânimo; o receio de
irritar o freguês tapou-lhe a boca. Lançou-lhe um olhar de esguelha e chicoteou
o animal.
Moreira ficava todo entregue a uma
nova ordem de idéias. Teve prazer em ver o amigo; mas a idéia de ir ver de novo
a antiga namorada foi para ele prazer maior. Acrescentarei até que mil planos
formulou ele na fantasia, cada qual mais atrevido e menos fiel à amizade.
Quando deu acordo de si estava no fim do Aterrado, e ele morava nas imediações do Gás;
teve de retroceder; entrou em casa, jantou com o tio, e pois que está
fazendo a digestão, deixamo-lo em paz durante
algumas linhas.
Alves foi para casa, onde a mulher já
o esperava havia muito para jantar. No meio
do jantar entendeu Alves que devia explicar à mulher a causa da demora, e falou
de um amigo que não via há onze anos, e que chegara da Europa no último paquete.
— Quis que ele viesse jantar conosco,
disse Alves, mas não pôde; afirmou-me, porém, que virá amanhã, e que hoje de
noite talvez nos visite.
Eulália ouviu todas estas explicações
do marido com algum sobressalto; mas qual não foi o sobressalto quando ele
disse:
— Hás de gostar muito do Moreira!
Moreira! onze anos! Europa! Estas
três expressões dizem ao leitor que a moça era efetivamente a namorada do nosso
viajante, pois se o não fosse não se sobressaltaria. Quis todavia saber o nome
todo do amigo de Alves, e quando o ouviu, se alguma dúvida tivera, nenhuma lhe
ficou.
Seria ela bonita aos 17 anos? É
provável; aos 28, que agora tinha, era extremamente formosa. Tinha-se
desenvolvido toda a mulher. A sua beleza era dessas que muito ganham com a
severidade do gesto, e Eulália era quase sempre severa, ou melhor, triste,
metida consigo. Fora sempre dócil para o marido, meiga às vezes, mas nunca se
mostrou apaixonada nem alegre.
Alves não reparou na impressão que
causou na mulher com as suas notícias a respeito
de Moreira. Continuou a falar dele com o mesmo entusiasmo e volubilidade. Nada
lhe disse, todavia, acerca da paixão; foi ela que encaminhou a conversa por
esse lado.
— Mas por que motivo esteve ele tanto
tempo fora? perguntou.
— Naturalmente porque se deu bem, respondeu
Alves partindo uma pêra e acompanhando com os olhos o movimento da faca, e
portanto sem ver a expressão de ansiosa curiosidade da mulher.
Houve um silêncio.
— A causa que o levou é que foi
curiosa, disse ele repentinamente.
— Que foi?
— Uma paixão.
— Ah!
— Mas paixão que acabou logo, ao que
parece, disse Alves.
— Fraca devia ser.
— Coisas da mocidade.
Eulália não fez nenhuma outra
observação. Alves não deu fé da impressão que as suas palavras haviam causado na mulher.
A tarde passou-se sem novidade; de
noite apareceu Moreira, conforme havia prometido.
Não é preciso dizer ao leitor que,
apesar dos onze anos passados e da mudança que parecia ter-se operado no
espírito de Moreira, alguma coisa devia ele sentir ao transpor a soleira da porta
do advogado. Não era amor, era antes curiosidade. A curiosidade porém não foi
tão prontamente satisfeita como ele quisera, porque Eulália não apareceu na sala. Durante
meia hora a conversa entre os dois amigos foi a mais aborrecida do mundo, não por culpa
do advogado, que fazia largamente as despesas dela, mas por causa de Moreira
que apenas contribuía com monossílabos.
Enfim apareceu Eulália.
Se nenhum deles estivesse prevenido,
é provável que se desse algum desses lances de teatro que são o sinal de
inesperadas catástrofes; ambos eles, porém, estavam prevenidos; o encontro não
produziu nenhuma exclamação.
O que houve, sim, foi uma grande
impressão em ambos, maior nela que nele, ou antes diferente, porque em Eulália falou
principalmente a lembrança do passado, em Moreira falou a admiração do
presente. A gentil menina que ele deixara aparecia-lhe agora formosa e
imponente mulher.
Esta impressão dominou tudo mais.
Isto, e certo interesse que tinha o ex- namorado em se mostrar acabrunhado, fez
com que o Moreira da noite não parecesse o mesmo da manhã. Alves notou a
diferença e atribuiu-a ao natural acanhamento a que o obrigava a presença da
mulher.
Nem por isso deixou Moreira de contar
alguns episódios (imaginários) da sua viagem pela Europa, os quais tendiam
todos não só a dar a melhor idéia dos seus costumes, mas também a mostrar à
moça que a imagem dela o acompanhou a toda a parte.
Alves notou essa diferença de estilo
e de história; mas, ainda aqui, era ela natural. Poderia ele contar em presença
da esposa as aventuras de que lhe falou no café de manhã?
Evidentemente não.
— Patife! murmurou-lhe uma vez ao
ouvido em ocasião em que Eulália se levantara; quem te ouvir, pensará que és um
santarrão.
E nunca melhor nome assentou num
homem do que o que lhe dera o advogado. Moreira era verdadeiramente um patife,
um gentil patife se quiserem; mas, em todo caso, patife. Em tão pouco tempo
mostrou ele aos olhos do leitor que nem amara a moça como parecera, nem era
amigo do seu amigo. Patife embora, ou por
isso mesmo, aceitou tomar uma xícara de chá, e prometeu ir lá jantar no dia seguinte.
No dia seguinte foi tão alvoroçado,
mais alvoroçado do que na véspera. A razão era que lhe pareceu não estar de
todo extinto no coração da moça o fogo que ele lhe acendera outrora. A leitora
curiosa deseja naturalmente saber se Moreira se enganava. Não lhe sei dizer senão que nesse
dia Eulália não apareceu absolutamente ao ex-namorado; pretextou uma dor de
cabeça e meteu-se na cama.
O jantar, já se vê, não foi tão
alegre como os dois amigos esperavam que fosse. Não o foi o jantar; mas foi-o
com certeza a sobremesa. Encetavam a sobremesa quando Eulália apareceu na sala
de jantar, com grande espanto de um e de outro, e ainda mais alegria que
espanto. Moreira entendeu que alguma faísca, adormecida na cinza, de novo se
ateara no coração da moça.
Seria isso?
Naquele dia era temerário julgá-lo;
mas quinze dias depois estaria na verdade quem dissesse que os onze anos de
ausência não haviam de todo vencido o primeiro amor de Eulália. Leu-lho o
namorado nos olhos e muito antes havia-o ela lido no seu próprio coração.
A luta não podia ser mais cruel para
uma moça honesta como ela, assaz discreta para ver que o esposo a amava como no
primeiro dia e que antes de tudo estavam
os seus deveres. Longos e cruéis foram os padecimentos íntimos de Eulália.
Ninguém os suspeitou contudo; porque o seu ar de costume não era alegre, e ela
esforçava-se por mostrar boa cara a todos, e guardava-se para sofrer na
solidão.
III
Cerca de dois meses depois do jantar
em casa de Alves, fazia Moreira consigo as seguintes reflexões, à proporção que
ia engolindo o café em casa do tio, no Aterrado:
— É evidente que eu gosto dela alguma
coisa, não muito, um gostar frio que me não tira a razão nem a serenidade. Ela
não desgosta de mim; creio até que gosta muito, quase tanto como no outro
tempo, e é claro que se casou só por fazer a vontade à mãe. Se não houvesse
casado, é duvidoso que eu tomasse tal encargo; já agora não me caso mais, salvo
por negócio. Mas quem me pode impedir que a ame, que seja amado, que sejamos
felizes?
Aqui saboreou um gole de café e
continuou:
— O Alves não há de certamente gostar
disto; mas também não é necessário dizer-lho; é até prudente não lhe dizer
nada. A minha consciência...
Outro gole de café.
— A minha consciência está a dizer-me
que ele é meu amigo, e que fui e sou talvez amigo dele; mas há um rifão que
diz: amigos, amigos, negócios à parte. Ele é que errou em casar com uma moça de
quem eu gostava; tudo isto é agora uma
mera conseqüência.
Moreira esvaziou a xícara, acendeu um
charuto, e pensou seriamente em escrever uma carta a Eulália. Fechou a porta do
quarto, travou da pena e escreveu o rascunho da carta que se vai ler:
“Eulália,
Quem diria que onze anos depois nos
havíamos de encontrar em semelhante situação? Foram onze séculos de martírio
para mim, que vaguei tão longe do lugar
onde tu vivias, onde vivia a minha única felicidade. Poupo-te a história
aflitiva desse longo prazo de amarguras; calcula pelo que padeceste também.
Sim, ouso afirmar que padeceste, porque leio nos teus olhos, porque o meu
coração me diz que ainda me amas, e que, assim como eu me não esqueci de ti,
assim tu te não esqueceste de mim.
Oh! se assim não fora! se ao cabo de
tanto tempo de estranhas e irreparáveis mágoas, meu coração viesse achar o teu
coração gelado e sem o mínimo vestígio
de amor, juro-te, Eulália, que me mataria. Era muito que o destino nos
separasse; era muito, mas podia sofrer-se. O que, porém, está acima de todas as
forças humanas, das minhas forças pelo menos, era que
tu me esquecesses! Odeia-me, se queres,
mas lembra-te de mim!
Bem vejo que a nossa situação é hoje
melindrosa e singularmente infeliz; mas um raio de luz me basta. Nada mais
quero para ser o mais venturoso dos mortais, do que a certeza do teu afeto e um
sincero olhar de benevolência.
Ama aquele que sempre te amou.
Teu até a morte.
M.”
Releu Moreira esta epístola e achou-a
boa para o caso. Não é preciso apontar ao leitor a diferença do monólogo e da
epístola: ele a terá notado por si.
Não se demorou Moreira em copiar a
carta; fê-lo com a sua letra mais trêmula e comovida; fechou-a, e acabava de a
pôr na carteira, quando lhe foi anunciada a visita de Alves.
Foi recebê-lo com a maior alegria no
rosto.
— Não achas novidade que eu aqui
viesse depois de tantas promessas inúteis? perguntou o advogado logo que viu
assomar à porta a figura do amigo.
— Novidade decerto que é.
— Uma idéia.
— Ah! vejamos.
— Vamos para Petrópolis sábado.
Queres vir conosco?
— Sábado?
— Sim.
— Não sei se posso; em todo caso,
farei os esforços possíveis...
— Esforços! disse Alves encolhendo os
ombros. Quem te ouvir, dirá que tens graves negócios em mão.
— Talvez.
— Imagino.
— Pois bem, iremos todos no sábado,
disse Moreira depois de alguns instantes de reflexão.
— Vou apenas estar uns quinze dias;
aproveito as férias, explicou Alves levantando-se e pegando no chapéu.
— Já?
— Já. Vou a S. Cristóvão; aproveitei
esta ocasião para fazer-te a visita e o pedido. Vais lá de noite?
— É provável.
Era definitivo, leitor; ele não tinha
outro projeto senão ir lá de noite, e quanto à viagem a Petrópolis, achou desde
o princípio que era uma grande fortuna. Os três dias passaram-se depressa; às
duas horas da tarde de sábado estavam os três na barca; a barca saiu, chegou a
Mauá, saiu o trem, fez-se enfim a viagem até a cidade sem notável incidente.
Perdão; houve um incidente.
Na estação do caminho de ferro, vendo
Moreira que o amigo conversava com um amigo, entregou a Eulália o lenço que lhe
havia caído.
A moça agradeceu com uma leve
inclinação de cabeça; pegou no lenço e sentiu um corpo estranho. Era papel; era
naturalmente uma carta; fez-se vermelha e foi dar o braço ao marido.
Durante a viagem Moreira procurou
muitas vezes, com os olhos, os olhos de Eulália; apenas uma vez os encontrou,
mas tão medrosos eram, que para logo fugiram para se cravarem no marido. Este
sorriu, com a benevolência e o amor do costume; a felicidade de Alves estava
toda na mulher; vê-la feliz e contente era
a sua maior fortuna.
No dia seguinte ao da chegada a
Petrópolis, foram os três, logo de manhã, dar um passeio de carro. A manhã
estava deliciosa. Mas o que fez espantar o namorado não foi a manhã, foi
Eulália. A moça parecia singularmente alegre, alegre como a não vira desde que de novo a
encontrara. Esta mesma mudança fazia admirar não menos ao marido; mas a
admiração deste era mesclada de ainda
maior contentamento que a de Moreira. As férias começavam bem; todos pareciam
felizes.
Tão feliz que Alves tornou por vezes
a ser o que fora no tempo de solteiro: palrador
e amavelmente indiscreto.
— Que estás tu a olhar para aquelas
moças? perguntou ele ao amigo, cujos olhos disfarçadamente observavam um rancho de damas.
— Eu? disse Moreira, olhando ao mesmo
tempo para Eulália.
— Que tem? Não é natural? perguntou
esta, sorrindo-se para o seu antigo namorado.
Moreira embasbacou.
Que era aquilo? Um remoque? Uma
queixa? Moreira perdia-se em conjecturas. O passeio foi assim cortado de
incidentes mais ou menos enigmáticos.
A tarde, entretanto, foi melhor; a
moça mostrou-se com ele muito amena e afetuosa, o que, no parecer do namorado,
fez subir as suas ações cento por cento.
Mas a resposta da carta?
— É impossível, pensou Moreira, que a
resposta dela não passe destes agradinhos, muito bons decerto, mas
insuficientes para eu saber se ela efetivamente aceita o que lhe disse...
Preciso a todo transe de uma resposta.
Pensar isto e escrever um bilhetinho
foi tudo a mesma coisa. A nova missiva continha apenas estas palavras:
“Minha vida! Que resposta me dás?
Devo eu morrer ou viver?
Venha a morte, embora, mas sem
torturas... Teu, sempre teu —
M.”
Este bilhete foi deitado de passagem
no regaço da moça, que, de novo, estremeceu
e corou. Alves estava então de costas e nada viu. Moreira foi ter com ele e
perguntou-lhe se havia já lido o Jornal do Comércio desse dia.
Travou então conversa a respeito de um artigo que lá vinha acerca de não sei
que negócio ministerial, coisa que não interessava absolutamente a Moreira, mas
que ele parecia discutir com muito ardor.
Estavam nisto quando Eulália soltou
um pequeno grito. Alves voltou-se rapidamente
e foi ter com a mulher.
— Que foi?
— Nada; uma pontada.
Alves ajoelhou-se diante dela,
levou-lhe a mão ao coração, que batia algum tanto agitado.
— Estás melhor? perguntou ele.
— Estou.
— Anda descansar.
— Não; passou.
Dizendo isto, a moça cravou os olhos
no marido, cuja aflição estava expressa no rosto.
— Não é nada, repetiu.
E para mostrar que não era nada,
levantou-se e deu-lhe o braço. Saíram até o jardim; Moreira acompanhou-os ao
lado e mostrando como podia o interesse que lhe causava a saúde da moça, mas um
tanto surpreso com o incidente. A carta nada continha que lhe pudesse causar abalo;
a primeira sim. Demais a carta estava já guardada, porque ele a não viu na mão
de Eulália.
No
fim de uma
hora, voltaram para
casa; Eulália foi
para os seus
aposentos; Alves acompanhou-a;
Moreira retirou-se para o hotel onde alugara um aposento.
— Que diabo seria aquilo? pensava
ele. Natural não me parece que fosse; a causa é que eu não posso atinar qual
seja. Esperemos a resposta; é impossível que se demore muito.
A tarde passou sem carta.
IV
Na manhã seguinte, logo depois do almoço,
Moreira foi visitar o advogado. Alves tinha saído; Moreira encontrou Eulália na
sala.
A moça estremeceu.
— Eulália! disse ele com voz tímida.
E ia naturalmente continuar este
discurso que prometia ser ardente e impetuoso, quando apareceu à porta uma senhora; era uma
amiga de Eulália.
Moreira mandou interiormente a tal
amiga a todos os diabos, e saiu logo depois. Uma hora depois, voltou à casa de Alves;
achou-o lá, e recebeu a notícia de que este tencionava voltar para a corte no
dia seguinte.
— Já! exclamou Moreira, naturalmente
admirado da alteração do programa.
— É preciso; tenho um negócio
urgente, disse o advogado. Tu ficas?
— Talvez.
— Em todo caso, preciso falar-te.
— Estou às tuas ordens.
— Será logo à tarde.
Moreira saiu daí a pouco.
— A rapariga é mais fina do que eu
julgava, ia pensando Moreira, ou eu sou o mais feliz dos homens. Naturalmente
ela fica; tem aqui pessoas de amizade. Eu também sou pessoa de amizade, e cá
fico.
Sobre esta frágil base de uma
conjectura, edificou Moreira um castelo de esperanças; falou distraidamente a
quantas pessoas encontrou, e meteu-se em casa à espera do amigo.
O amigo não se demorou.
Estava justamente Moreira a pensar
nele quando a figura de Alves apareceu à porta do quarto.
— Entra.
— Ninguém nos ouve?
— Ninguém.
Alves fechou a porta do quarto com a
chave e pô-la no bolso. Moreira olhou para ele espantado, e ia naturalmente
perguntar-lhe a causa daquele fato, quando o advogado lhe tirou de todo a voz
com outro gesto ainda mais significativo: tirou um revólver da algibeira e
pô-lo ao pé de si na mesa. Sentou-se e começou a falar.
Antes, porém, de dizer o que disse
Alves ao seu amigo Moreira, voltemos um pouco atrás e digamos ao leitor o
acontecimento que deu causa ao outro que vai principiar.
Na véspera, logo depois de se retirar
a seus aposentos, Eulália mandou chamar o marido. Este ia justamente para lá.
— Que queres? perguntou Alves com
solicitude.
Eulália caiu-lhe nos braços lavada em
lágrimas.
— Que tens? perguntou o marido ansioso.
Eulália não pôde falar. Alves estava
aflito.
— Vamos, não chores, que tens? disse
ele.
— Deixa-me chorar, murmurou a moça;
estas lágrimas são de alegria.
— De alegria?
— Sim; amo-te.
Alves perguntou-lhe sorrindo:
— Só agora?
— Não; mas só agora o sei, respondeu
Eulália, enxugando os olhos. Amo-te deveras;
não o tinha compreendido até hoje. És bom, amante, generoso, como nenhum outro
homem.
Alves sentiu-se comovido e desviou o
rosto.
— Oh! não te escondas! exclamou ela;
eu sei o que vales.
— Mas por que razão?...
— Vais saber tudo, disse a moça,
sentando-se e convidando-o a sentar-se ao pé de si.
Alves sentou-se ao pé da mulher.
— Não me casei contigo por amor,
sabes, disse ela; conquistaste-me depois o coração a pouco e pouco. Não que eu
o soubesse; eu mesma não esperava a vitória que ias obtendo. A razão por que me
não casei por amor foi que circunstâncias estranhas me haviam separado de um
homem com quem eu então desejava
unir-me. Daí veio a tristeza em que eu vivia sempre, que minha mãe não podia
explicar, e que tu buscaste apagar por todos os meios que a tua generosidade e
o teu amor te sugeriam.
— Esse homem?...
— Esse homem é o teu amigo Moreira.
Alves deu um salto da cadeira em que
se achava sentado. Eulália fez-lhe um gesto para que se sentasse de novo.
— Mas a que vem esta história?
perguntou Alves.
— Antes de dizer mais nada, promete
que me hás de obedecer.
— Mas...
— Prometes?
— Prometo.
— Pois bem, esse homem voltou da
Europa e tu trouxeste-o à nossa casa. Onze anos eram passados depois que ele
havia partido. Era teu amigo e eu não lhe era estranha ao coração: dois motivos
que, juntos, deviam servir de barreira entre ele e a nossa porta. Veio contudo à nossa
casa, muitas vezes; devia respeitar-me; não me respeitou...
Dizendo isto, abriu Eulália uma
caixinha e tirou de dentro uma carta, a primeira de Moreira, que entregou
aberta ao marido.
Alves atirou-se com sofreguidão ao
fatal papel; leu-o, machucou-o entre as mãos, levantou-se exasperado. Eulália
pediu-lhe que se sentasse outra vez.
— Não lhe respondi, disse ela; era
claro que não devia responder. Devia mostrar-te a carta logo ou rasgá-la; não
tive ânimo de ta mostrar, nem me pareceu conveniente rasgá-la; podia ter necessidade de
dizer tudo. Ele insistiu na resposta, e ontem, na nossa sala, atirou-me este
bilhete. Foi a indignação que me causou a perfídia do homem que tão serenamente
conversava contigo, quando buscava
atraiçoar-te, foi essa indignação que me fez soltar aquele grito.
Alves leu o bilhete de Moreira, que
nada adiantava depois da carta, apenas a reincidência e a pertinácia de um
aparente amigo. Houve naturalmente uma explosão de cólera; Eulália buscou
tranqüilizá-lo e o conseguiu.
— Devo antes agradecer, disse ela, a
indignidade daquele homem; foi ela que me deixou ver claro no meu coração;
minha virtude era bastante; mas a certeza de que eu te amava deveras, o teu
verdadeiro amor, a superioridade do teu caráter, tudo isso junto realçou as
forças da minha virtude...
A resposta de Alves foi abraçá-la com
ternura. Em seguida caminhou para a porta.
— Onde vais? perguntou Eulália.
Alves parou.
— Prometeste obedecer-me, observou a
moça.
— Impossível! bradou Alves.
— Oh! eu nada te diria se não tivesse
certeza de que evitarias alguma catástrofe. Por Deus te peço; basta o nosso
desprezo...
Alves resistiu; Eulália rogou; ambos
chegaram finalmente a um acordo: Alves evitaria qualquer lance sanguinolento.
Foi depois desta cena que o advogado foi ter com Moreira.
V
Moreira ficou naturalmente assombrado
quando viu o gesto do advogado.
— Que é isto? disse enfim.
— Nada; apenas precauções, respondeu
Alves pacificamente.
Moreira compreendera tudo;
preparou-se para a negativa. Mas até que ponto estaria Alves informado dos seus
atos? esta era a dúvida. Entretanto começou Alves a falar:
— Sabes que opinião fiz de ti desde
longos anos?
Moreira fez um gesto afirmativo.
— Sabes que opinião formo hoje? Hoje,
penso que és um miserável.
Moreira estremeceu e fez um gesto
para se levantar.
Alves apontou-lhe o revólver.
— Senta-te, disse-lhe.
E continuou:
— És um miserável, como poucos. Estás
convencido disso; não me demoro em recordar as tuas ações. Venho por outra
coisa.
Moreira estava pálido; dissuadira-se
da idéia de que ele vinha assassiná-lo; mas ocorreu-lhe a de que ele viria
obrigá-lo a um duelo sem testemunhas, e Moreira tinha idéia e temperamento de
todo o ponto opostos ao duelo.
Alves continuou:
— Vais escrever e assinar um papel
assim concebido: “Reconheço que devo a vida à misericórdia de Fernando Alves,
cuja honra pretendi em vão macular como um miserável infame que sou.”
— É impossível! clamou Moreira
levantando-se de um pulo.
Alves sorriu-se.
— Nesse caso morres, disse ele,
porque eu não saio daqui sem obter uma destas duas coisas: ou o papel ou a tua vida.
Moreira deu alguns passos agitados,
trêmulo de medo e cólera. De repente uma idéia lhe passou pela cabeça:
atirar-se ao amigo e esganá-lo, com tal ímpeto que não lhe desse tempo de
resistir, e menos ainda de o atacar. Relanceou um olhar para o advogado, e
aproximando-se vagarosamente da mesa, deu um salto sobre o inimigo.
Alves previra aquilo mesmo, de
maneira que Moreira antes de o segurar como queria, foi obrigado a recuar
diante do revólver encostado ao peito.
Moreira soltou um rugido.
— Afadigas-te sem proveito, observou
tranqüilamente o advogado; nada podes obter senão uma das duas cláusulas que te
propus. Escolhe.
Moreira era antes de tudo covarde. A
hesitação dele não provinha de outra coisa senão do medo que lhe causava o
efeito da declaração que se lhe pedia. Uma vez, porém, adquirida a certeza de
que a morte seria a punição da recusa, era claro que ele escreveria o papel.
Entretanto, lançou-se aos pés do
Alves, confessou-lhe tudo, pediu-lhe perdão. Alves mostrou-se inflexível. Era forçoso
ceder: Moreira cedeu. Com a mão trêmula, lançou mão da pena e escreveu o que
lhe ditou o advogado, assinou o escrito e entregou-lho.
— Muito bem, disse Alves; a letra
está um pouco trêmula, mas logo se reconhece o medo que tinhas no coração.
Agora, miserável, à primeira tentativa posso desonrar-te e matar-te.
Alves abriu a porta e saiu.
Moreira ficou abatido durante meia
hora; veio depois uma reação, levantou-se da cadeira, quebrou uma cadeira,
ameaçou, lastimou-se... mas tudo em vão. O mal estava feito e a punição era
absoluta.
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Nota:
Texto-fonte:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, outubro, 1875.
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